O Sermão da Estepe
"Gandhi, poderíamos lançar mão da não-agressão contra os nazistas?" - perguntou certa vez uma jornalista inglesa ao líder da independência da Índia. A História relega Gandhi como uma excrescência sempre que precisa lidar – e precisa lidar sempre – com o evangelho segundo Talião. Mas o Gandhi franzino e arqueado interpretado magistralmente por Ben Kingsley conseguiu, ao menos momentaneamente, que o Sermão da Montanha descesse até a estepe de nossa História. Gandhi e sua utopia insinuam que será possível viver para além do choro e do ranger dentes. Por Flávio Ricardo Vassoler.
Por Flávio Ricardo Vassoler
Conheçam o soldado Smith, do 171º Destacamento de Contenção Colonial do Reino Unido (DCCRU).
− Soldado Smith, qual o dever do soldado?
Com a continência, a barba, a farda e o coturno devidamente aprumados, o soldado Smith articula ainda uma vez o discurso da servidão voluntária:
− Lutar, senhor, um soldado deve lutar, senhor!
Imaginemos que o 171º DCCRU seja enviado a Índia no imediato pós-Segunda Guerra para conter o exército atípico de Mohandas Karamchand, também conhecido como Mahatma Gandhi (1982), filme dirigido por Richard Attenborough. O soldado se vê em polvorosa, “minha primeira missão além-mar em nome da coroa, God save the Queen, Deus salve a Rainha!” O soldado Smith, engrenagem do algo combalido império colonial inglês – império ao longo de cujo horizonte o sol outrora não se punha, tamanha a quantidade de colônias de leste a oeste do planeta –, o soldado Smith não vê a hora de ensinar lições civilizatórias para “os súditos bronzeados da Grã-Bretanha”.
Olho por olho, dente por dente: um soldado deve lutar – e retaliar. O pelotão de Smith já deixou o encouraçado da Marinha Real e segue até a praia em lanchas amparadas pelos bombardeios dos caças da Royal Air Force, a Força Aérea de Sua Majestade. Cânticos de guerra são entoados, a coronha das metralhadoras colidem contra o chão, urros e mais urros, God save the Queen!, morte aos rebeldes, tiros para o alto, intimidação necessária, “eles estão em maior número, mas nós somos os ingleses, nós somos a civilização!”
Faca entre os dentes, todos temem que as bombas indianas levem o barco a pique, coletes, granadas, “a Índia é um continente, fanáticos em massa, há muitas buchas de canhão, precisamos ser duros, precisamos ser fortes, os soldados devemos lutar!” O soldado Smith e seu pelotão saltam da lancha em direção à praia. Ali, ali, logo ali eles veem os indianos perfilados, todos praticamente sem camisa, corpos bronzes em contraste com a areia bem branca, “eles estão escondendo algo, cuidado, soldados, atenção!” Tiros começam a ser disparados, tiros continuam a ser disparados, indianos tombam sem mais, logo novas fileiras de homens vão ocupando o lugar dos mortos, logo os soldados ingleses se dão conta de que não há retaliação, de que as balas partem apenas dos pescoços metálicos da Rainha, de que os indianos não vão reagir.
− Não, não é possível, mas o que é isso?! São todos mocinhas, onde está a resistência dos soldados, onde está a luta, onde está a guerra?!
O soldado Smith ouve de seu comandante que é preciso avançar ainda mais rapidamente, que é preciso tomar os pontos estratégicos, “logo ali há uma cabeça-de-ponte, é preciso tomar o forte, vamos!” Mas os canhões, outrora dedos em riste contra os invasores, agora estão silenciados. Os ingleses vão se aproximando, mas é preciso diminuir o passo, os indianos não se movem, é preciso diminuir o passo, do contrário o 171º DCCRU passaria por sobre o exército pacifista de Gandhi como um trator. No início do corpo-a-corpo ainda há muitas mortes, baionetas rasgam vísceras, tiros à queima-roupa, nenhum tiro de misericórdia, os ingleses veem os indianos estrebuchar, mas novos “soldados de bronze” tomam a dianteira e continuam a resistir sem lutar, como se a mera presença pacífica denunciasse aos ingleses que eles não estão em casa, que eles bem podem ser convidados, mas que não estão em casa, que, dessa maneira, não são bem-vindos, não são bons hóspedes e denigrem a civilização que dizem defender.
O soldado Smith mal pode acreditar no que vê. “Sempre fui educado para a guerra, ao tapa se responde com um soco, jamais com o perdão, jamais com a outra face!” O soldado Smith, marido de Karen, pai de Melanie e Julia, não pode acreditar em seus olhos, os punhos esfregam a visão para tentar corrigir a realidade, “não é possível, não é possível!” Pela primeira vez em sua vida taliônica, o soldado Smith, cristão anglicano, vê o Sermão da Montanha de Jesus Cristo ser encarnado por não-cristãos, por hindus, muçulmanos, sikhs, tâmeis, por aqueles que não se parecem com o Messias etnocêntrico do Ocidente, o loiro crucificado, e são os “bárbaros” de pele bronzeada que, pela primeira vez, ensinam ao soldado Smith o oferecimento da outra face.
Todos aqueles mortos voluntários – mortos em prol da independência, pacifistas que resistem – escancaram para os ingleses o sadismo do processo colonial. Quando um soco se contrapõe a um chute, agressor e agredido se fundem e se confundem. Mas Gandhi propõe a não-agressão como forma de mostrar ao dominador que a dominação é o grande ultraje, que o senhor está tão aguilhoado quanto o escravo. Não-agressão politicamente orientada. “Não reagiremos e também não trabalharemos. As tecelagens inglesas não podem fazer com que os artesãos indianos morram de fome. Se nossa costa é tão pródiga e vasta como duas arestas de um triângulo, por que a Índia precisa importar sal? É preciso romper o monopólio colonial, mas não pode haver agressões, não pode haver dissensões, não somos apenas hindus, muçulmanos, sikhs, tâmeis e cristãos, somos indianos, somos seres humanos.
Nossa divisão beneficia os dominadores – é preciso cindir para reinar –, permaneçamos unidos, que nossos gritos de dor denunciem aos carrascos e a seus comandantes que a paz consciente é a única (não-)arma contra a submissão”.
Mohandas Karamchand Gandhi, um anarquista.
− Anarquista?! – brada o soldado Smith já em meio a convulsões e síncopes por não saber a quem atingir, por não poder disparar, por não querer disparar, já profundamente atormentado pela dor dos indianos que golpeou, pelo rosto de súplica daqueles que prostrou. O soldado Smith aprendeu a compaixão ao descobrir que, sob a farda do soldado, se esgueira a pele do verdugo. A não-agressão mostra ao agressor o caráter relacional de sua desumanidade. Quando dois se aniquilam segundo as premissas de Talião, a agressão recíproca inviabiliza a consciência para além da vingança. Mas o dorso prostrado e o grito de súplica pedem ajudam, clamam por misericórdia, ensinam a compaixão. “Como é que eu vou beijar minhas filhas quando chegar em casa? Eu não vou mais conseguir fazer amor com a minha mulher!” (A sociopatologia civilizada bem sabe lançar mão de seu braço psiquiátrico para sedar as angústias do ex-soldado Smith, aquele que lidou, em alguns poucos momentos, com a possibilidade de um outro mundo.)
Mohandas Karamchand Gandhi, um anarquista. Que é o anarquismo senão a autoconsciência socialmente totalizada, de modo que o eu se saiba parte indissolúvel do todo sem que para isso precise ser subsumido pela massa que clama pelo Führer Júlio César? Que é o anarquismo senão a introjeção das estruturas de autolimite e reciprocidade para que a cooperação passe a ser base das relações? Gandhi bem sabia que a humanidade precisa caminhar muito para alcançar tal compreensão. Mas Gandhi, o anarquista espiritual, pavimenta a utopia sobre a pressuposição da eternidade. “Assim os homens e as mulheres podem evoluir. Assim poderemos ser outros. Assim poderemos ser nosotros”.
Mas o Sermão da Estepe que Gandhi traz à tona enfrenta todo o tipo de ceticismo e de impossibilidades históricas. Uma jornalista inglesa, admiradora declarada do líder que se apresenta como discípulo, precisa contrapor uma pergunta que a Europa recém-saída das garras de Adolf Hitler não pode silenciar:
− Gandhi, poderíamos lançar mão da não-agressão contra os nazistas?
Gandhi permanece em silêncio. Ele sabe que, após a independência da Índia, será difícil conter a guerra fratricida e religiosa entre hindus e muçulmanos – muçulmanos que ele trata como iguais, como irmãos. Mas a pergunta da jornalista inglesa ainda ressoa. Seria possível oferecer a outra face a Adolf Hitler? Seria possível perdoá-lo? Talvez a prédica de Gandhi insinue que, se Hitler saísse de seu bunker e deixasse de terceirizar a legião de asseclas e verdugos, seria possível sentir a dor conjunta, o pathos conjunto, a com-paixão. Nesse caso, o carrasco não teria que receber o perdão. Antes de mais nada, o carrasco teria a árdua tarefa de perdoar a si mesmo. A História relega Gandhi como uma excrescência sempre que precisa lidar – e precisa lidar sempre – com o evangelho segundo Talião. Mas o Gandhi franzino e arqueado interpretado magistralmente por Ben Kingsley conseguiu, ao menos momentaneamente, que o Sermão da Montanha descesse até a estepe de nossa História. Gandhi e sua utopia insinuam que será possível viver para além do choro e do ranger dentes quando o leitor e a leitora do fragmento abaixo sentirmos que há pureza e elevação na súplica do algoz para além da ironia cáustica. Senão, vejamos:
O condenado sobe ao cadafalso.
Apupos da multidão sedenta.
Sob a máscara, o carrasco o espera.
O condenado deve ajoelhar-se.
O condenado deve acoplar o pescoço ao talhe de madeira.
Tão logo o condenado estique os braços trêmulos, o machado despencará.
Logo, já não haverá choro e ranger de dentes.
Antes de içar a lâmina, o algoz suplica ao condenado:
– Você me perdoa?
(*) Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Todas as segundas-feiras, às 19h, apresenta, ao vivo, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z: . Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
− Soldado Smith, qual o dever do soldado?
Com a continência, a barba, a farda e o coturno devidamente aprumados, o soldado Smith articula ainda uma vez o discurso da servidão voluntária:
− Lutar, senhor, um soldado deve lutar, senhor!
Imaginemos que o 171º DCCRU seja enviado a Índia no imediato pós-Segunda Guerra para conter o exército atípico de Mohandas Karamchand, também conhecido como Mahatma Gandhi (1982), filme dirigido por Richard Attenborough. O soldado se vê em polvorosa, “minha primeira missão além-mar em nome da coroa, God save the Queen, Deus salve a Rainha!” O soldado Smith, engrenagem do algo combalido império colonial inglês – império ao longo de cujo horizonte o sol outrora não se punha, tamanha a quantidade de colônias de leste a oeste do planeta –, o soldado Smith não vê a hora de ensinar lições civilizatórias para “os súditos bronzeados da Grã-Bretanha”.
Olho por olho, dente por dente: um soldado deve lutar – e retaliar. O pelotão de Smith já deixou o encouraçado da Marinha Real e segue até a praia em lanchas amparadas pelos bombardeios dos caças da Royal Air Force, a Força Aérea de Sua Majestade. Cânticos de guerra são entoados, a coronha das metralhadoras colidem contra o chão, urros e mais urros, God save the Queen!, morte aos rebeldes, tiros para o alto, intimidação necessária, “eles estão em maior número, mas nós somos os ingleses, nós somos a civilização!”
Faca entre os dentes, todos temem que as bombas indianas levem o barco a pique, coletes, granadas, “a Índia é um continente, fanáticos em massa, há muitas buchas de canhão, precisamos ser duros, precisamos ser fortes, os soldados devemos lutar!” O soldado Smith e seu pelotão saltam da lancha em direção à praia. Ali, ali, logo ali eles veem os indianos perfilados, todos praticamente sem camisa, corpos bronzes em contraste com a areia bem branca, “eles estão escondendo algo, cuidado, soldados, atenção!” Tiros começam a ser disparados, tiros continuam a ser disparados, indianos tombam sem mais, logo novas fileiras de homens vão ocupando o lugar dos mortos, logo os soldados ingleses se dão conta de que não há retaliação, de que as balas partem apenas dos pescoços metálicos da Rainha, de que os indianos não vão reagir.
− Não, não é possível, mas o que é isso?! São todos mocinhas, onde está a resistência dos soldados, onde está a luta, onde está a guerra?!
O soldado Smith ouve de seu comandante que é preciso avançar ainda mais rapidamente, que é preciso tomar os pontos estratégicos, “logo ali há uma cabeça-de-ponte, é preciso tomar o forte, vamos!” Mas os canhões, outrora dedos em riste contra os invasores, agora estão silenciados. Os ingleses vão se aproximando, mas é preciso diminuir o passo, os indianos não se movem, é preciso diminuir o passo, do contrário o 171º DCCRU passaria por sobre o exército pacifista de Gandhi como um trator. No início do corpo-a-corpo ainda há muitas mortes, baionetas rasgam vísceras, tiros à queima-roupa, nenhum tiro de misericórdia, os ingleses veem os indianos estrebuchar, mas novos “soldados de bronze” tomam a dianteira e continuam a resistir sem lutar, como se a mera presença pacífica denunciasse aos ingleses que eles não estão em casa, que eles bem podem ser convidados, mas que não estão em casa, que, dessa maneira, não são bem-vindos, não são bons hóspedes e denigrem a civilização que dizem defender.
O soldado Smith mal pode acreditar no que vê. “Sempre fui educado para a guerra, ao tapa se responde com um soco, jamais com o perdão, jamais com a outra face!” O soldado Smith, marido de Karen, pai de Melanie e Julia, não pode acreditar em seus olhos, os punhos esfregam a visão para tentar corrigir a realidade, “não é possível, não é possível!” Pela primeira vez em sua vida taliônica, o soldado Smith, cristão anglicano, vê o Sermão da Montanha de Jesus Cristo ser encarnado por não-cristãos, por hindus, muçulmanos, sikhs, tâmeis, por aqueles que não se parecem com o Messias etnocêntrico do Ocidente, o loiro crucificado, e são os “bárbaros” de pele bronzeada que, pela primeira vez, ensinam ao soldado Smith o oferecimento da outra face.
Todos aqueles mortos voluntários – mortos em prol da independência, pacifistas que resistem – escancaram para os ingleses o sadismo do processo colonial. Quando um soco se contrapõe a um chute, agressor e agredido se fundem e se confundem. Mas Gandhi propõe a não-agressão como forma de mostrar ao dominador que a dominação é o grande ultraje, que o senhor está tão aguilhoado quanto o escravo. Não-agressão politicamente orientada. “Não reagiremos e também não trabalharemos. As tecelagens inglesas não podem fazer com que os artesãos indianos morram de fome. Se nossa costa é tão pródiga e vasta como duas arestas de um triângulo, por que a Índia precisa importar sal? É preciso romper o monopólio colonial, mas não pode haver agressões, não pode haver dissensões, não somos apenas hindus, muçulmanos, sikhs, tâmeis e cristãos, somos indianos, somos seres humanos.
Nossa divisão beneficia os dominadores – é preciso cindir para reinar –, permaneçamos unidos, que nossos gritos de dor denunciem aos carrascos e a seus comandantes que a paz consciente é a única (não-)arma contra a submissão”.
Mohandas Karamchand Gandhi, um anarquista.
− Anarquista?! – brada o soldado Smith já em meio a convulsões e síncopes por não saber a quem atingir, por não poder disparar, por não querer disparar, já profundamente atormentado pela dor dos indianos que golpeou, pelo rosto de súplica daqueles que prostrou. O soldado Smith aprendeu a compaixão ao descobrir que, sob a farda do soldado, se esgueira a pele do verdugo. A não-agressão mostra ao agressor o caráter relacional de sua desumanidade. Quando dois se aniquilam segundo as premissas de Talião, a agressão recíproca inviabiliza a consciência para além da vingança. Mas o dorso prostrado e o grito de súplica pedem ajudam, clamam por misericórdia, ensinam a compaixão. “Como é que eu vou beijar minhas filhas quando chegar em casa? Eu não vou mais conseguir fazer amor com a minha mulher!” (A sociopatologia civilizada bem sabe lançar mão de seu braço psiquiátrico para sedar as angústias do ex-soldado Smith, aquele que lidou, em alguns poucos momentos, com a possibilidade de um outro mundo.)
Mohandas Karamchand Gandhi, um anarquista. Que é o anarquismo senão a autoconsciência socialmente totalizada, de modo que o eu se saiba parte indissolúvel do todo sem que para isso precise ser subsumido pela massa que clama pelo Führer Júlio César? Que é o anarquismo senão a introjeção das estruturas de autolimite e reciprocidade para que a cooperação passe a ser base das relações? Gandhi bem sabia que a humanidade precisa caminhar muito para alcançar tal compreensão. Mas Gandhi, o anarquista espiritual, pavimenta a utopia sobre a pressuposição da eternidade. “Assim os homens e as mulheres podem evoluir. Assim poderemos ser outros. Assim poderemos ser nosotros”.
Mas o Sermão da Estepe que Gandhi traz à tona enfrenta todo o tipo de ceticismo e de impossibilidades históricas. Uma jornalista inglesa, admiradora declarada do líder que se apresenta como discípulo, precisa contrapor uma pergunta que a Europa recém-saída das garras de Adolf Hitler não pode silenciar:
− Gandhi, poderíamos lançar mão da não-agressão contra os nazistas?
Gandhi permanece em silêncio. Ele sabe que, após a independência da Índia, será difícil conter a guerra fratricida e religiosa entre hindus e muçulmanos – muçulmanos que ele trata como iguais, como irmãos. Mas a pergunta da jornalista inglesa ainda ressoa. Seria possível oferecer a outra face a Adolf Hitler? Seria possível perdoá-lo? Talvez a prédica de Gandhi insinue que, se Hitler saísse de seu bunker e deixasse de terceirizar a legião de asseclas e verdugos, seria possível sentir a dor conjunta, o pathos conjunto, a com-paixão. Nesse caso, o carrasco não teria que receber o perdão. Antes de mais nada, o carrasco teria a árdua tarefa de perdoar a si mesmo. A História relega Gandhi como uma excrescência sempre que precisa lidar – e precisa lidar sempre – com o evangelho segundo Talião. Mas o Gandhi franzino e arqueado interpretado magistralmente por Ben Kingsley conseguiu, ao menos momentaneamente, que o Sermão da Montanha descesse até a estepe de nossa História. Gandhi e sua utopia insinuam que será possível viver para além do choro e do ranger dentes quando o leitor e a leitora do fragmento abaixo sentirmos que há pureza e elevação na súplica do algoz para além da ironia cáustica. Senão, vejamos:
O condenado sobe ao cadafalso.
Apupos da multidão sedenta.
Sob a máscara, o carrasco o espera.
O condenado deve ajoelhar-se.
O condenado deve acoplar o pescoço ao talhe de madeira.
Tão logo o condenado estique os braços trêmulos, o machado despencará.
Logo, já não haverá choro e ranger de dentes.
Antes de içar a lâmina, o algoz suplica ao condenado:
– Você me perdoa?
(*) Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Todas as segundas-feiras, às 19h, apresenta, ao vivo, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z: . Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
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