Nos últimos dez anos, constituiu-se um novo capitalismo no Brasil no bojo da nova temporalidade histórica inaugurada pela ofensiva neoliberal da década de 1990. A derrota da Frente Brasil Popular, em 1989, síntese política dos movimentos da classe na década de 1980, nos projetou para a temporalidade histórica neoliberal que, naquela altura, se impunha hegemonicamente nos países capitalistas mais desenvolvidos.
Giovanni Alves
Giovanni Alves
Desde 1973-1975, o Brasil rastejava na crise do capitalismo nacional-desenvolvimentista, que tinha assumido uma feição autocrático-burguesa com o golpe empresarial-militar de 1964. A década de 1980, caracterizada pela ascensão do sindicalismo e dos movimentos sociais e políticos de oposição à ditadura civil-militar, foi considerada a “década perdida” tendo em vista a estagnação da economia brasileira e os impasses políticos para a construção de um projeto de desenvolvimento burguês capaz de nos integrar à mundialização do capital em curso nos centros dinâmicos do sistema capitalista. Foi a derrota eleitoral (e política) das esquerdas nas primeiras eleições para Presidente da República no Brasil desde 1960 que abriu um campo de possibilidades para a constituição do novo projeto burguês capaz de integrar o país ao bloco histórico hegemônico do capitalismo global.
A última década do século XX – a década de 1990 – tornou-se no Brasil, a década da reestruturação capitalista sob a égide neoliberal. A função histórica do neoliberalismo foi integrar o Brasil ao movimento hegemônico do capital no mercado mundial – diríamos melhor, capital predominantemente financeirizado que, naquela década, após o débâcle do Leste Europeu (1989) e URSS (1991), impulsionou no plano mundial, a globalização como Zeitgeist, transformando o mundo à sua imagem e semelhança.
A passagem para a década de 1990 foi a passagem para uma nova etapa da temporalidade histórica do capitalismo global inaugurada com a crise capitalista de meados da década de 1973-1975. No plano do capitalismo central, enquanto a conjuntura histórica de 1973-1975/1980 caracterizou-se como sendo a conjuntura de crise e luta de classes que levou à vitória do neoliberalismo em pólos importantes do sistema mundial (Thatcher, em 1979 no Reino Unido e Ronald Reagan, em 1980, nos EUA); e a conjuntura histórica de 1980-1990 caracterizou-se pela expansão e afirmação da contra-revolução neoliberal, com a vigência da financeirização e barbárie social; a década de 1990 pode ser considerada a década de integração/afirmação da nova ordem neoliberal caracterizada pela financeirização e pela barbárie social. Naquela época, tivemos a constituição de governos neoliberais na América Latina decididos a aplicar o Consenso de Washington (Brasil, Argentina, Venezuela, etc); e, com o débâcle da URSS e Leste Europeu, impôs-se o aprofundamento do projeto neoliberal de hegemonia franco-alemão da União Européia que culminaria na implantação da moeda única (o Euro) em 1999.
Por exemplo, a pressa do líder alemão Helmut Kohl pela unificação alemã logo após a queda do Muro de Berlim, significou a necessidade histórica de consolidar com celeridade o pólo hegemônico europeu capaz de construir, ao lado da França, o novo espaço de acumulação de capital, sob domínio financeiro, nas condições de aguda concorrência no mercado mundial.
Devemos nos lembrar que o projeto da União Européia construído e impulsionado na década de 1990 e que hoje está profunda crise, foi um projeto neoliberal. Na verdade, a União Européia como novo bloco de interesses financeiros hegemonizado pela burguesia franco-alemã tornou-se um importante elemento compositivo do movimento histórico de reordenamento mundial do capital financeiro naquela época nas condições de acirramento da concorrência no mercado mundial por conta da nova posição da China, que desde a morte de Mao Tse-tung caminhava para reformas estruturais capazes de colocá-la como novo pólo de acumulação de capital nos marcos da formação social e política pós-capitalista.
Deste modo, com o débâcle da URSS, surgiram novas posições de protagonismo político no mercado mundial capazes de disputar com os EUA o novo equilíbrio na nova ordem do capital sob hegemonia financeira: de um lado, a União Européia como projeto hegemônico burguês alternativo à crise de hegemonia do dólar; e de outro lado, a China, sociedade pós-capitalista, importante território de acumulação de capital e fronteira de expansão da modernidade salarial nas condições da crise de superprodução.
As primeiras crises da globalização neoliberal ocorrida de 1996-2000, com o estoura das bolhas financeiras na Ásia, Rússia e Brasil, expuseram a fragilidade orgânica da ordem neoliberal nos seus elos mais fracos. Na passagem para o século XXI, os festejos da implantação do Euro como moeda única da União Européia ocultaram no centro do sistema mundial, as contradições candentes da nova ordem neoliberal. Na verdade, a década de 2000 será uma década de contestação à financeirização e à barbárie social, principalmente na America Latina. O surgimento dos movimentos anti-globalização na Europa e nos EUA e a inauguração do Fórum Social Mundial em Porto Alegre (Brasil) em fins da década de 1990 (a década neoliberal) expunham primordialmente a insatisfação candente com a nova ordem burguesa conduzida pelo capital financeiro e suas tecnoburocracias globais (FMI e Banco Mundial).
É na América Latina, laboratório-mor dos experimentos neoliberais (desde o Chile de Pinochet em 1973) que a contestação e o fracasso dos projetos burgueses neoliberais iriam assumir de forma contundente uma dimensão política, com o surgimento formas alternativas de desenvolvimento do capital nas condições de crise estrutural de superprodução, financeirização da riqueza capitalista e falência do modo de desenvolvimento neoliberal.
No Brasil, polo mais desenvolvido das economias latino-americanas e elo mais forte do imperialismo no Cone Sul, o novo projeto burguês de desenvolvimento alternativo ao neoliberalismo denominou-se “neodesenvolvimentismo” cujo primeiro ciclo histórico ocorreu sob o governo Luis Inácio Lula da Silva (2003-2008). Foi o ciclo do lulismo que se impôs como novo modelo de desenvolvimento burguês – o neodesenvolvimentismo – tão somente na última metade da década de 2000. Consideraremos o neodesenvolvimentismo como um novo bloco histórico de hegemonia burguesa no Brasil sob a direção do grande capital organizado.
O projeto neoliberal no Brasil na década de 1990, conduzido pela aliança política PSDB-PFL colocou-se como projeto burguês capaz de inaugurar um novo modelo de desenvolvimento (o que só iria ocorrer, por ironia da história, na última metade da década seguinte sob a condução de bloco de aliança políticas rival dirigido pelo PT). É importante salientar que os governos neoliberais da longa década de 1990 – a década que começa em 1990 e termina em 2002 – promoveram uma profunda reestruturação do capitalismo no País, adequando-o à nova ordem hegemônica mundial descrita acima.
A década de 1990 foi uma década de reformas estruturais na economia brasileira, ocorrendo naquela época, uma imensa recomposição patrimonial da riqueza brasileira, basicamente movida por uma transferência gigantesca de riqueza ou privatização de riqueza. Nos anos cinzentos do neoliberalismo capitais estrangeiros, privatizações e fusões criaram, naquela época, uma nova (e poderosa) burguesia no país beneficiada pela gigantesca transferência do patrimônio e da propriedade no Brasil para a qual o regime político não tem resistência. Cerca de 30% do PIB brasileiro mudou de mãos. Foi um verdadeiro terremoto que significou a ruptura com o modelo de desenvolvimento que se desenhou no País a partir dos anos 30 do século XX no qual o Estado jogou um papel decisivo.
A agenda neoliberal de FHC se orientava pelo trinômio: abertura econômica, privatização e desregulamentação do Estado. É claro que FHC criou as agencias reguladoras, mas elas eram apenas um simulacro tendo em vista que elas têm muito pouco capacidade para impor critérios e regras públicas a um sistema de competição pesado que se dá hoje em escala internacional. No modelo de desenvolvimento neoliberal o Estado deixou de ser o principal indutor da economia e delegou esse papel para o mercado.
Na década de 2000, com a crise do modelo de desenvolvimento neoliberal, tendo em vista as contradições do sistema mundial do capital predominantemente financeirizado, o projeto de desenvolvimento burguês conduzido pela aliança política PSDB-PFL (hoje, DEM) fracassa nas eleições de 2002. A eleição de Lula pelo PT significou a necessidade de construção de um novo modelo de desenvolvimento não mais orientado pelos parâmetros neoliberais.
Entretanto, no primeiro governo Lula (2003-2006) se mantiveram os pilares da macroeconomia neoliberal visando acalmar os mercados financeiros e sinalizando de modo claro que o novo governo pós-neoliberal não tinha veleidades anticapitalistas. Pelo contrário, o compromisso sagrado do novo governo era honrar os pagamentos com os credores da dívida pública, ninho do capital financeiro que suga cerca de 50% do orçamento público da União. O objetivo do lulismo demonstrou ser reorganizar o capitalismo no Brasil e não aboli-lo. Enfim, promover um novo choque do capitalismo nos moldes pós-neoliberais.
O novo projeto burguês do lulismo – o neodesenvolvimentismo – era a afirmação periférica do reformismo social-democrata que atribuía não apenas ao mercado o papel de indutor da economia. O Estado capitalista como deus ex-machina assumiria no projeto neodesenvolvimentista uma função crucial, seja como Estado financiador, seja como Estado investidor (não se tratava, nesse caso, de Estado empresário que caracterizava os projetos nacionais-desenvolvimentsitas pretéritos).
O Estado neodesenvolvimentista era o Estado regulador capaz de financiar e constituir grandes corporações de capital privado nacional com a capacidade competitiva no mercado mundial (nesse caso, os fundos públicos – BNDES e fundos de pensões de estatais – cumpriram um papel fundamental na reorganização do capitalismo brasileiro); e o Estado investidor que coloca em marcha a construção de grandes obras de infraestrutura destinadas a atenderem as demandas exigidas pelo grande capital. A vertente do Estado investidor se manifesta, por exemplo, no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que é a expressão de que o Estado joga um papel fundamental na indução do crescimento da economia do país (o que distingue efetivamente o projeto burguês desenvolvimentista do projeto burguês neoliberal). A disciplina fiscal e monetária deveria se colocar a serviço do crescimento rápido e sustentado da economia do país.
Entretanto, a legitimidade política do novo projeto burguês no Brasil seria obtida não apenas com a estabilidade monetária conquista do Plano Real oriundo do projeto burguês I, ou a macroeconomia do Estado investidor e Estado financiado com seus efeitos virtuosos na dinâmica econômica, mas seria obtida principalmente com o vasto programa de transferência de renda para as classe trabalhadora pobre. Eis a lógica social da ordem da mercadoria: indivíduos monetários com capacidade aquisitiva tenderiam a se colocar veementemente à disposição da reprodução política da ordem burguesa.
Na verdade, crescimento da economia com impactos no mercado de trabalho urbano, ao lado do aumento da taxa de formalização dos contratos de trabalho ocorrida na década de 2000, além da abundante oferta de crédito incentivando o consumo (inclusive com a redução das taxas de juros básicos da economia) e os novos programas sociais de transferência de renda e inclusão social (Bolsa Família, por exemplo), contribuíram significativamente para a perspectiva de ascensão social das camadas mais pobres do proletariado urbano. O “milagre” da demanda agregada produziria a miragem da “nova classe média” que expressa o efeito estrutural da nova lógica de desenvolvimento capitalista no país.
Os efeitos sociais, políticos e ideológicos do neodesenvolvimentismo nos últimos dez anos (2003-2013) são deveras notáveis, demonstrando que Brasil, apesar de ser um dos países capitalistas mais desiguais do mundo, possui um amplo lastro de hegemonia burguesa. Como elo mais forte do capitalismo no Cone Sul – o que impede comparações com Venezuela, Equador ou Bolívia – a hegemonia burguesa no Pais se fortaleceu nos anos de neodesenvolvimentismo (o que demonstra os índices medíocres de votação dos partidos da esquerda anti-capitalista no processo eleitoral brasileira).
O poder da ideologia adquiriu dimensões exuberantes na década de 2000 no Brasil (eis um dos traços compositivos da “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital, de que trataremos mais adiante). Apesar da crise estrutural do reformismo social-democrata no centro capitalista, reedita-se com incrível estardalhaço neste pais, o projeto burguês social-democrata como projeto civilizatório capaz de nos projetar para a modernidade salarial.
Como herdeiro político capaz de dar prosseguimento ao projeto burguês de desenvolvimento no Brasil, o Partido dos Trabalhadores (PT) se qualificou nos últimos vinte anos, pelo menos desde a sua derrota política e eleitoral em 1989, como partido da ordem burguesa no Brasil. Com a argúcia política de Lula, construiu alianças com os donos do poder oligárquico, visando não apenas a governabilidade, mas a afirmação hegemônica do projeto social neodesenvolvimentista no Brasil.
Sob fogo cruzado da direita oligárquica, rançosa e golpista, o PT e seus aliados políticos aparecem hoje como gestores do capitalismo organizado no pais, a serviço do grande capital monopolista privado nacional. Na medida em que se colocou como legatário da ordem burguesa o PT, em si e para si, tornou-se incapaz por si só, diga-se de passagem, de suprimir o DNA inscrito no “código genético” do capitalismo brasileiro: hipertardio, portanto carente de modernização; dependente, portanto integrado aos interesses do capital financeiro internacional, perseguindo, no limite, um “lugar ao sol” na decrépita ordem burguesa hegemônica; de extração colonial-prussiana e viés escravista, portanto, carente de valores democráticos e republicanos tendo um metabolismo social do trabalho baseado visceralmente na superexploração da força de trabalho – é o que explica, por exemplo, que, apesar do neodesenvolvimentismo e a curta fase áurea do lulismo, os salários brasileiros hoje continuam baixos. Apesar de o país ter criado cerca de 19 milhões de empregos formais, a maioria absoluta dos novos empregos criados nos últimos dez anos tem salários de até um e meio salário mínimo. Mais adiante iremos tratar disso.
Portanto, podemos dizer que o neodesenvolvimentismo como projeto burguês de desenvolvimento hipertardio, apesar de avanços significativos e inegáveis nos indicadores sociais indispensáveis para a própria legitimidade social e política do projeto burguês de desenvolvimento, tornou-se incapaz, por si só, de alterar qualitativamente, a natureza da ordem oligárquica burguesa historicamente consolidada no Brasil de hoje, mais do que nunca, pelo poder dos grandes grupos econômicos beneficiários da reorganização do capitalismo brasileiro dos últimos vinte anos – primeiro com o neoliberalismo e depois com o neodesenvolvimentismo.
O projeto burguês do neodesenvolvimentismo nasceu no bojo da crise do neoliberalismo. Deste modo, ele não poderia ser mera continuidade do projeto I (projeto neoliberal) oriundo da década de 1990 sob pena de ir à ruína. Por isso, o neodesenvolvimentismo aparece no plano da luta de classes mundial, como projeto burguês alternativo à lógica destrutiva do neoliberalismo, capaz de servir como ideologia reformista nos blocos de poder da periferia do sistema à crise de hegemonia dos países centrais abatidos pela crise da globalização (1996-2000 e 2008-2013).
No plano das relações internacionais foi a crise da globalização neoliberal que constituiu na década de 2000, o novo arco de alianças pós-neoliberais que articulam na periferia do sistema mundial, projetos de desenvolvimento do capital alternativos à programática neoliberal. Por exemplo, a formação dos BRICS apontam na geopolítica internacional das primeiras décadas do século XXI, um novo bloco de poder capaz de reorganizar a dinâmica de acumulação do capital nas condições da crise estrutural (BRICS é um acrônimo que se refere aos “Cinco Grandes” mercados emergentes – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, verdadeiras fronteiras de expansão do capital nas condições de sua crise estrutural).
Podemos dizer que hoje, na conjuntura histórica do começo do século XXI, presenciamos a verdadeira Terceira Guerra Mundial: a disputa candente entre projetos burgueses de desenvolvimento, projetos do capital-imperialista que se põem efetivamente hoje no cenário internacional tal como se colocavam na década de 1930 (naquela época, por conta de contingências históricas, a disputa inter-imperialista assumia um caráter político-militar entre os blocos nazi-fascistas e o bloco liberal-democrático em aliança com o socialismo soviético).
O novo projeto burguês neodesenvolvimentista no Brasil não visa resgatar as promessas civilizatórias da golden age do capitalismo central do pós-guerra, como sonham, por exemplo, os ideólogos do neokeynesianismo de esquerda, mas sim de construir um novo patamar de acumulação de capital nas condições da crise estrutural que permita instaurar, no caso da periferias capitalistas pobres do sistema mundial, suportes sociais mínimos de existência, verdadeiros rudimentos do Estado-providencia nos limites do orçamento público de Estados-nações comprometidos com a reprodução dos grupos econômicos oligopolistas financeiros hegemônicos no plano global.
No próximo artigo iremos nos dedicar a expor a natureza do metabolismo social e a nova dinâmica da precarização do trabalho que surgiu na nova temporalidade histórica do capital no Brasil na primeira década do século XXI com o novo choque de capitalismo ou projeto neodesenvolvimentista.
Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011).
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