domingo, 1 de setembro de 2013

Aos 50 anos de militância, Raul Pont anuncia nova frente de luta


Aos 50 anos de militância, Raul Pont anuncia nova frente de luta

Fundador do PT, deputado estadual, deputado federal, prefeito de Porto Alegre e candidato à presidência nacional do partido em 2005, Pont anunciou que não pretende concorrer na eleição de 2014 (é deputado estadual no RS) e que centrará sua luta política fora do parlamento. Em entrevista à Carta Maior, Pont fala sobre as razões de sua decisão, critica o atual modelo eleitoral do país (“está podre”) e a crescente influência do poder econômico na política brasileira, inclusive no PT.

Porto Alegre - A militância política de Raul Pont iniciou há cerca de 50 anos na luta contra a ditadura civil-militar implantada no Brasil a partir do golpe de 1964 que derrubou o governo de João Goulart. De lá para cá, dedicou sua vida à política, pela esquerda. Fundador do PT, deputado estadual, deputado federal, prefeito de Porto Alegre e candidato à presidência nacional do partido em 2005, Pont anunciou na última semana que não pretende concorrer na eleição de 2014 (é deputado estadual no Rio Grande do Sul) e que vai centrar sua atividade política fora do parlamento. 

Em entrevista à Carta Maior, Raul Pont fala sobre as razões de sua decisão, critica o atual modelo eleitoral do país (“está podre”) e a crescente influência do poder econômico na vida política brasileira, inclusive no PT.

“Para mim, a militância parlamentar é uma militância como qualquer outra. Não faço carreira disso. A maior parte da minha vida política ocorreu fora do parlamento”, diz o dirigente petista que pretende dedicar parte de sua atividade política agora a convencer filiados e militantes do PT que é preciso combater a influência do poder econômico dentro do partido e as práticas que ela engendra, como o inchaço do Colégio Eleitoral no Processo de Eleições Diretas (PED) deste ano. O Diretório Nacional revogou, por maioria, regras que haviam sido aprovadas no último Congresso do partido estabelecendo critérios mais rígidos para a participação de filiados nas eleições internas.

“A atual direção do partido defendeu que não poderíamos baixar o número de votantes (em relação ao último PED) pois passaria uma imagem negativa para fora. Esse foi o argumento apresentado no Diretório Nacional que, por maioria, começou a afrouxar as regras. Nos últimos dias, há uma verdadeira explosão do quórum do colégio eleitoral (...) Eu prefiro mostrar para fora um partido real, com regras claras e bem definidas, do que um partido do inchaço. E agora estamos diante de um novo inchaço que vai deslegitimar o processo eleitoral”, critica Pont, advertindo:

“Ou nós conseguimos convencer um grande número de militantes que esse tipo de prática é um câncer dentro do partido, ou o partido vai morrer canceroso e nós vamos ter que construir outro e começar de novo”.

Carta Maior: Como se deu e quais são as razões de sua decisão de não concorrer à reeleição em 2014?

Raul Pont: É uma decisão pessoal que, evidentemente, ainda pode estar subordinada a um debate político no partido ou na minha própria corrente [a Democracia Socialista]. Mas a minha disposição pessoal é de não concorrer. É claro que não há um único motivo ou uma única razão para isso. O primeiro deles tem a ver com o sistema eleitoral que nós temos. Eu não estou descobrindo agora que esse sistema não é bom ou que acho ele antidemocrático. Eu luto e brigo contra isso há décadas. A primeira coisa que fiz quando fui deputado federal foi tentar levar adiante uma emenda constitucional que buscava estabelecer um mínimo de igualdade e identidade na representação proporcional dos estados. Não consegui apoio nem nas grandes dos partidos de centro e de direita de São Paulo, que é o maior prejudicado no modelo atual. Voltei para o Rio Grande do Sul e o projeto foi arquivado.

Naquele momento, a questão do poder econômico não estava tão acentuada e as nossas campanhas no PT ainda não estavam dominadas por essa lógica dos demais partidos. Ainda eram candidaturas muito coletivas. De lá para cá, e principalmente nas últimas eleições, a partir de 1998 e 2002, com a eleição de Lula, onde nós batemos no teto na representação federal, nós só patinamos. 

Mesmo com o partido crescendo, mesmo possuindo mais deputados estaduais, mais diretórios, mais filiados e militantes, com governos federais a favor, o tamanho da bancada federal parou de crescer. Ao contrário, estamos diminuindo o número de nossos deputados federais, ainda que se eleja o presidente da República três vezes seguidas, e a influência do poder econômico só vem se exacerbando.

Um estudo da Consultoria Legislativa da Câmara Federal mostra que, na eleição de 2010, 370 deputados foram eleitos combinando a condição de candidaturas mais caras (entre as 513 candidaturas mais caras do país). E isso tende a continuar. O valor das contribuições empresariais dobra ou mais do que dobra a cada eleição, chegando a quase 5 bilhões de reais na última campanha. Isso do que foi declarado. Houve muita triangulação dentro dos partidos e o que corre sem declaração é incalculável. Assim, trabalhando só com os dados do Tribunal Superior Eleitoral, temos, na última eleição, quase 5 de bilhões de reais doados por pessoas jurídicas para candidatos. E são doações para candidatos, não para os partidos. Os candidatos são escolhidos a dedo por essas empresas, em todos os partidos, inclusive o nosso. O número de empresas dispostas a financiar candidaturas dentro do PT cresce de maneira assustadora.

Eu nunca me elegi desse jeito. Nunca pedi dinheiro para empresa, banco ou latifundiário. A eleição hoje está cada vez mais difícil. Esse é um dos motivos pelos quais decidi não concorrer no ano que vem. É um protesto mínimo e uma espécie de denúncia de que esse sistema está podre e dominado pelo poder econômico, e o será cada vez mais.

Carta Maior: E quais seriam os outros motivos?

Raul Pont: Para mim, a militância parlamentar é uma militância como qualquer outra. Não faço carreira disso. A maior parte da minha vida política ocorreu fora do parlamento. Comecei a militar 50 anos atrás e não tinha a mínima ideia ou pretensão de ter algum cargo. Militava no movimento estudantil, no Sindicato dos Bancários. Em 1964, eu era bancário e comecei a estudar História na UFRGS. A minha militância começou efetivamente na resistência ao golpe militar em março de 64. De lá para cá eu não parei e na maior parte da minha militância não precisei de mandato, atuando até em condições muito mais adversas que a atual. Então, para mim o parlamento não é o único espaço de atuação. Há o partido, sindicatos, entidades sociais, o trabalho que posso fazer como professor universitário na área de ciência política. Posso contribuir também com a formação política dentro do partido.

Tenho 50 anos de militância. Vou completar 70 anos de idade no ano que vem. É claro que isso cansa e a minha vitalidade não é a mesma dos meus tempos de estudante e de jogador de basquete. Acho que o partido precisa se renovar e abrir espaço para novos quadros. Votei a favor do limite de mandatos no último Congresso do PT (que aprovou um limite de três mandatos). Acho que é um bom exemplo sinalizar para a juventude, para outros companheiros e companheiras que estão com mais vitalidade, mais pique, e que respondem também a uma nova conjuntura. Depois de 30, 40 anos, a vida de um partido político, principalmente num caso como o do PT que teve um crescimento muito rápido, tende a uma certa burocratização, à consolidação de funções e cargos de direção e representação parlamentar, que vai acomodando as pessoas. Temos que ter regras e práticas como o direito de tendência, o limite de mandatos ou a quota de 50% de gênero nas direções partidárias (também adotada pelo PT no seu último Congresso) para evitar que isso ocorra.

Se tem algum partido hoje no Brasil preparado para não fossilizar esse partido é o PT. Ele tem um processo muito dinâmico. Agora mesmo, no dia 10 de novembro, nós vamos eleger todas as nossas direções - municipais, estaduais e nacional – pelo voto direto dos filiados. As correntes do PT são dinâmicas, compõem maiorias e minorias. Quem é minoria está brigando para ser maioria, etc. Isso dá um dinamismo muito superior às experiências que a esquerda teve na Europa e na própria União Soviética, onde os aparatos partidários fossilizaram e se transformaram em burocracias vinculadas ao Estado. Penso que a grande contribuição que o PT traz para a teoria partidária no Brasil é a introdução de novas regras internas como a garantia de uma quota de 50% de gênero nas direções partidárias. Só isso já vai ser uma mudança muito grande nas direções do PT.

Mas não conseguimos ainda fazer uma reforma política e o que dá o tom do sistema hoje é a regra do jogo. O predomínio do poder econômico, o sistema de voto nominal que fortalece o indivíduo, enfraquece o partido e liquida com a ideia de identidade de programa, de projeto, torna o candidato cada vez menos um candidato do partido e mais um candidato da empresa ou do grupo econômico que o financiou. Ele passa a ser um lobista daquele grupo econômico e não mais um sujeito comprometido com a base que o elegeu. 

Hoje temos a bancada ruralista, a bancada do setor financeiro, a bancada identificada com os interesses automobilísticos, a bancada dos agrotóxicos, das igrejas evangélicas, sem que alguém tenha votado para isso. As pessoas votaram em indivíduos que, teoricamente, se apresentaram como sendo de um partido. Esse sistema está falido, quebrado e é cada vez mais antidemocrático e corruptor.

Como até agora não conseguimos mudá-lo, vamos ter que continuar tentando. E eu não pretendo continuar lutando aqui dentro (da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul). Vou lutar lá fora. Vou continuar escrevendo sobre isso, denunciando essas práticas, ajudando a organizar as pessoas em favor de outro modelo de política. Acho uma tarefa importante que pretendo continuar cumprindo por toda a vida. Não estou saindo da política, estou saindo do parlamento, de uma representação parlamentar.

Carta Maior: Esse aumento do poder econômico no sistema político e dentro dos partidos parece que só vem crescendo nas últimas eleições. Quando a gente acha que a situação não pode piorar ela piora um pouco mais, como aconteceu essa semana com a aprovação da PEC do Orçamento Impositivo, que obriga o governo a pagar todas as emendas individuais dos parlamentares ao orçamento da União, até o valor de R$ 10 milhões por deputado e senador.

Raul Pont: Exatamente. Há algumas coincidências que são impressionantes. O mesmo Congresso que não consegue votar o fim da guerra fiscal, um mínimo de reforma tributária para o país, a reforma política e eleitoral, um imposto sobre as grandes fortunas, coisas que todos dizem serem justas e necessárias, no meio dessa crise toda, 376 deputados, com toda a facilidade e rapidez, aprovam uma proposta de clientelismo impositivo. 

As emendas parlamentares, por si só, já são uma excrescência da política, um clientelismo escancarado, a antessala da corrupção. Todo mundo que já passou por uma prefeitura sabe disso. De certa forma, é a legalização da corrupção e do clientelismo. Com exceção do PT que, para meu desgosto e contrariedade, liberou o voto, todos os demais partidos, inclusive os ditos esquerdistas do PSOL, votaram favoravelmente. Esses partidos orientaram o voto ‘sim’ nos dois turnos. Como o PT não fechou questão, ao menos os deputados que integram a Mensagem ao Partido e alguns outros votaram contra (outros 40 deputados do PT votaram a favor). 

Mas a nossa bancada deveria ter fechado questão. Aqui expresso uma contrariedade, não com o sistema eleitoral, mas com atual executiva nacional do partido Eu sou parte da direção, mas sou minoria dentro do Diretório desde a fundação do partido. Como é que essa direção coordenada pelo Rui Falcão, que é o presidente do partido, sequer estabelece uma orientação para a bancada. Pode até perder. Mas se você não orienta, não diz que determinada política está errada, fica difícil. Ninguém defende que essa PEC é uma política correta e republicana. Se todos os partidos orientam o voto ‘sim’ e o nosso libera o voto, nem o nosso partido se distingue. Nós nos diluímos no oportunismo, na submissão, na cumplicidade com práticas que ninguém consegue defender abertamente.

Como é que você quer que o eleitor, olhando para isso, vá confiar nos partidos políticos. Nós estamos afundando um processo de representação democrática duramente alcançado, que não é nenhum paraíso, mas que é superior às ditaduras e a muitas democracias já completamente dominadas pelo poder econômico como é o caso dos Estados Unidos. Essa lógica é mortal para o sistema democrático e só favorece o autoritarismo e saídas fascistas. 

Os conceitos estão completamente confusos. Este ano vimos pessoas na rua gritando coisas como “ninguém nos representa”. Mas quem representa então? Existe outro partido em gestação que vai representá-los? O sistema é todo igual? Os partidos são todos iguais? Vamos criar a cada luta, a cada greve um novo partido que representa essa luta específica? Não. Há um acúmulo necessário para isso, um processo de identificação que nem sempre pode ser de cem por cento. Acho que o descrédito que está se criando hoje no Brasil é perigosíssimo, pois ele conduz às famosas saídas messiânicas de algum militar de plantão ou de algum populista autoritário querendo impor uma nova ordem. 

Nós já vivemos isso. Como eu tenho 50 anos de experiência nas costas, sei bem como são essas coisas. Seria um desastre para nós um retrocesso desse tipo. Por isso eu quero lutar para ter partidos que controlem e punam os eleitos quando for o caso, para que os eleitos tenham fidelidade partidária, que sejam subordinados ao partido para votar as resoluções nas assembleias e nas câmaras. É essa noção de partido que precisamos fortalecer para termos uma democracia confiável com um mínimo de legitimidade. E nós estamos indo no caminho oposto. Já vimos outras vezes como, em momentos como este, sempre aparece um Castelo Branco, um Jânio Quadros, a figura salvadora da humanidade que, de maneira autoritária, resolve tudo.

Carta Maior: Na sua avaliação, essas preocupações estão presentes nos debates do Processo de Eleições Diretas, pelo qual o PT renovará, pelo voto dos filiados, todas as suas direções agora em novembro?

Raul Pont: O problema é que esses vícios do poder econômico vão para dentro do partido. O nosso estatuto e o nosso código de ética proíbem tais coisas. O artigo 14 do Código de Ética, por exemplo, diz que o que foi feito na votação da PEC que tornou as emendas parlamentares impositivas é proibido no PT. Os deputados que votaram a favor dessa medida, que é flagrantemente clientelista e contrária a critérios republicanos e democráticos no gasto público, tinham que ser punidos, suspensos. Praticamente a metade da bancada teria que ser suspensa. Ou essas pessoas são enquadradas ou então que se rasgue o código de ética.

Nós estamos em plena disputa interna no PT. O quarto congresso do partido, talvez sensível a esse quadro das ruas que já se expressava no ano passado, aprovou regras e normas bastante rígidas para esse Processo de Eleições Diretas que vivemos agora. Essas regras fariam com que o tamanho do colégio eleitoral apto a votar caísse drasticamente. Dos 1,7 milhão de filiados, que o PT tem hoje aproximadamente, votaria um número muito menor. A maioria desses filiados não paga as contribuições mensais. Há inclusive dirigentes partidários, cargos de confiança e parlamentares que não estão com as contribuições em dia. Se a regra aprovada no congresso fosse para valer, teríamos algumas dezenas de milhares de filiados aptos a votar neste PED (no último PED votaram cerca de 500 mil filiados).

Diante desse cenário, a atual direção do partido defendeu que não poderíamos baixar o número de votantes pois passaria uma imagem negativa para fora. Esse foi o argumento apresentado no Diretório Nacional que, por maioria, começou a afrouxar as regras. Nos últimos dias, há uma verdadeira explosão do quórum do colégio eleitoral, um crescimento exponencial do número de eleitores, com evidente incidência do poder econômico, colocando em dia as contribuições de filiados. Há filiados pagando por outros, filiados que descobrem que alguém já pagou a sua contribuição e que eles vão poder votar. Só que esse alguém que pagou vai dizer em quem eles devem votar. 

Nós discutimos essa questão e fomos derrotados no Diretório. Foi muito conflitivo pois, para nós, o Congresso é uma instância superior ao Diretório e, portanto, este não poderia revogar uma regra aprovada no primeiro. Mas o Diretório, por maioria, acabou mudando as regras, alegando razões de prestígio externo do partido.

Eu prefiro mostrar para fora um partido real, com regras claras e bem definidas, do que um partido do inchaço. E agora estamos diante de um novo inchaço que vai deslegitimar o processo eleitoral. De novo, também no PT, ganha quem compra mais votos. Essa é, infelizmente, a dura realidade que estamos vivendo. É impossível, a cada ano, a gente começar de novo, um novo partido, uma nova sigla. Precisamos travar uma luta interna, pois nestes 33 anos de vida do PT nós construímos uma experiência riquíssima e muito forte. Estamos ultrapassando a casa dos 1,7 milhões de filiados e tenho a certeza de que a maioria dessas pessoas não concorda com esse tipo de método. 

Temos aí, portanto, um espaço de trabalho político, de disputa e de convencimento. Mas esse processo de inchaço do colégio eleitoral não deixa de ser um elemento corruptor também. Se isso virar uma prática permanente dentro do partido, que não possa ser revertida no Congresso ou no Diretório do partido, nós vamos ter que pensar outras formas de organização, começar de novo, com todos os problemas que isso implica.

Eu disse há alguns dias numa entrevista que os partidos não têm prazo de validade e também não há nenhum desígnio dos céus dizendo que vai durar 20, 30 ou 100 anos. É a prática social, a identidade dessa luta com a vida, com a realidade, que determina essas coisas. Não sou profeta, não sei bem o que vai acontecer no próximo período. Pela experiência acumulada, a gente sabe que tem coisas que não dão certo. Algumas coisas eu tenho certeza que não darão certo. Mas não sei se teremos capacidade de nos contrapormos a essas práticas. Pode ser que sim, pode ser que não. Acho que neste momento a gente precisa brigar com as regras do jogo que estão na mesa e tentar convencer o maior número possível de militantes de que não podemos abandonar princípios éticos e morais na política. O preço que nos é cobrado depois é muito maior. Ou a política tem outro padrão que não o da força ou das regras do esquecimento, ou nunca vamos conseguir formar cidadãos plenos, com capacidade de discernimento e capazes de construir alternativas melhores.

Ou nós conseguimos convencer um grande número de militantes que esse tipo de prática é um câncer dentro do partido, ou o partido vai morrer canceroso e nós vamos ter que construir outro e começar de novo. Essa é a minha opinião.


Fotos: Charge: Maringoni 

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