De um lado, o projeto do SUS, de saúde universal, pública e estatal; de outro, o discurso de que,
com o aumento da renda, o direito se dá pela compra de serviços privados de saúde
Cátia Guimarães
Cátia Guimarães
Hoje, quando o Brasil lembra os 25 anos da Constituição Federal e, mais especificamente, do texto que institui um Sistema Único de Saúde na lei maior do país, Gastão foi convidado para atualizar essa análise.
Qual o balanço de 25 anos de um SUS universal?
O segundo entrave é que a gente não desenvolveu uma política de pessoal razoavelmente adequada. E o terceiro é que o modelo de gestão continua, com dois grandes desafios que não foram enfrentados. Um é a fragmentação do SUS em redes dos entes federados. Saiu a regulamentação da Lei nº 8.080, com o Contrato Organizativo da Ação Pública de Saúde (Coap), mas que é de uma ineficácia assustadora. O SUS continua heterogêneo e está cada vez mais evidente que se delega a principal tarefa da gestão do SUS aos municípios e que eles não conseguem sequer colocar médicos onde precisam na atenção básica.
O Mais Médicos teve esse lado positivo, que foi jogar luz sobre essa grande parte da população que não tem nem atenção básica e sobre a incapacidade dos municípios para resolver o problema da atenção básica. O outro problema do modelo de gestão é que a gente não criou uma alternativa, um conjunto de diretrizes para pensar um SUS público. Continuamos num dilema: a administração direta emperrada, antiga, ultrapassada, inadequada para a saúde, e as alternativas a isso são formas de privatização, como OS [Organização Social] e fundações privadas, que aumentam a fragmentação.
Eu estava dando curso para gestores da atenção básica do estado e de alguns municípios grandes da Bahia e fiquei assombrado. Eles confirmaram o diagnóstico de que a Bahia agora tem duas secretarias estaduais, duas direções concorrentes: a secretaria estadual e a fundação que eles criaram. E o pior é o quarto elemento, que eu acho que agravou: a hegemonia cultural, midiática, da perspectiva do seguro privado e da saúde suplementar, e a hegemonia concreta, no sentido de que hoje se gasta mais com saúde suplementar do que com o SUS.
Ela atende 25% da população e o SUS 75%. Estamos vendo agora, com essa história da demografia médica e o estudo da Maria Helena Machado, que mais de 50% da capacidade dos médicos está concentrada na saúde suplementar. Não é a maioria dos médicos, mas da capacidade de trabalho, porque a maioria dos médicos tem duplo vínculo. Se pegarmos os postos de trabalho e a carga horária, mais de 50% estão voltados para 25% dos brasileiros.
Ou seja, na prática, se a gente pegar a carga horária de 40 horas, o SUS tem menos de um médico para cada mil habitantes, para os 75% da população. Isso vale também para outros profissionais. Os impasses no SUS, todos esses que eu listei, deixam um espaço imenso para a medicina privada, de mercado.
Cinco anos atrás, você destacou o desafio de “inventar modelos de gestão para garantir o funcionamento desburocratizado, humanizado e com pouca corrupção dos serviços estatais de saúde.” Nesse período, proliferaram modelos como OS e fundações públicas de direito privado. Isso responde a esse desafio?
Eu ando defendendo que nós propuséssemos um projeto de lei para criar um SUS como autarquia municipal, estadual e nacional. Haveria o SUS com financiamento e gestão tripartite, os servidores seríamos todos do SUS, com carreiras do SUS, com concursos por estado. Essas carreiras poderiam ser por grandes áreas: atenção básica, área hospitalar com especialidades, vigilância à saúde… As regras que regulamentam cada profissão entrariam matricialmente nessas áreas de carreira.
Um outro elemento insuportável da crise é que ninguém aguenta mais ser governado, gerenciado por prefeitos, secretários municipais, estaduais e ministros da saúde absolutamente controlados pela lógica de poder, eleitoreira, com conflitos de interesse. Penso que uma alternativa à privatização seria pensar o SUS num modelo de gestão como o das universidades federais, só que não fragmentado: um SUS único, organizado a partir das 200 e poucas regiões de saúde, e em que os cargos de direção, exceto ministro, secretários estaduais e municipais, não fossem de confiança, e sim ocupados com critérios, mandatos de rodízio.
Por exemplo, eu acho que a gente deveria ter um secretário regional de saúde, indicado pelo colegiado de municípios e pela secretaria estadual, segundo critérios: formação em saúde pública, em gestão em saúde, três anos participando dessa carreira SUS, dedicação de mais de 30 horas por semana…
Financiamento já era um problema há cinco anos. Nesse tempo, tivemos a regulamentação da Emenda Constitucional 29. Mas muitas pessoas acham que piorou…
A proteção que o governo federal fez do seu orçamento, a não inclusão dos 10% do orçamento [da União] tornou a Emenda Constitucional 29 quase inócua. O único aspecto positivo foi dizer o que é despesa de saúde, deixou isso mais claro e criou uma jurisprudência para evitar as tramoias que os estados e alguns municípios faziam. Mas não resolveu nada, continua o interdito para aumentar os recursos do SUS. E falta muito.
Se conseguíssemos as assinaturas para o projeto de lei que pede o investimento de 10% [da União], a estimativa é de R$ 50 bilhões ou R$ 60 bilhões a mais. Daria para dobrar o atendimento da atenção básica, qualificá-lo, melhorar formação e carreira, financiar, construir e custear 200 hospitais nas regiões mais carentes, aumentar ações de vigilância à saúde e promoção. Já seria muito importante, mas na verdade, para ter um sistema adequado, além de mudar o modelo de gestão, tem que dobrar o recurso. O SUS gasta 3,5% do PIB, teria que gastar 7%, 8%.
Agora, tem uma vacilação muito grande do governo federal e dos deputados em apoiar essa medida. Se for aprovada, existe ainda a discussão sobre para onde vai o dinheiro. E quando entra nessa discussão, a frente supostamente pró- SUS se rompe absolutamente. Boa parte dela quer corrigir e manter a forma de convênios e contratos, reajustando o valor dos procedimentos. Vai ser inútil. Esse recurso a mais tem que ser investido para ampliar a cobertura da atenção básica para 80% [da população], criar uma carreira da forma como eu estou te falando, construir e fazer funcionar hospitais públicos, diminuindo convênios e contratos e reincorporando ao SUS as OS e Oscips, fazendo o movimento contrário.
Cinco anos atrás, você disse que o financiamento era um nó, mas que não havia dinheiro porque o SUS não era querido. Se a população estivesse pedindo o SUS, conseguiríamos dinheiro. Isso mudou?
Eu sustento isso. Para comover a população e pressionar os governantes e o parlamento, precisávamos apontar para a população o que pode ser feito, com base no que já se está fazendo de melhor no SUS; o que pode ser aperfeiçoado, acrescido, no SUS. Estou apostando que o movimento sanitário consiga construir um projeto estratégico de modelo de gestão, carreira e reforçar um modelo de atenção segundo a tradição dos sistemas públicos do Canadá, Inglaterra, Suécia. A gente tem que apresentar isso à população, dizer que é possível, que é necessário e que o Brasil tem dinheiro. A luta por mais recursos sem dizer o que fazer com ele não tem muita possibilidade de romper o bloqueio da lógica econômica.
25 anos na eficácia da ideia de conceito ampliado de saúde…
Eu acho que esse é um ponto positivo do SUS. Não que todas as ações e práticas do SUS sejam coerentes com a visão ampliada do processo saúde-doença, mas ganhou muita força no Brasil uma crítica a essa visão biologicista da terapêutica centrada no medicamento. E eu acho que essa é uma marca específica positiva da Reforma Sanitária brasileira e do SUS, que é garantir não só o acesso, mas o acesso a outro modelo de atenção, a outro modelo de cuidado, que seja mais integral, que considere o biopsico- social, que valorize a autonomia e a clínica compartilhada com os usuários. Eu acho que isso está ganhando terreno. Aparece inclusive na mídia, na imprensa. Sobre a saúde mental, tem uma divisão, mas a nossa proposta aparece em novela, como sendo a melhor.
Saúde foi uma das principais reivindicações dessas manifestações desde junho. É do SUS que as ruas estão falando?
O movimento exige o acesso, o direito à saúde. E o setor privado está fazendo o discurso de que o acesso pode ser conseguido pela expansão da saúde suplementar, pelo aumento de convênios, pelo subsídio estatal, pela compra de serviços ao setor privado. E por trazer uma lógica de mercado, através de OS e semelhantes, para dentro do SUS público estatal que ainda existe. Essa batalha não está resolvida e nós temos que enfrentá-la junto à população. Há um reclame pelo direito à saúde e isso é muito importante.
Só que há um discurso que diz que o direito à saúde depende de um sistema nacional público de base estatal, com carreira, etc, que é o meu, nosso, de muita gente, e há outro discurso de que podemos garantir a universalidade pelo setor privado, basta o Estado financiar, comprar e regular. É o Estado mínimo regulador, que põe dinheiro público para o mercado fazer. Essa é a grande polêmica, o grande divisor de águas atual.
Cinco anos atrás, você disse que, logo na sequência da conquista do SUS, o Estado foi enfraquecido pela onda neoliberal. Hoje, o país vive o que se tem chamado de neodesenvolvimentismo. O Estado se fortaleceu?
O BNDES, a Caixa Econômica e o Banco do Brasil estão mais fortes. A capacidade de o Estado brasileiro negociar com empreiteira, por exemplo, teoricamente, está maior. Só que esse projeto desenvolvimentista não incluiu políticas públicas, como de educação e saúde públicas gratuitas. De políticas habitacionais há alguns ensaios. O forte são investimentos urbanos maciços.
Melhorou a renda de boa parte da população, o mercado interno se dinamizou, mas nós continuamos vivendo um caos. O negócio domina a cidade e a urbanização, com especulação imobiliária, empreiteiras. O negócio avança na área da saúde, botando limites na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), na saúde pública, fazendo negócio com atendimento hospitalar e especializado, com a venda de medicamentos. Eu acho que o desenvolvimentismo não nos protegeu. Esse desenvolvimentismo não tem um componente de bem-estar social forte, tem de aumento da renda de modo que, pelo aumento de salário, as pessoas possam comprar saúde suplementar, iogurte etc. Não é cidadão, é consumidor. Nossa proposta não é essa, o SUS é direito à saúde, direito à educação, à habitação, a viver numa cidade com transporte público. Tudo isso ficou muito fraco. Houve um tensionamento muito grande agora em junho sobre essa falha do desenvolvimentismo.
O nosso problema é que toda a oposição no Brasil é antidesenvolvimentista. E a gente teve nesse período o enfraquecimento dos movimentos sociais. Teve agora em junho esse movimento espontâneo, essa coisa da juventude, sem as entidades, mas houve, no mundo inteiro, uma cooptação, um esvaziamento dos movimentos, uma incapacidade da sociedade civil em colocar limites nessa hegemonia dos negócios. O desenvolvimentismo se alia com setores muito atrasados da sociedade, muito antigos, do Maranhão, do Nordeste, de São Paulo, do narcotráfico. É um bloco de alianças muito complexo.
Originalmente, o movimento da reforma sanitária tinha uma base na sociedade civil organizada. Como isso está hoje no campo da saúde?
O neoliberalismo e mesmo esse desenvolvimentismo enfraqueceu os movimentos sociais. O Fernando Henrique entra e, como a Margareth Tatcher, a primeira coisa que faz é derrotar o sindicalismo. O narcotráfi co desarticula boa parte do movimento popular associativo. A igreja católica tinha um peso grande no Brasil e é desarmada pelo papa polonês, que entra e troca os bispos. Foi uma desarticulação muito grande desses movimentos que constituíram a reforma sanitária. Ficaram os intelectuais, o pessoal da saúde coletiva.
O movimento estudantil se afastou dessa discussão. A UNE é uma burocracia, uma vergonha, não representa os estudantes. O Diretório da Executiva Nacional de Medicina (Denem) ainda discute o SUS, mas a capacidade de envolver é baixa. A maior parte do sindicalismo das profissões de saúde assumiu um perfil corporativista: o dos médicos é quase caricatural, mas se pegar os farmacêuticos, os fisioterapeutas, parte do movimento da enfermagem só falam em [jornada de trabalho de] 30 horas.
O modelo, a defesa do paciente, do usuário se enfraqueceu muito, exceto entre os psicólogos. E quando esses sindicatos tratam do SUS, falam contra qualquer regime que não seja o estatutário tradicional, falam contra OS ou fundação privada não porque é ruim, porque fragmenta, mas porque o regime de contratação é CLT e não o estatutário, que também tem sido usado para desrespeitar o direito à saúde das pessoas. No SUS se manteve um movimento interinstitucional, pelas conferências.
Nesses cinco anos, teve a conferência de que eu fui o relator que, na minha avaliação, foi um risco n’água, usando a expressão do [Otavio] Ianni. Os movimentos de junho tiveram muito mais fortaleza. Agora o sucesso do SUS depende da recomposição contemporânea – não pode ser a antiga – de um movimento em defesa do direito à saúde e do SUS.
O movimento sanitário não acabou?
Não, porque se renova. Movimento é um sujeito coletivo e sujeitos coletivos demoram mais tempo para morrer. Eles têm uma espécie de reencarnação. O movimento sanitário se fortaleceu muito com movimentos de trabalhadores não ligados às suas entidades profi ssionais, mas ligados a determinados projetos que compõem o SUS, como o Saúde da Família, a luta contra a Aids, a nova Saúde Mental. Mesmo o movimento da Humanização, HumanizaSUS, apesar de ser uma política do governo, é hoje em dia mais um movimento social de valorização do direito do usuário, de democracia institucional. Em Campinas, nos últimos seis, oito anos, o SUS está sendo desconstruído. E já vinha saindo movimento de rua antes de junho.
Quando estavam desconstruindo a reforma da saúde mental aqui, que é bem ampla, tinha 800, mil pessoas de várias extrações, convocadas também por internet, na Câmara. Nesse período de crise do movimento social, a defesa do SUS ficou muito por conta dos gestores, Conass, Conasems. E, com todo respeito, gestor fica muito nessa lógica institucional e não tem autonomia e iniciativa para comprar esses confrontos abertamente como seria necessário. Mas eu acho que o movimento sanitário está se recompondo, é a minha esperança. Abrasco, Cebes, essas velhas entidades estão com cara nova. Mas de vez em quando o Estado coopta.
25 anos atrás, preparação e realização da Constituinte: há erros e perdas que já remetem àquele momento e cujas consequências a gente vive ainda hoje?
Com certeza tem. Mas eu acho que nesses 25 anos aconteceram três fenômenos entrelaçados. Resumindo: o Brasil melhorou para a maioria da população nos direitos, direitos da mulher, luta contra o racismo. Acho que estamos mais fortes. Ao mesmo tempo, houve uma industrialização, uma financeirização no Brasil. O Brasil é um país capitalista forte. Não é o capitalismo brasileiro, mas há um capitalismo globalizado no Brasil muito forte, com mercado interno muito forte, o setor financeiro muito forte, a lógica dos negócios, lógica liberal da competição cultural muito forte. E ao mesmo tempo se fortaleceu ou não foi eliminado, apesar de a gente viver em república e democracia, o Estado clientelista, privatizado, voltado para os negócios e não para a defesa da cidadania. Esse capitalismo no Brasil se compôs com o atraso, com o clientelismo. Nessa mistura, o Brasil é melhor, mas continua muito injusto, muito desigual.
A vida é muito áspera, o contrato é muito desrespeitado. O contrato empresarial é sagrado, mas o contrato de trabalho não é sagrado, ao contrário, pode ser rasgado a qualquer momento. Agora, tem um setor grande da sociedade brasileira, independentemente de estar organizado em movimento ou não, que tem um pensamento pelo direito, pelos direitos humanos, pela democracia republicana. São 20%, 30% da população, como nós temos 20%, 30% muito conservadores, preconceituosos, racistas, pró-mercado.
Esse Estado clientelista e o empresariamento da sociedade brasileira limitou os avanços sociais, inclusive na saúde e na educação. O fato de professor de ensino médio ganhar o que ganha é um sintoma gravíssimo disso. Todos esses entraves do SUS são sintomas gravíssimos disso. Nós não podemos ter um setor estatal forte, ágil, autônomo, fora do clientelismo, fora da politicagem partidária, comprometido com os usuários e com a racionalidade do direito à saúde.
Estamos tentando construir isso dentro dos conflitos, porque isso atesta a possibilidade de construir uma sociedade solidária e democrática. No fundo, eu diria que o sonho do Salvador Allende continua: será que é possível construir justiça social, solidariedade, socialismo – a gente nem sabe direito o que é socialismo – com democracia, com participação? Essa é a questão.
É possível?
Eu aposto nisso. Como já houve derrotas antes, de um médico inclusive, o Salvador Allende, eu sei que é uma aposta, não é uma certeza. Eu não tenho certeza. Mas prefiro assim, porque o contrário eu não quero.
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