terça-feira, 2 de julho de 2013

O Menino e o Tempo‏


O Menino e o Tempo‏

O Menino estava sentado na soleira da porta, mão no queixo, olho no infinito. Era quase hora, a ansiedade escapava pela respiração acelerada. Será que ainda demora? Pensava nisso, quando uma figura familiar aparece na ladeirinha que dava para a Vila. Lá vinha o carteiro.
O tempo da contemporaneidade é o tempo da ação, que não vem acompanhada da meditação ou da reflexão (Junia de Vilhena, professora do Departamento de Psicologia da PUC-RJ)


O Menino estava sentado na soleira da porta, mão no queixo, olho no infinito. Era quase hora, a ansiedade escapava pela respiração acelerada. Será que ainda demora? Pensava nisso, quando uma figura familiar aparece na ladeirinha que dava para a Vila. Bolsa de lona, uniforme de tecido grosso que empapava de suor na canícula carioca, lá vinha o carteiro. “Chegou o correio !”, berrou o menino, revelando a senha que desencadeava uma reação fulminante nos amigos igualmente ansiosos. O funcionário que carregava, sem saber, muito mais do que envelopes e postais, via-se, de repente, cercado por um enxame de molequinhos incontroláveis, doidos para descobrir correspondências endereçadas a senhores com menos de dez anos. O pai de um deles tinha escrito uma carta em inglês, modelo para pedir catálogos de novas linhas de avião de empresas norte-americanas. Distribuída a rodo, de vez em quando resultava em gordos envelopes, com fotos e textos no então indecifrável idioma. Receber aquela “coisa de adulto” era excitante. Vez por outra, uns privilegiados conseguiam correspondentes no exterior e, através deles, ampliavam o horizonte limitado por mangueiras, matagais e traves improvisadas. Tudo em ritmo lento, que amplificava o prazer do momento fugaz em que aquele braço estendido coloria um mundo cinzento e previsível. E custava tão pouco ... Com quantos megabytes se faz um sorriso ?

Hoje, o carteiro é um personagem quase invisível. Mensageiro resignado de contas a pagar e inúteis propagandas. Cartas, especialmente as manuscritas, viraram passatempo de excêntricos ou, quem sabe, de crédulos nos símbolos ancestrais da individualidade. Quase 3 bilhões de pessoas no planeta estão, de alguma forma, conectadas ao mundo virtual. Passam, todos os meses, mais de 35 bilhões de horas na internet. Desenvolvem-se patologias ligadas à necessidade de respostas imediatas e conexão permanente. A noção de tempo mudou. Baixa velocidade é considerada imprudência, atraso, descompasso com a “modernidade”. “O mundo virou mais rápido”, observa a psicóloga Luciana Nunes, “o tempo digital é mais veloz que nosso tempo cronológico”. O resultado, agrega, “é que faz parte dessa velocidade digital a necessidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Como ver novela e estar on-line num celular ou tablet”. Quem ainda não viu, em bares e restaurantes, por exemplo, grupos de pessoas que mal se sentam e imediatamente colocam celulares na mesa ? Quantos conseguem sair de férias sem carregar notebooks ou dar uma olhadinha diária no computador do hotel ? Ficar desconectado virou aflição, tudo precisa de resposta imediata. Pausa está caindo em desuso.

Como essa aceleração cotidiana impacta os nossos indignados, que continuam nas ruas e introduzem interrogações nas análises convencionais dos fatos políticos ? Uma grande parte deles é da geração Google. O Menino se pergunta como as relações velozes fazem a cabeça dos manifestantes. Não sabe a resposta, ninguém sabe, mas se a pressa for conselheira da ação política, o risco de fracasso será enorme. Na política, há uma infinidade de modulações, avanços e recuos, paciência para se montar alianças, combate à inércia do tradicional. Multiplicar os gigabytes da ação pode se demonstrar artificial. Conta-se que, na região da Sardenha, pequenas comunidades rurais criaram um personagem a que chamam de Acabadora (são, normalmente, mulheres). Segredo de Polichinelo, ninguém admite abertamente que ele existe. Quem é a Acabadora ? Uma espécie de Anjo da Morte. Convidada por famílias que convivem com a dor de um parente moribundo, sem esperanças de sobreviver, ela o mata e acaba com o sofrimento de todos, família e doente, antecipando o encontro com Caronte. Gesto piedoso ? Pecado indesculpável ? Quem atira a primeira pedra ? A verdade é que, no espaço pessoal, a transição pode ser muito rápida. Vida e Morte ligadas por um fio de cabelo. No espaço coletivo, entretanto, somente em conjunturas revolucionárias, quando o velho já não atende às demandas acumuladas e o novo ainda não se afirmou, é possível uma aceleração do tempo histórico. O Menino sabe que estamos longe, muito longe, de uma revolução no Brasil.

Picaretas têm respostas na ponta da língua. Pelos anéis de Saturno ! Claudia Lisboa, que acaba de lançar um livro sobre “Astrologia Contemporânea” para otários, digo, para crentes, garante que as manifestações populares são causadas ... pela posição dos astros. “É um momento de colapso no mapa astral do Brasil, trazido pela quadratura entre Urano e Plutão, que provoca esse aspecto tenso”. Sugestão humilde para nossos indignados. Reivindiquem a inclusão de uma cadeira de “Astrologia Contemporânea” nos cursos de Jornalismo e Ciências Sociais. Quem sabe assim a massificação de mapas astrais revolucionasse a interpretação dos fatos políticos e sociais, armando-nos com melhores ferramentas para entender e transformar a realidade ? Oy vey, mesmo com a world wide web, www para os íntimos, ainda não ultrapassamos a era das feiticeiras.

Voltemos ao tempo. Transformações, sociais ou psíquicas, políticas ou existenciais, não são óbvias, nem suaves. Pelo contrário: são violentas (não necessariamente violência física), assustadoras e imprevisíveis. Quando é que começa a erupção de um vulcão ? Certamente não é quando a lava faz sua aparição tanática. Acúmulo de gases e escalada da pressão nas entranhas do planeta podem levar séculos. O estouro é apenas o final do processo. Se nossos muito bem-vindos rebelados perceberem que o resultado de sua luta pode levar anos para aparecer, ganharão maturidade e densidade políticas. A chamada decadência do Ocidente culmina um processo que levou cinco séculos. Questões de natureza não-militar, como as mudanças climáticas e o esgotamento de recursos naturais, entraram na pauta dos povos há poucas décadas, e não se sabe se e quando serão resolvidas. Em menos de duas décadas, prevê-se que 60% da população mundial terá problemas de abastecimento d’água, gerando “conflitos hídricos”. Às vezes é difícil segurar a erupção de frustrações das massas, e há momentos em que nem é aconselhável fazê-lo. Sem rumo político, entretanto, o açodamento joga a favor do inimigo. Luta, empenho, entusiasmo, perseverança: ingredientes indispensáveis para qualquer tipo de mudança. Com a régua desconectada da ansiedade ipódica.

(*) Engenheiro químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.

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