A agressão contra os médicos cubanos em Fortaleza é o cartão de visita de quem aprendeu a cuspir no "escravo" para manifestar uma duvidosa repulsa à escravidão
Matheus Pichonelli
Matheus Pichonelli
Médicos cubanos são hostilizados e chamados de "escravos" pelos colegas brasileiros em Fortaleza.
Veio de um usuário do Twitter um dos melhores comentários feitos até agora sobre a gritaria em torno da entrada dos médicos estrangeiros (leia-se cubanos) ao Brasil. “Médico estrangeiro é populismo. Tem que voltar a política de deixar morrer”. (Módulo ironia off)
Populismo, oportunismo, escravidão (?). Enquanto médicos, fariseus e doutores da lei tentam filtrar os mosquitos, uma fila de camelos é engolida nos rincões fora da rota turística do País. Em outras palavras, as pessoas seguem morrendo, sem que mereçam um franzir de testa de quem parece disposto a armar uma Intifada contra o programa Mais Médicos.
Segundo mapeamento do governo, existem hoje 701 cidades no País sem um único médico a postos. Sabe quantos brasileiros demonstraram, em chamada recente, interesse em trabalhar nesses locais? Zero. Nesses lugares, falta o básico do básico, conforme mostrou o repórter Gabriel Bonis em sua visita a Sítio do Quinto, município do interior baiano onde a população não tem para onde correr em caso de emergência (o caso mais simbólico foi a morte, testemunhada por uma técnica em enfermagem e um vigia, de um homem que levou uma facada e não pôde ser atendido porque não havia médico de plantão). Não estamos falando de cirurgia de alta complexidade, mas de carência humana, cuja atuação garantiria o tratamentos mínimo para problemas mínimos como diarreia, gripe ou ferimentos leves, que neste diapasão de interesses e serviços se transformam em tragédias diárias e desproporcionais.
Tragédias que parecem não comover quem, de antemão, diz se sentir envergonhado pela leva de navios negreiros (oi?) a aportar por aqui atolados de médicos dispostos a nivelar por baixo a medicina brasileira. Pois Jean Marie Le-Pen, o líder ultradireitista francês de xenofobia desavergonhada, seria capaz de corar ao ver a reação dos médicos brasileiros, de maioria branca, que hostilizaram, vaiaram e chamaram de “escravos” os colegas cubanos, de maioria negra, durante um curso de preparação em Fortaleza. O protesto, organizado pelo Sindicato dos Médicos do Ceará, foi talvez o estágio mais alto de uma ofensiva que já teve até presidente de conselho regional de medicina pregando, como num culto, o boicote aos camaradas estrangeiros. Os manifestantes, que provavelmente se divertem ainda hoje com a herança colonial supostamente encerrada por uma lei - não coincidentemente - denominada Áurea, talvez inovassem a rebelião contra o estado das coisas no período anterior a 1888. O método consiste em cuspir no escravo para manifestar uma repulsa fajuta à escravatura. Parece um método bastante inteligente para quem levou seis anos para retirar o diploma. Não cola.
O episódio mostra que até mesmo quando se trata de salvar a vida humana a vida humana é contagiada pela mais devastadora das doenças: a ignorância de quem enxerga o mundo entre o certo e o errado e nada mais entre uma ponta e outra. A ignorância, neste caso, parece desnudar um resquício de desumanidade presente em um dos últimos bolsões de um elitismo pré-colonial. Um elitismo que tolera o esquecimento e a omissão, mas esperneia ao menor sinal de desprestígio, este galgado longe, bem longe, dos salões onde mais se precisa de médicos: onde o jaleco se suja de terra.
A opção de ficar nos grandes centros é, de certo modo, compreensível. Não se discute as fragilidades de um programa de emergência. Seria pouco razoável, por exemplo, negar a ausência de uma estrutura adequada para a atuação de quaisquer médicos pelo interior do País. Seria pouco razoável também negar a dificuldade para amarrar juridicamente um contrato de trabalho que prevê a triangulação entre países (um deles, bem pouco afeito à transparência) para remunerar o trabalhador. Não se nega ainda a necessidade de se regular a atuação desse médico conforme o tamanho de sua responsabilidade. Não se discute a necessidade de se validar diplomas com base em um critério honesto que não tenha como finalidade a reserva de mercado. Da mesma forma, seria razoável (ou deveria ser) supor que a urgência para a garantia de atendimento básico preceda os ajustes de rota – estes facilmente remediados com boa vontade, o que não é o caso de uma vida por um fio.
Mas, para boa parte dos ativistas de ocasião, cruzar os braços diante da suposta politicagem, do suposto populismo, do suposto oportunismo e do suposto navio negreiro é mais nobre do que atacar o problema real. Parecem a versão remodelada da conferência das aranhas do conto A Sereníssima República, de Machado de Assis, a mais perfeita alegoria de nossa incompetência histórica. “Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios retos, é o partido retilíneo; outros pensam, ao contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios curvos, - é o partido curvilíneo. Há ainda um terceiro partido, misto e central, com este postulado: as teias devem ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido reto-curvilíneo; e finalmente, uma quarta divisão política, o partido anti-reto-curvilíneo, que fez tábua rasa de todos os princípios litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não há linhas de espécie alguma”.
Nessa conferência, a discussão gira em torno dos símbolos atribuídos a uma mesma teia. O imobilismo é o único resultado da gritaria.
Como as aranhas de Machado de Assis, preferimos discutir o sexo dos anjos em vez de atingir o cerne de uma questão urgente: o abandono de uma parte considerável da população. Seria razoável que elas estivessem no centro do debate. Mas a razoabilidade é um objeto raro quando a ala (sempre em tese) mais esclarecida do País tem como um cartão de visita a vaia, a arrogância e a agressão.
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