Falésias indicam que mar subiu cerca de 60 metros no Norte e no Nordeste entre 25 e 16 milhões de anos atrás
MARCOS PIVETTA
MARCOS PIVETTA
De acordo com os dados dos geólogos, o solo em muitas partes da costa brasileira teria afundado algumas dezenas de metros entre 25 e 16 milhões de anos atrás em razão de tectonismos. Embora, nesse período, os oceanos ainda não tivessem atingido seu pico de alta global, o rebaixamento do relevo em trechos do litoral do Norte e do Nordeste abriu caminho para a entrada no continente de material vindo do mar: criou bacias propícias para receber e armazenar sedimentos trazidos pelo Atlântico. Dessa forma, a subida do nível do oceano em trechos da costa brasileira resultou na deposição de sedimentos que deram origem à Formação Barreiras e também à Formação Pirabas, esta última ligeiramente mais antiga e de menor extensão.
A hipótese dos pesquisadores se baseia numa constatação que ganhou força nas duas últimas décadas. Diferentemente do que sempre se acreditou, a costa brasileira não está situada numa região geológica totalmente estável. Embora todo o território nacional esteja assentado no meio da placa tectônica Sul-Americana, característica que o torna livre de grandes terremotos, a ocorrência de abalos sísmicos de nível médio e de alterações relevantes na altitude dos terrenos se dá com certa frequência. “A topografia é dinâmica”, afirma o geólogo Francisco Hilário Rego Bezerra, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), outro autor do artigo. “Nossa costa era considerada estável, mas nosso trabalho mostra que não é bem assim. Existem evidências da presença de muitas falhas tectônicas nessa região e de que elas foram reativadas no Mioceno. Na verdade, há evidências de que ainda devem estar ativas até hoje.”
De forma simplificada, três grandes fatores podem influenciar a altura do mar num trecho da costa: o nível global de todos os oceanos; a estabilidade local do terreno (se ele está afundando ou levantando por causa de movimentos tectônicos); e a ocorrência de processos erosivos, que desgastam a superfície, ou de deposição de sedimentos, que acrescentam camadas ao solo. De acordo com a intensidade de cada fator, a tendência global de aumento (ou redução) do nível do mar pode ser amplificada, mitigada ou mesmo anulada numa escala local ou regional. Parece contraditório, mas não é. Devido à interação desses fatores, o mar pode subir apenas em um ou em alguns pontos de uma costa, como no caso do Norte e do Nordeste durante o Mioceno, enquanto ocorre uma queda ou estabilização no nível dos oceanos na maior parte do planeta. “Os continentes não se mantêm fixos no plano vertical”, explica José Dominguez, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), outro autor do estudo, especialista em geologia marinha. “Eles estão sempre se deslocando.”
A borda leste da América do Sul está associada a um cenário geologicamente mais calmo e estável do que a oeste. Moldada durante o Mioceno pela subida dos Andes, fruto do choque das placas tectônicas Nazca e Antártica com a margem ocidental da placa Sul-Americana, a costa do Pacífico é até hoje frequentemente sacudida por movimentos tectônicos de forte intensidade. “Os Andes subiram aproximadamente 4 quilômetros durante o Mioceno”, diz Dilce, cujos estudos são parcialmente financiados pela FAPESP. O último grande evento que moldou o relevo da região foi a separação da América do Sul do continente africano, iniciada há mais de 100 milhões de anos. A fratura que separou os dois blocos de terra foi preenchida pelas águas do Atlântico. Mas, como sugerem as pesquisas do trio de geólogos, isso não quer dizer que, desde então, não houve tremores e movimentações de terra ao longo da costa brasileira.
IntemperismosUma das dificuldades em demonstrar que as falésias do Norte e do Nordeste podiam ser um indicativo de quanto subiu o nível do mar localmente há cerca de 20 milhões de anos estava associada a incertezas em torno da idade e do caráter da Formação Barreiras. Os estudos afirmavam que os sedimentos dessa formação teriam sido depositados a no máximo 5 milhões de anos atrás, remetendo, portanto, ao Plioceno, época geológica imediatamente posterior ao Mioceno. Hoje está comprovado que a argila e a areia que compõem a Formação Barreiras foram depositadas bem antes disso. Outro ponto obscuro eram os locais onde os sedimentos dessa formação teriam se acumulado. Até uns poucos anos atrás, a maioria dos autores dizia que os sedimentos teriam sido depositados em áreas continentais, principalmente em ambientes fluviais e lagos. No entanto, nas duas últimas décadas, uma série de estudos, muitos conduzidos por Dilce Rossetti, revelou a verdadeira natureza do material que está na base de muitas falésias da costa brasileira: a invasão de certos trechos do continente pelas águas salgadas do Atlântico carreou sedimentos marinhos para sua borda leste.
Devido à sua composição pobre em carbonatos, a Formação Barreiras tende a não conservar um bom registro fóssil de animais que ali viveram no passado remoto. Encontrar os vestígios diretos de um organismo marinho preservado nesses sedimentos é praticamente impossível. O intemperismo atual (e o do passado) também contribui para a destruição de eventuais fósseis nessa unidade geológica. Essas peculiaridades fizeram com que, num primeiro momento, fosse um desafio associar essa formação a uma origem marinha.
Marcas de maréNo entanto, os pesquisadores conseguiram reunir nos últimos anos uma série de indícios de que essa formação foi, em grande medida, gerada em áreas costeiras, influenciadas principalmente por correntes de maré. O vaivém da maré faz com que os sedimentos sejam levados para frente e para trás. Essas oscilações resultam em marcas nos sedimentos que revelam a sua gênese e se diferenciam de qualquer outro agente de sedimentação. Marcas produzidas por correntes de maré são abundantes na Formação Barreiras. Embora o corpo em si de antigos animais oriundos do Atlântico não se preserve nessa unidade geológica, a presença desse tipo de organismo é atestada nesses depósitos sedimentares pela existência de icnofósseis típicos de ambientes marinhos ou de água salobra. Icnofósseis são evidências indiretas da presença de organismos, como rastros, tocas ou pegadas, preservadas em camadas geológicas. “Também temos registros de pólens de plantas do Mioceno na Formação Barreiras”, afirma Dilce.
Todos esses sinais passam despercebidos a olhos de leigos mais desavisados, como pode ter sido o caso de Pero Vaz de Caminha e de tantos turistas atuais, que viajam pelas costas do Norte e Nordeste em busca de belas paisagens, algumas delas esculpidas pelo encontro de falésias da Formação Barreiras com o mar. Mas não para o olhar treinado de geólogos que se aproveitam dessas evidências para revelar o vaivém do nível dos oceanos ao longo do tempo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário