Temos defendido a tese de que desde os anos 1970 entramos em um contexto de crise civilizatória
do capitalismo e da hegemonia dos Estados Unidos.
Carlos Eduardo Martins
Carlos Eduardo Martins
A crise de hegemonia dos EUA e sua longa duração
Trata-se de uma crise estrutural e não de um colapso. A crise estrutural é longa, lenta, permite ampla margem de autonomia para que a grande burguesia dos países centrais e seus Estados estabeleçam estratégias de reação e contenção do descenso, podendo passar à ofensiva, ainda que no longo prazo, o custo de manutenção de seu status quo seja cada vez mais alto e a balança de poder lhes tenda a ser cada vez mais desfavorável.
Assim desde os anos 1970, características estruturais profundas vêm se desenvolvendo no capitalismo central: a financeirização da economia, a queda das taxas de investimento, altos níveis de desemprego, o aumento explosivo da dívida pública, a presença de importantes déficits comerciais, a transferência do dinamismo econômico e a relocalização para o leste asiático dos fluxos interacionais de capital, a perda de importância relativa das potências marítimas na economia mundial em detrimento da expansão dos regionalismos e doshinterlands nas periferias e semiperiferias.
Estas tendências parecem estar vinculadas à emergência e difusão da revolução científico-técnica. Esta torna o conhecimento a principal força produtiva e eleva dramaticamente o valor da força de trabalho, levando o capital a substituir o circuito produtivo do capital pelo financeiro e a estender aos centros a superexploração do trabalho, que era uma característica secular e específica das periferias, para pagar ao trabalhador preços inferiores ao valor de sua força de trabalho.
A queda da taxa de lucro nos anos 1970, a saída de capitais dos Estados Unidos, a ruptura da paridade dólar/ouro e a desvalorização da moeda estadunidense foram respondidas na década de 1980 com a ofensiva neoliberal dos governos Reagan e Bush pai. A drástica elevação das taxas de juros, a criação de um mercado de títulos da dívida pública organizado desde o Estado e a abertura comercial/financeira substituíram o pleno emprego por um desemprego elevado, reduziram drasticamente os salários, e duplicaram a relação da dívida pública/PIB, que saltou de 33% para 64% entre 1979-92.
Tal reorientação da política monetária nos Estados Unidos incidiu sobre a dívida externa contratada a taxa de juros flutuantes pelos países do terceiro mundo e América Latina, asfixiando os projetos de modernização acelerada e desenvolvimento industrial em curso. Todavia não impediu o deslocamento do eixo de crescimento econômico para o Leste asiático. A entrada da economia mundial em um período de expansão de longo prazo a partir 1994 aumentou a exposição da economia estadunidense à concorrência internacional oriunda dos novos centros dinâmicos (Alemanha, Japão, Coréia do Sul, Taiwan e China) colocando em cheque a diplomacia do dólar forte e as altas taxas de juros. A reordenação da economia estadunidense envolveu a queda taxas de juros, a redução dos gastos militares e a valorização do Marco alemão e de forma mais intensa do Iene japonês para conter os déficits comerciais dos Estados Unidos, reduzindo a necessidade de desvalorização do Dólar. O governo Clinton aproveitando-se do fim da URSS e da segunda guerra fria, cortou os gastos militares para garantir os gastos sociais, ameaçados por uma dívida pública que não se vinculava ao crescimento da economia, e gerou superávits fiscais planejando abatê-la em um período de 13 anos. Impulsionou o enfoque trilateral buscando diminuir os custos com a preservação da segurança da ordem mundial sobre os Estados Unidos.
Entretanto, o mundo havia se tornado demasiado complexo para a gestão trilateral. Com a segunda rodada de elevação do Iene, no início da década de 1990, após os acordos do Plaza de 1985, a China desvaloriza o Yuan estabelecendo paridade fixa com o Dólar, impulsionando o déficit comercial estadunidense e tornando-se sua principal responsável. De outro lado, o uso dos superávits primários para pagar os juros da dívida e reduzi-la paulatinamente, não produzia resultados imediatos e abriu o espaço à ofensiva republicana que acusava o peso excessivo dos impostos, reivindicando sua devolução imediata aos contribuintes. A fraude na votação na Flórida permitiu a volta dos republicanos ao poder por meio do governo de George W. Bush e com ele uma nova ofensiva do complexo industrial militar estadunidense apoiada pelo conjunto da burguesia estadunidense. Esta queria evitar a redução da financeirização do Estado, o reestabelecimento da plenitude do circuito produtivo do capital e a volta ao pleno emprego com suas pressões negativas sobre a taxa de mais-valia e de lucro no contexto da revolução científico-técnica.
A queda nos juros e a contenção da dívida pública durante o governo Clinton deslocaram as pressões para acumulação de capital fictício aos mercados privados, concentrando-se nas empresas .com e no Nasdak, levando ao estouro da bolha no final da década de 1990 e a crise de 2000-01. A estratégia de recuperação do governo George W Bush foi a de impulsionar o setor privado transformando rapidamente o superávit alcançado no final do governo Clinton em déficit público. Para isso, reduziu impostos e direcionou a expansão dos gastos públicos para o complexo industrial-militar, impulsionando novamente a expansão da dívida pública.
Mas nova ofensiva do complexo-militar exigiu um choque cultural e simbólico. Os mortos e feridos no Vietnã deixaram marcas profundas numa população que já não aceitava arriscar sua vida, de parentes e amigos por questões longínquas que não a afetavam diretamente. Os democratas, por sua vez, haviam mudado seu enfoque em relação aos gastos militares para defender o welfare contra owarfare num contexto de drenagem do orçamento público para o setor financeiro. O pretexto para esta nova ofensiva foi o 11 de setembro. A criação simbólica do terrorismo como uma ameaça externa capaz de se internalizar de forma imediata e destruir a vida de estadunidenses, deu respaldo provisório à mudança de prioridades: o warfare e a segurança ganharam prioridade e os falcões conquistaram posições chaves no Estado. O Estado norte-americano e o complexo industrial militar criavam assim seu novo inimigo externo, como fizeram após o fim da 2ª guerra mundial, estabelecendo as bases da guerra fria.
A queda dos juros reais iniciada no governo Clinton aprofundou-se no governo de George W. Bush, em função do ajuste ao Kondratiev expansivo e das pressões da concorrência internacional oriundas deste. Não obstante a retomada moderada e constante no aumento da dívida pública, criou-se uma nova onda especulativa de títulos privados e securitizações, que se articulou ao mercado de bens raízes e colapsou em 2008-09. O estouro desta última bolha teve efeitos drásticos sobre a economia estadunidense em razão da sua extensão, da política de saneamento praticada e da debilidade macroeconômica do Estado norte-americano, muito mais profunda que em 2000-01: A política de compra dos títulos privados pelo Estado para garantir sua liquidez praticada pelos governos George W. Bush e Obama, ainda em curso, já implicou gastos de aproximadamente US$ 3 trilhões; a profunda recessão incidiu sobre déficits públicos estruturais associados a baixíssimo nível de tributação, multiplicando-os; ao tempo que em que os altíssimos níveis de desemprego implicaram gastos sociais extras em função da legislação de proteção ao trabalhador.
A injeção de liquidez na economia estadunidense não implicou, entretanto, o aumento significativo de suas taxas de investimento, ainda que a desvalorização do Dólar tenha propiciado a redução da dependência das importações de petróleo e sua substituição parcial pela produção interna convencional ou pela alternativa vinculada ao gás de xisto. Mas esta redução impactou a balança comercial dos Estados Unidos diminuindo significativamente seus déficits, para o que contribuiu também a profundidade da recessão que ali se estabeleceu.
Que efeitos e possibilidades a trajetória dos Estados Unidos e a nova balança de poder mundial geram sobre a América Latina?
A trajetória dos EUA e seus efeitos sobre a América Latina
A emergência de uma crise de longo prazo com epicentro nos Estados Unidos e Europa Ocidental nos anos 1970 favoreceu inicialmente à América Latina. O redirecionamento dos fluxos de capitais à região articulou-se seja com os projetos de modernização acelerada, como o da ditadura brasileira, seja com os experimentos neoliberais em curso, como o das ditaduras chilena e argentina, financiando a importação de máquinas e equipamentos ou o consumo suntuário. A drástica elevação das taxas de juros nos Estados Unidos, a partir de 1979, estrangulou estes experimentos e multiplicou a dívida externa da região, mergulhando-a em forte recessão na década de 1980.
A subordinação dos Estados latino-americanos às suas burguesias dependentes levou-os a formar grandes superávits comerciais totalmente esterilizados com o pagamento de juros e amortizações da dívida externa, aumentando significativamente as taxas de pobreza e desindustrializando a região. Iniciou-se também na região a financeirização das burguesias dependentes em função da criação de uma dívida interna que trocava títulos por dólar, oriundo das exportações, financiando os pagamentos internacionais. A crise aguda da dívida externa foi provisoriamente solucionada com o plano Brady que, em troca da desvalorização do principal e da redução das taxas de juros, impôs as regras do consenso de Washington: abertura comercial e financeira, sobrevalorização cambial, privatização e desregulamentação dos mercados de trabalho. Aprofundaram-se a desindustrialização, a periferização da região, os níveis de desigualdades internos, a precarização do mercado de trabalho, as taxas de superexploração e os desequilíbrios do balanço de pagamentos. Estes passam a ser financiados com ingressos de capitais estrangeiros, a partir da liquidação dos superávits comerciais e geração de déficits na balança comercial.
A inversão cíclica das entradas de capital a partir de 1998 colocou em crise as experiências neoliberais da década de 1990. As esquerdas e centro-esquerdas ressurgem e retomam sua ofensiva na América Latina e Caribe a partir deste contexto. As sucessivas vitórias eleitorais em Venezuela, Bolivia, Equador, Brasil, Argentina, Uruguai Paraguai, Chile, Nicarágua e Honduras registram seu forte avanço entre 1999-2008. Em linhas gerais, malgrado suas diferenças internas, podemos inscrevê-las em dois grandes padrões:
- O nacionalismo popular com forte viés integracionista e anti-imperialista, articulado a um capitalismo de Estado que nacionaliza parcialmente recursos estratégicos (mineração, petróleo, eletricidade, metalurgia, água, abastecimento, telecomunicações, bancos, aeroportos, portos e serviços públicos), impõe forte desvalorização da dívida externa, avança com certa intensidade na reforma agrária e refunda o Estado introduzindo a democracia participativa por meio de assembleias constituintes que se vinculam a forte mobilização popular. Busca-se transitar para democracias sociais e soberanas e espaços supranacionais no continente sul-americano, América Latina e Caribe, capazes de descolonizar o poder interno, estabelecer o controle sobre os recursos renováveis e não-renováveis, afirmar o desenvolvimento produtivo e científico-tecnológico, garantir a sustentabilidade ambiental, e promover a atuação da região em favor da multipolaridade e democratização das relações internacionais;
- A terceira via que conserva diversos fundamentos macroeconômicos do neoliberalismo (protagonismo do capital fictício, financeirização da dívida pública, austeridade fiscal dirigida ao pagamento de juros, câmbio flutuante, concessão de serviços de infraestrutura e da exploração de recursos estratégicos ao setor privado nacional ou estrangeiro), combinando-os com políticas de renda mínima e políticas externas centristas. Estas se aproximam de várias forças internacionais, utilizando a multilateralidade e a capacidade de negociar conflitos para fortalecer sua ascensão e margem de atuação na arena internacional. O maior exemplo é o Brasil que se engaja até certo ponto na aliança com o bolivarianismo e com os poderes hegemônicos tradicionais – como os Estados Unidos e principais potências da Europa Ocidental –articulando-se ainda com o BRICs e o IBAS. Assim se, de um lado, promove o desenvolvimento lento e moderado da UNASUL, de outro, aceita a participação destacada na MINUSTAH e reforça o caixa do FMI por meio da compra em 10 US$ bilhões dos Direitos Especiais de Saque (DES), durante a crise de 2008-10, buscando apoio entre as potências tradicionais para integrar o Conselho de Segurança da ONU como membro permanente ou legitimidade para ampliar seu poder decisório no FMI e Banco Mundial, ambas as iniciativas até aqui sem qualquer efeito concreto.
A ascensão das esquerdas e centro-esquerdas no cenário político da região conjugou-se com uma conjuntura internacional propicia. A entrada da China como destacada parceira comercial da América Latina, a partir da primeira década do século XXI, reverteu a secular deterioração dos preços dos produtos primários frente aos manufaturados e impulsionou os saldos comerciais da região, favorecendo a formação de inéditos saldos em conta corrente, entre 2003-07. Este foi particularmente o caso dos países do Mercosul, cujos saldos comerciais, articulados a fortes desvalorizações cambiais, foram suficientes por si só para gerar superávits na balança de transações correntes entre 2002-08, enquanto que para o conjunto da América Latina e Caribe, os saldos na balança de transações correntes dependeram ainda do resultado favorável nas transferências unilaterais, resultantes das remessas de imigrantes principalmente para os Estados Unidos.
Isso permitiu à América Latina atravessar o período cíclico de retração dos ingressos de capital estrangeiro na conta financeira com facilidade. Sobretudo porque os ingressos oriundos da balança comercial ou das remessas de imigrantes são muito mais sólidos para a composição das reservas, uma vez que não geram futuras remessas de lucros ou repatriações sob diversas formas aos proprietários não residentes, como é o caso do capital estrangeiro. Elevaram-se as reservas da região que reduziu sua dívida externa. Esta conjuntura propiciou capacidade de empreendimento às esquerdas que ascendiam aos Estados nacionais. Desenharam-se os fundamentos de um novo projeto de integração regional cuja principal expressão é a UNASUL. Mencionou-se a possibilidade de um fundo de estabilização, de uma moeda regional constituída a partir de uma cesta de moedas locais e de um banco de desenvolvimento. Destes projetos apenas o Banco do Sul foi adiante. Todavia o seu alcance permanece muito limitado pelos fundos relativamente restritos de que dispõe e pelo retardo na entrada brasileira, que aguarda aprovação pelo Congresso Nacional.
Todavia a partir de 2009 esta situação favorável começa a se inverter. O restabelecimento do período cíclico de entradas do capital estrangeiro – que no Brasil se inicia em 2007 – eleva fortemente as remessas de lucro e o pagamento de serviços na região que ultrapassam o resultado positivo da balança comercial e as remessas de imigrantes, que atingem seu pico em 2006. O equilíbrio do balanço de pagamentos passa a depender fortemente da entrada de capitais estrangeiros.
Venezuela e Argentina passam a sofrer ataques especulativos contra a moeda que pressionam fortemente para a sua desvalorização. Os saldos em conta corrente que compensaram durante o governo Chávez as massivas fugas de capital, reduzem-se e são pressionados negativamente pela reestruturação da economia estadunidense. Esta, ao desvalorizar o Dólar, estimula a produção nacional de petróleo e desenvolve a substituição do petróleo pelo gás de xisto atingindo negativamente a balança comercial da economia venezuelana. Na Argentina, a balança comercial atinge um pico em 2009 e, desde então, a balança de transações correntes é deteriorada pela expansão das remessas de lucros e pagamentos de serviços, expondo o país a ataques especulativos na conta financeira. No Brasil, os resultados fortemente negativos na conta corrente, a partir de 2008, têm sido cobertos com fortes entradas de capital estrangeiro dotando o país da maioria absoluta das reservas da América do Sul, mas tornando-o vulnerável às inversões cíclicas de entradas de capital estrangeiro, caso estas se estabeleçam em futuro próximo. As articulações para o estabelecimento de fundo de estabilização e de um Banco do BRICS, as reservas acumuladas e os recursos do Pré-sal lhe garantem mais folego financeiro, mas dificilmente invulnerabilidade. Muito provavelmente a inversão cíclica se dará ainda na década de 2010, ao passo que as operações do campo de Libra se iniciarão em 2020, em contexto que poderá ser o de uma desaceleração econômica de longo prazo, afetando os preços do barril de petróleo.
A década de 2010 não será tão generosa economicamente com a América Latina como a de 2000. A ofensiva das esquerdas que se iniciou em 1999 parece ter chegado a um ponto de limite a partir da crise de 2008-09. Ainda que as esquerdas não tenham sido derrotadas eleitoralmente – em 2009/10, o candidato da Concertación no Chile era democrata-cristão –, os golpes de Estado em Honduras e no Paraguai e a redução das margens eleitorais na vitória de Maduro após a desvalorização do Bolívar acendem um sinal de alerta. Para que não se convertam no inicio de uma inflexão regressiva é importante avançar, acelerando o tempo político da integração e a ofensiva contra a oligarquia internacional e nacional que ameaça impulsionar processos de desestabilização financeira em períodos críticos. Torna-se fundamental caminhar na direção de uma arquitetura financeira regional capaz de garantir as reservas monetárias dos países da região e a construção dos fundamentos de uma estrutura produtiva soberana. Para isso há que se superar nesta década, os limites do capitalismo de Estado e de uma esquerda de terceira via.
Carlos Eduardo Martins é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto e chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ), coordenador do Grupo de Integração e União Sul-Americana do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e pesquisador da Cátedra e Rede Unesco/UNU de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável (Reggen). É autor deGlobalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2011) e um dos coordenadores da Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção em 2007) e co-organizador de A América Latina e os desafios da globalização (2009), ambos publicados pela Boitempo.
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