Ao governo sírio, não interessava fazê-lo. À oposição, que inclui Al Qaeda, certamente sim. Mas outras razões mobilizam Washington
Phyllis Bennis E David Wildman
Phyllis Bennis E David Wildman
A ameaça de um ataque imprudente, perigoso e ilegal contra a Síria, cometido ou conduzido pelos Estados Unidos, pode estar mais próxima do que nunca.
O governo norte-americano dividiu-se sobre a crise na Síria desde que ela começou. Algumas vozes, em especial no Pentágono e nas agências de inteligência, afirmaram que intervenções militares diretas seriam perigosas e não resultariam em nada. Outras, principalmente no Congresso e no Departamento de Estado, pediram ataques militares e até derrubada do regime de Damasco, antes mesmo qualquer alegação sobre armas químicas. A equipe de Obama também esteve dividida, com a aparente oposição do presidente a um ataque. Já os norte-americanos não estão divididos: 60% são contra intervenções na guerra civil Síria, mesmo que ela envolva uso de armas químicas.
Mas a situação está mudando rapidamente e o governo Obama parece estar movendo na direção de uma intervenção militar. Isto tornaria a trágica situação na Síria ainda pior.
O ataque que matou tantos civis, incluindo muitas crianças na quarta-feira passada pode ter sido provocado por uma arma química. Os Médicos Sem Fronteiras, que apoiam diretamente os hospitais locais, afirmaram que os sintomas indicam exposição de milhares de pacientes a um agente neurotóxico; mas que “não podem nem confirmar cientificamente a causa destes sintomas, nem estabelecer quem é responsável pelo ataque.” A equipe de inspeção de armas químicas das Nações Unidas, que já está na Síria para investigar denúncias anteriores, teve permissão, assegurada pelo governo de Damasco, para visitar o local dos novos incidentes; mas ainda não apresentou relato.
Ninguém sabe ainda o que de fato aconteceu, além de outro ataque horrível a civis, muitos dos quais morreram. Ninguém ainda tornou pública nenhuma evidência do que os matou ou de quem é o responsável. Todos os ataques aos civis são crimes de guerra – independentemente se feitos pelo exército sírio, por milícias ou mísseis norte-americanos.
Ainda assim, vão se multiplicando suposições e apelos tendentes a ataque norte-americano à Síria. A NBC News relata que os Estados Unidos têm “muito poucas dúvidas” de que o governo sírio tinha usado armas químicas. O The Wall Street Journalcita um “oficial do exército” anônimo, segundo o qual, se os ataques militares forem considerados, serão conduzidos a partir de embarcações no Mediterrâneo Oriental, usando mísseis de longo alcance, sem recorrer a aeronaves tripuladas. “Você não precisa de cobertura. Você não precisa de sobrevoo. Você não precisa preocupar-se em se defender.”
Apesar do pronunciamento do secretário de Estado John Kerry, referindo-se a um ataque químico “inegável”, ainda não sabemos ao certo se empregou-se arma química, e certamente também não sabemos quem atacou. Kerry falou esta tarde, chamando o ataque de uma “obscenidade moral.” Se tiver havido um ataque químico, como parece provável, a qualificação é correta. Porém, mais de 100 mil pessoas foram mortas, até agora, nesta guerra e milhões foram forçadas a saírem de suas casas. Isso tudo não são obscenidades morais?
“Mesmo se”…
Kerry parece acreditar que esta obscenidade moral requer ação militar como resposta. O senadores republicanos John McCain e Lindsey Graham também o disseram mais cedo. Mas eles estão errados. É provável que um agente químico de algum tipo tenha levado ao sofrimento em massa e à morte de muitos, no subúrbio de Damasco. E talvez o regime sírio tenha sido o responsável por isto. As questões que precisam ser feitas, as questões “mesmo se”, teriam que começar por “nesse caso, o que faríamos?”
Alguém realmente acredita que um ataque militar a uma suposta fábrica de armas químicas ajudaria o povo sírio, salvaria vidas, ajudaria a encerrar esta terrível guerra civil? O melhor que poderíamos esperar é que um ataque por meio mísseis, disparados de uma embarcação, fosse bem sucedido, encontrasse precisamente seu alvo e explodisse um armazém repleto de agentes químicos provocando fumaça de resíduos mortais.
Ilegal “mesmo se”…
O governo dos Estados Unidos está criando uma falsa dicotomia – ou se lança ataque militar, ou nós os deixamos escapar. Não se cogita algum outro tipo de responsabilização, nada como a Corte Penal Internacional. No mês passado, o grupo de advogados da Casa Branca notou que armar os rebeldes sírios poderia violar a lei internacional. Eles acham, então, que um ataque por mísseis estaria bem? Ouvimos o presidente Obama referir-se, alguns dias atrás, à lei internacional. Ele disse: “se os Estados Unidos intervierem e atacarem outro país sem um mandato das Nações Unidas e sem apresentação de evidências claras, haverá questionamentos sobre se a lei internacional aprova ou não o ato… e estas são considerações que devem ser feitas.”
Mas o que estamos ouvindo agora é que o modelo a considerar, num ataque dos Estados Unidos à Síria, seria o de Kosovo. Lembram-se dele, em 1999, no fim da Guerra da Bósnia? Naquele tempo, sabendo que era impossível conseguir um acordo do Conselho de Segurança para uma guerra aérea contra a Sérvia, em torno do disputado enclave de Kosovo, os Estados Unidos e seus aliados simplesmente anunciaram que conseguiriam uma permissão internacional em outro lugar. Este seria o alto comando da OTAN. Que surpresa…: os generais da OTAN concordaram com seus respectivos presidentes e primeiros-ministros, e disseram: “claro, pensamos que é uma ótima ideia”. O problema é que a Carta das Nações Unidas é bastante clara sobre o que constitui uso da força militar – e uma permissão da OTAN não está incluída nesta pequena lista. Se o Conselho de Segurança não aprova, e não há motivos para imediata auto-defesa (algo que os EUA não estão alegando em relação à Síria), qualquer uso ou ameaça de uso da força militar é ilegal. Ponto. Fim. Alegar que a OTAN, ou quem quer que seja, aprova uma ação, não faz parte das leis internacionais. A guerra aérea era ilegal em Kosovo, e seria ilegal na Síria.
Cui Bono… (A quem beneficia?)
Mas vamos voltar um minuto. Vamos lembrar que nós não temos certeza de que foi uma arma química. Nós não temos certeza de que foi mesmo uma arma. Principalmente, vamos lembrar de que nós não temos nenhuma evidência sobre quem fez uso de tal arma. Então o que perguntamos? Talvez possamos começar com a boa e velha pergunta, cui bono? A quem beneficia a ação?
É fácil dizer quem perde – o povo sírio, principalmente as vítimas e suas famílias. Comunidades inteiras estão sendo dizimadas. (Não devemos esquecer que os norte-americanos também pagarão um preço – uma nova guerra vai resultar em mais gastos militares. Isso vai criar pressão no Congresso para cortar ainda mais gastos, cortando programas sociais vitais e muito mais.)
Mas a quem beneficia é um pouco mais complicado.
Certamente, não é impossível que o regime sírio, conhecido por ter tido um arsenal de armas químicas, tenha-as utilizado tal arma. Se o fez, por quê? Apesar de permanecer sob a pressão das sanções e de enfrentar crescente isolamento internacional, Damasco tem alcançado algum sucesso no campo de batalha. É certamente possível que um oficial intermediário da Síria, preocupado com derrotas passadas e desesperado com risco de ser acusado por elas, tenha optado por usar tais arma para obter alguma vitória macabra no campo de batalha, apesar de agravar as ameaças de uma intervenção militar direta. Mas é bastante improvável que a liderança do regime tenha feito tal escolha. Não pelo fato de que “eles não matariam o próprio povo”: eles têm feito isso. Mas porque o risco de perda era muito maior que que qualquer chance de ganho. Não é impossível. Mas, por mais brutal que seja este regime, ele não é louco.
Mas há ainda o outro lado, uma oposição heterogênea cujos combatentes mais fortes proclamam fidelidade à Al Qaeda e a organizações extremistas semelhantes. Aqueles que se beneficiam desse ataque são os que anseiam por maior intervenção militar ocidental e dos EUA contra o regime de Assad, em Damasco. Além disso, Al Qaeda e suas ramificações sempre quiseram colocar o exército norte-americano – tropas, aviões de guerra, navios, bases, seja o que for – em seu território. É tão mais fácil atacá-los de lá… Politicamente, mantém-se o que os agentes de contra-espionagem dos EUA nomearam, há muito tempo, como “ferramenta de recrutamento” da Al Qaeda. Eles amam a guerra do Iraque por esse motivo. E amariam ainda mais a guerra da Síria, se os alvos norte-americanos fossem levados para lá. Todo o debate sobre linhas-vermelhas, a pressão interna e internacional para “fazer alguma coisa,” as ameaças aos inspetores das Nações Unidas em solo… Quem, na Síria, estaria torcendo por isso?
(E quanto à capacidade da oposição e a seu ânimo em usar tais armas… nós também deveríamos lembrar que a oposição inclui alguns desertores. Quem sabe quais habilidades e acesso a armas eles levaram consigo? E nós realmente duvidamos que os extremistas da Al Qaeda, muitos dos quais não são nem mesmo sírios, hesitariam em matar civis em um subúrbio de Damasco?)
Inspetores das Nações Unidas estão de fora?
O sinal mais perigoso das intenções dos Estados Unidos é, provavelmente o apelo ao que os inspetores de armas das Nações Unidas deixem a Síria. Em favor do secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, deve-se lembrar que rejeitou o pedido do governo Obama, e manteve a equipe de inspetores no local, para que fizesse seus trabalho.
Mas às vésperas da guerra no Iraque, 48 horas antes de as aeronaves dos Estados Unidos lançarem seu ataque a Bagdad, George W. Bush pediu ainda mais diretamente o afastamento de inspetores de armas e das equipes humanitárias das Nações Unidas. Em seguida, o secretário-geral Kofi Annan recuou, porque temeu, compreensivelmente, pela vida de seu pessoal. Mas e se aqueles funcionários das Nações Unidas tivessem tido a opção de ficar? Será que o risco de matar dezenas de funcionários internacionais da ONU teria feito os Estados Unidos pararem apenas por um momento, antes de iniciarem os ataques? Talvez tais funcionários tivessem mudado a história. Desta vez, como da outra, a diplomacia, ao invés da ação militar, é a única maneira de permitir que os inspetores das Nações Unidas continuem o trabalho de buscar a verdade.
Vamos ser claros. Qualquer ataque militar norte-americano, mísseis ou qualquer outra coisa, não vai proteger os civis. Significará, mais uma vez, assumir um lado, em uma complicada e sangrenta guerra civil. E a Al Qaeda ficará muito grata.
Desta vez, talvez o governo Obama não esteja prestes a lançar mísseis contra a Síria. Talvez ainda haja tempo para evitá-los. Agora, aqueles que estão arriscando suas vidas em solo para ajudar o povo sírio são os inspetores das Nações Unidas. Se os Estados Unidos estão realmente preocupado com a segurança deles, e reconhecem a legitimidade dos inspetores da ONU, o governo Obama deve imediatamente engajar-se com a liderança de Ban Ki-Moon e com os governos sírio, russo e outros relevantes, para garantir a segurança deles enquanto continuam seus esforços cruciais. Mísseis vindos do oceano tornarão isso impossível. O que é necessário agora é diplomacia dura e não ataques politicamente motivados, que tornarão esta guerra horrível ainda pior.
Tradução Cristiana Martin
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