domingo, 20 de outubro de 2013

"Quem são os responsáveis pela paralisia do governo nos EUA? Os mesmos idiotas responsáveis pela crise de 2008"


Ao fazer oposição ao Obamacare, a direita populista-radical expõe as distorções de sua própria ideologia

Slavoj Zizek
Em abril de 2009 eu estava descansando num quarto de hotel em Syracuse, alternando entre dois canais: um documentário da PBS sobre Pete Seeger, o grande cantor americano de música country da esquerda; e uma reportagem da Fox News sobre o anti-tributário Tea Party, com um cantor de música country apresentando uma canção populista sobre como Washington está tributando os cidadãos comuns e trabalhadores para financiar os financistas de Wall Street. Havia uma estranha similaridade entre os dois cantores: ambos articulavam acusações anti-estabilishment e populistas contra os ricos exploradores e seu Estado; ambos clamavam por medidas radicais, incluindo a desobediência civil.
Era mais uma lembrança dolorosa de como os atuais populistas-radicais de direita nos fazem recordar dos antigos populistas-radicais de esquerda (os grupos cristãos sobrevivencialistas-fundamentalistas de hoje, com sua situação de semilegalidade, não são organizados como os Panteras Negras na década de 1960?). É uma manipulação ideológica magistral: a pauta do Tea Party é fundamentalmente irracional, já que ela pretende proteger os interesses dos trabalhadores comuns ao privilegiar os "exploradores ricos", portanto contrariando os seus interesses.
A ideologia distorcida também está por trás da atual paralisia do governo federal nos EUA. Uma pesquisa de opinião no final de junho de 2012 demonstrou que a maioria dos americanos, embora se opusesse ao Obamacare, apoiava de maneira contundente a maior parte de suas provisões. Eis que encontramos a ideologia do Tea Party em sua forma mais pura: a maioria quer ter o seu bolo ideológico, mas quer comer o doce de verdade. Eles querem os benefícios concretos de uma reforma no sistema de saúde, ao passo que rejeitam seu formato ideológico, que é visto como uma ameaça à "liberdade de escolha". Eles rejeitam o conceito de fruta, mas eles querem maças, ameixas e morangos.
Alguns devem se lembrar dos esforços comunistas contra a liberdade burguesa "formal". Por mais ridícula que fosse essa argumentação, há um fundo de verdade nessa distinção entre a liberdade "formal" e a "real". Umgerente numa empresa em crise tem a "liberdade" para demitir funcionários, mas não a liberdade para mudar a situação que impõe a ele suas escolhas. Nós acompanhamos isso, também, na discussão sobre o sistema de saúde americano: o Obamacare entregaria a várias pessoas a "liberdade" questionável de se preocuparem com quem cobriria suas enfermidades.
Liberdade de escolha é algo que só funciona com a existência de uma complexa rede de condições legais, educacionais, éticas e econômicas - limitações que formam o alicerce invisível para o exercícios da nossa liberdade. É por isso que, como antídoto à ideologia populista da direita pró-escolha, países como a Noruega deveriam ser ressaltados como um modelo: apesar de todos os principais agentes respeitarem um acordo acordo social básico, e de grandes projetos sociais serem promulgados em solidariedade, a economia está prosperando (e não apenas por causa das reservas de petróleo), contradizendo peremptoriamente o senso comum de que uma sociedade como esta estaria estagnada.

Não são muitos os que sabem - e poucos ainda apreciam a ironia do fato - de que a icônica música de Frank Sinatra, My Way (Minha maneira, em tradução livre) - que supostamente sintetiza a postura individualista americana - é na verdade uma versão da canção francesa Comme d'Habitude, que significa "como sempre, como de hábito". É muito fácil enxergar isso como outro exemplo da oposição entre a esterilidade dos hábitos franceses e a inventividade americana. Mas e se essa for uma oposição falsa? E se, para que eu possa fazer as coisas do meu jeito, precisar contar que as coisas caminhem comme d'habitude? Muitas coisas precisam ser reguladas se nós quisermos desfrutar da nossa liberdade sem regulações.
Frequentemente ouvimos que a paralisia do governo dos EUA é resultado de brigas partidárias, que os políticos deveriam se colocar acima disso e encontrar solução bipartidárias para o bem da nação. Não apenas o Tea Party, mas Barack Obama também é acusado de dividir a população americana em vez de a unir. Mas se isso, precisamente, for uma qualidade positiva de Obama? Em situações de crise profunda, uma divisão autêntica é urgentemente necessária: uma divisão entre aqueles que querem se arrastar dentro dos antigos parâmetros e aqueles que estão atentos à necessidade de mudanças radicais. Este, e não o consenso oportunista, é o único caminho para a união verdadeira.
Uma das consequências bizarras da crise financeira de 2008 e das medidas tomadas para combatê-la (enormes somas de dinheiros para ajudar os bancos) foi a ressurgência da obra de Ayn Rand, o mais próximo que se pode chegar de uma ideóloga do capitalismo radical sustentado pela noção de que "a ganância é boa". As vendas de sua maior obra, o livro Quem é John Galt? (Atlas Shrugged), dispararam. De acordo com alguns relatos, já há sinais de que o cenário descrito no livro - os próprios capitalistas criativos entrando em greve - pode se concretizar por via de uma direita populista.
Entretanto, essa é uma interpretação equivocada da situação: o que está de fato acontecendo atualmente é basicamente o oposto. A maior parte do dinheiro do resgate financeiro está indo precisamente para os heróis de Ayn Rand, os banqueiros que falharam em seus projetos "criativos" e nos conduziram à hecatombe financeira. Não são os "gênios criativos" que estão agora ajudando os cidadãos comum; são os cidadãos comuns que estão ajudando os "gênios criativos" fracassados.
John Galt, o personagem central do romance de Ayn Rand, não tem seu nome exposto até praticamente o fim da narrativa. Antes de sua identidade ser revelada, a pergunta é feita repetidamente: "Quem é John Galt?". Agora nós sabemos exatamente quem ele é: John Galt é o idiota responsável pela crise financeira de 2008 e pela atual paralisia do governo americano.

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