Em 1895, foi publicado nos Estados Unidos a obra 'The Red Record', da jornalista afro-americana
Ida B. Wells-Barnet que conta parte de sua luta contra os linchamentos sistemáticos de pessoas
negras em seu país.
Iara Paiva
Ida B. Wells-Barnet que conta parte de sua luta contra os linchamentos sistemáticos de pessoas
negras em seu país.
Iara Paiva
Nesta obra, Ida busca investigar os fatos relacionados aos linchamentos para desconstruir estereótipos que culpabilizavam as vítimas dessa brutalidade. Em seu caminho para uma sociedade menos opressora, Wells-Barnet teve que questionar estereótipos de raça associados aos de gênero.O racismo que bestializa as representações das pessoas negras, difundiu o mito, até hoje repetido e reforçado, de que os homens negros são predadores sexuais. Investigando os casos do ano precedente, 1894, a autora conclui que nem todas as vítimas de linchamentos haviam sido acusadas de algum crime e, que a maioria delas não foi acusada de estupro. Indo mais além, nem todas as acusações de estupro eram verdadeiras.
Ida B. Wells-Barnett, foto de Mary Garrity restaurada por Adam Cuerden, alguns direitos reservados.
Se, como feministas, defendemos que uma vítima de agressão sexual deve ser acolhida e não ter sua palavra questionada, não podemos ignorar que, se hoje as mulheres não são livres para se relacionarem sexualmente com quem quiserem sem serem perseguidas por isso, menos liberdade ainda tinham no final do século XIX.
Ida B. Wells-Barnet traz alguns casos de mulheres brancas que se relacionaram consensualmente com homens negros, mas os acusaram de estupro por pressão social ou medo de serem descobertas. E, com isso, questiona mais um estereótipo de gênero e raça: o de que as mulheres brancas não seriam sexualizadas, ou que sua sexualidade estaria reservada a corresponder aos desejos dos homens brancos.
Como se pode imaginar, sua obra não foi bem recebida pela imprensa branca, já que ousava desmontar o discurso da supermacia branca patriarcal de que os linchamentos não eram barbárie, mas esforço civilizatório. Expondo as estatísticas de que pessoas negras (não só homens, mas mulheres e até crianças) era linchadas por motivos completamente banais e a hipocrisia que ignorava as mulheres negras que eram estupradas por homens brancos sem que fossem perseguidos criminalmente. A autora questiona os motivos dos brancos não confiarem no sistema de justiça que eles mesmo criaram pra julgar criminosos negros dentro da lei.
O Brasil do século XXI é muito diferente dos Estados Unidos do século XIX, em que escreve Ida B Wells-Barnett. Mas, a distância geográfica e os muitos anos que no separam do contexto em que a autora produziu sua obra tão corajosa mostram que as nossas relações raciais seguem marcadas por estereótipos que tratam as pessoas negras e sua cultura como menos digna de respeito.
A mesma lógica que, em nome da defesa de uma suposta civilização – que chamaremos de supremacia branca eurocêntrica – promove o extermínio mais ou menos declarado de quem está fora dessa norma. Não são apenas as pessoas negras vítimas dessa política, já que temos assistido à perseguição das populações indígenas, como já tratamos aqui neste espaço.
Na semana da Consciência Negra, voltamos a defender a promoção de um Feminismo interseccional, que não ignore que nem todas as mulheres sofrem com o machismo da mesma forma. E que se reconheça que as opressões sofridas pelas mulheres negras não são as mesmas sofridas pelas mulheres brancas, por isso, também devemos abraçar a luta pela dignidade dos homens negros.
Não há justiça para as mulheres negras que enterram seus filhos, as vítimas preferenciais da violência policial. Não há justiça para as mulheres negras que são vítimas preferenciais da violência obstétrica, pois as crianças que vão parir já chegam ao mundo menos bem-vindas aos olhos da sociedade. Não é a mesma coisa ser mãe de uma criança branca e ser mãe de uma criança negra.
Isso nos coloca em conflito e Ida B. Wells-Barnet já sabia disso. Porque, como mulher negra nascida antes da abolição da escravatura em seu país – portanto com o status de escrava – conhecia a dor de não ser dona do próprio corpo. Não trataria o estupro com leviandade. E não ignorava que os homens negros podiam ser agressores, mas os linchamentos não permitiam que lhes fosse atribuído o direito à defesa. A difícil relação entre Feminismo, raça e agressões sexuais em um caso recente e polêmico aparece bem elaborada neste texto.
O Feminismo não é (ou não deveria) ser racista. Mas, trabalhar a interseccionalidade das opressões não é fácil, em especial em situações de conflito. É preciso reconhecer que se os homens, de maneira geral, se beneficiam do patriarcado, nem todos os homens desfrutam dos mesmos privilégios. As interações sociais são muito mais complexas para considerarmos que apenas uma condição de opressão ou de privilégio seja suficiente pra explicar o mundo, ou que apenas uma injustiça deva ser combatida.
Um Feminismo que cristalize todos os homens como inimigos e que não reconheça a importância de combatermos o racismo trabalha para a manutenção da supremacia branca, um dos maiores crimes da humanidade. Por isso, é importante estarmos sempre atentas para problematizarmos e questionarmos qualquer discurso que tente simplificar, pelo maniqueísmo que reforça estereótipos, uma luta que nada tem de simples.
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