Não era a primeira vez que um desconhecido pedia… remédios. Eu lá quero saber que será feito do meu donativo?”
Crônica de Priscila Figueiredo | Imagem: Rubem Grilo
Passávamos no cruzamento da Conselheiro Brotero com a Veiga Filho, conversávamos sobre… creio que sobre algum projeto pessoal. Decerto fizemos pausa ou manifestamos alguma hesitação ou relaxamento mínimo que indicasse falta de pressa – e a mulher, como um músico atento a sua entrada na partitura, se aproximou de uma vez, segurando pela mão uma menininha menos branca do que ela, com o cabelo preso em cada lado por uma presilha rosa em forma de buquê e vestindo um conjunto lilás, muito batido mas limpo, de calça, pulôver e jaqueta. Com este fazia um conjunto inicialmente espevitado mas logo singelo a bolsinha pendurada por um cordão dourado e cuja estampa de matelassê devia homenagear alguma animação conhecida da turma. Estava tranquila apesar do afobamento da mãe, talvez porque seu figurino atendesse razoavelmente às preferências da sua rodinha social, talvez porque estivesse comendo o doce de sua preferência, um pirulito multicor, e concentrava-se em mim, quase nunca olhando para meu amigo ou para a mãe, que começou num atropelo: “Vocês me ajudam?”, “olha, não sou moradora de rua, viu? Moro na Barra Funda”.
Explicou, com uma receita médica aberta na mão, que vinha da Santa Casa, do outro lado da Angélica, e, pelo que entendi, depois tinha se encaminhado para o Samaritano, do qual acabava de sair e que indicava virando um pouco a cabeça para o lado. Tinha tentado obter lá os remédios para sua filha. Com muito frio e meio sonolenta, eu estava era aborrecida com a abordagem, e nenhum “não sou morador de rua” me iludiria de que aquela era menos maçante. Que esperança a senhora afagava com essa distinção? Não era a primeira vez que um desconhecido de classe média digamos baixa interrompia meu percurso e tampouco era a primeira vez que alguém pedia remédios, caso em que se colocava a opção de o próprio obsequiador fazer a compra de forma a se deixar claro que a finalidade não era lhe arrancar dinheiro vivo, e sim fazer este passar sem nenhuma pausa do bolso para o outro lado do balcão. Mas eu lá quero saber o que será feito do meu donativo? O que a gente quer é que a pessoa saia o mais rápido possível da nossa cola.
No entanto talvez porque fosse a quarta, quinta vez, era também a gota d’água: a cena repetida não me entorpecia mais pela sua trivialidade – não comparável à de mendigos, mas ainda assim trivialidade – me induzindo a uma ação maquinal, de recusa ou dádiva, e antes me levava agora à reflexão, melhor dizendo, à franca implicância não mora na rua? Ora, ora, e por isso seu pedido é mais ambicioso, ousando enfiar um atrás do outro na ponta da lança não um, nem dois, mas três remédios? Isso lhe dá condições de pensar mais alto que aqueles de quem você se distingue e tornar sua aproximação mais interessante, menos ordinária? Um singular evento num sábado ao qual o inverno não prometia muita coisa? De fato, era perto das cinco e até então eu tinha passado na cama. Vejamos, um medicamento é doze reais, outro trinta e poucos e sobre o terceiro não há palavras nem preço, só silêncio, hum… o qual talvez durasse mais se você não ajuntasse a sua muito enfadonha interpelação a justificativa de que a farmácia do Samaritano se negara a lhe dar os remédios gratuitamente. Você tem certeza disso? Pois saiba que eu liguei hoje no hospital, quase cinco dias após nosso encontro, e perguntei sobre a farmácia. “Ela é interna.” “Sim, eu sei, mas nela a gente pode comprar remédios normalmente?”. “Não, apenas para os pacientes.” “Para? Quem compra?” “Não, é para os pacientes internados.” Ora, está vendo? Nem mesmo comprar é possível lá. Trata-se de um depósito para abastecer as internações. Quem lhe disse que você poderia ganhá-los aqui? Não fiz essas perguntas à mulher obviamente, mas elas caíram em cacho na minha cabeça minutos depois que ela, genuinamente surpreendida com a nota de cem sacada pelo meu caridoso amigo – no começo, para mim, apenas uma nota azul, conciliadora e sem número, levemente sacudida sobre fiapos da minha hesitação, desconforto, confusão –, agradeceu algumas vezes, eufórica, dizendo que ia poder comprar também o outro remédio, aquele sobre o qual fizera silêncio. Então ela teria efetivamente se contentado com os dois primeiros da lista, e a mudez não fora uma figura de estilo? Vejam, esses primeiros dão mais ou menos 42,00, sobre o terceiro me calo, pois não peço tanto e depois vejo com outras pessoas. Sim, o finalzinho, que mostrava polidez e receio de incomodar, realmente saiu de sua boca, mas ouvi mais – já que andariam metade do caminho, por que não o fazem inteiro e liquidam a conta? Engano meu, ela não expressou isso nem esperava tanto e estava disposta a trabalhar um pouco mais dirigindo-se a outro passante.
Como disse, telefonei para o Samaritano, cujo número tinha antes colhido no portal que eles têm na internet. Aproveitei e cliquei no item “história”. Deve ser conhecida daqueles que o frequentam. Infelizmente o grau do meu plano privado não me permite mais transpor a entrada que a mulher supunha, numa imaginação desesperada, aberta a ela, e eu deveria escalar mais um ou dois níveis, com a mensalidade correspondente, para voltar a ter-lhe acesso. Assim é que é. Mas, continuando, a história em resumo é que aquela casa se chamava originalmente Hospital Sociedade Evangélica e (apesar do nome) teria sido inicialmente um hospital ecumênico, levantado em 1894, no dia do aniversário da cidade:
A ideia de criar um lugar que recebesse pessoas de todas as crenças, raças e nacionalidades, sem distinções, partiu de uma situação inesperada e constrangedora vivida por José Pereira Achao, um imigrante chinês protestante que chegou ao Brasil no final do século XIX.
Ao desembarcar com febre tifoide, José Achao foi para a Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo. Segundo as regras e os costumes, todo paciente não-católico era doutrinado e precisava converter-se ao catolicismo para ser atendido. Por isso, ao morrer em 1884, deixou todos os seus bens à Igreja Presbiteriana para que o seu sonho virasse realidade”.
José Pereira Achao, imigrante chinês presbiteriano. Chegou evidentemente não no final do século 19, como se lê acima e certamente por distração do redator, mas bem antes. Ele era de Macau, acrescenta o site do Conselho Regional de Medicina. Por efeito da minha ignorância acerca de Macau e das superposições imperialistas ou, o que dá no mesmo, de meu ouvido pouco habituado a chinês em português e português em presbiteriano, a composição me pareceu heteróclita, contudo menos curiosa que a avaliação do autor do texto de que Achao fora submetido na Santa Casa a uma “situação inesperada e constrangedora”. É uma dissonância igual ou maior, ou uma falta de perspectiva. É considerar o Achao do início como o Achao do cabo, ou vice-versa. Se estivesse ilustrada, ficaria mais visível a montagem de um Achao burguês, de bengala e casaca, sendo transportado em seu coche até a Santa Casa de Misericórdia, já na região que veio a se chamar Santa Cecília, e não em localização anterior, como rua da Glória, onde na verdade devia estar quando a conheceu, com o criado de libré descendo e dizendo à enfermeira que ele acabara de desembarcar no Porto de Santos e pegara a febre tifoide no navio abarrotado de gente que, como ele, vinha tentar a sorte e o pão de cada dia nestas terras remotas mas não menos abençoadas. Era depois de 1850, o tráfico de negros extinto, chinês é bom pra trabalhar, porém Achao é ecumênico, ponhamos republicano, macaense protestante morre em 1884 e deixa herdeiros, com doença de cargueiro, mestiço que vem mestiçar ainda mais a nossa terra, inesperado e constrangedor, mas ecumênico, samaritano etc.
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