As novas relações trabalhistas e sindicais em economias globalizadas, e a formação, treinamento
e profissionalização de forças policiais em um contexto transnacional são temáticas que integram
dois extensos projetos de pesquisa em curso na Unicamp. À frente dos estudos estão os professores
portugueses visitantes Elísio Estanque e Susana Durão.
PAULO CESAR NASCIMENTO
PAULO CESAR NASCIMENTO
Sociólogo e docente da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), Elísio atua junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e ao Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) do Instituto de Economia (IE). Sua investigação representa a continuidade de colaborações anteriores com acadêmicos brasileiros em questões às quais se dedica há mais de duas décadas em Portugal e permite aproximar os debates em curso na Europa da reflexão que se realiza no Brasil em torno dos mesmos temas.
Antropóloga social e pesquisadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS/UL), Susana desenvolve seu trabalho no âmbito do IFCH. Nos últimos anos, tem coordenado uma série de projetos sobre temas associados à organização policial, com especial interesse na pesquisa da segurança e ordem pública, movimentos sociais e culturais, tanto em contextos portugueses como brasileiros. Nestas entrevistas, ambos apresentam seus olhares a respeito de temas que permeiam o conteúdo de suas pesquisas.
Jornal da Unicamp – O que é, quais são as origens e no que consiste o conceito de transnacionalização na formação de forças de segurança?
Susana Durão – No projeto “COPP-LAB: Circulações de Polícias em Portugal, África Lusófona e Brasil” interessa-nos estudar os percursos de oficiais de polícia em formação, tanto em treinos nacionais como internacionais. Estes são profissionais que circulam no mundo, mas dos quais se espera algo: que venham a contribuir para mudanças políticas e profissionais nos seus países de origem, usando aquilo que transportam em si, exatamente o seu conhecimento adquirido “transnacionalmente”. Se por um lado eles são peças de uma engrenagem maior, por outro lado, muitos deles podem vir a ser autoridades influentes. Há, assim, uma certa concepção de ações de intervenção no tempo e no espaço. Transnacional é um conceito usado na ciência política, no mundo corporativo e nas relações internacionais. Trata-se do princípio de ação que está “além” e também acima de fronteiras nacionais. Mas hoje transnacionalidade faz parte do vocabulário das ciências sociais e diz respeito a ações e movimentos de pessoas e coisas que “atravessam” as fronteiras nacionais, que se realizam e concretizam através dessas experiências “entre” limites e fronteiras que costumamos atribuir aos países e aos Estados. Isso convoca novas reflexões que não podem ser resolvidas entre a oposição global/local.
As dinâmicas de protocolos bilaterais de cooperação para a formação superior de polícias entre países como Portugal, Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe e também Brasil, são particularmente relevantes no nosso estudo porque incidem sobre formação intensiva e prolongada na forma de cursos de mestrado. Muitos oficiais africanos circulam para aprender modelos e práticas de policiamento que frequentemente contrastam com modelos e práticas que vão poder exercer. Interessa-nos muito o que está impresso nos processos de transmissão de saberes, nos modos de aprender e no que é a expectativa e os limites da política nacional e internacional para a formação e transformação das polícias de segurança pública. Insatisfeitos com análises essencialistas que definem o Estado como instituição monolítica e autônoma, antropólogos como Herzfeld sugeriram que este seria antes um “complexo instável de gente e de funções”.
No nosso projeto acreditamos que devemos acrescentar que o Estado se constitui também por comunidades de saberes e fazeres que são aprendidos e transferidos por pessoas e em relações concretas, sendo estes frequentemente projetados no futuro com recurso a memórias passadas.
JU – Como essa temática vem sendo estudada pelo grupo do qual a senhora faz parte na Unicamp?
Susana Durão – Na verdade, COPP-LAB é um projeto que vem sendo desenvolvido ao abrigo das atividades científicas do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Este é financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia em Portugal, embora seja um projeto marcadamente internacional. Os pesquisadores da equipe do projeto residem em distintos lugares do mundo (Portugal, Reino Unido e Brasil) e pertencem a diversas instituições. Todos têm um conjunto de missões e de tarefas atribuídas e eu, além disso, faço a gestão de um grupo de 11 pesquisadores e 5 consultores. Organizamos reuniões regulares para poder compartilhar resultados.
Realizamos recentemente um encontro no IFCH-Unicamp intitulado “Circulação de policiais em redes lusófonas. Autoridade, formação e poder”, em outubro último. Está previsto um colóquio em 2014 em Cabo Verde, intitulado: “África Lusófona. Reflexão sobre Estatutos e Carreiras Policiais”. O grande evento final deste projeto de dois anos e seis meses irá realizar-se em Lisboa e terá por foco o tema: “Antropologia da Política e da Polícia: Portugal, Brasil e África em perspectiva”.
Concretamente no IFCH, unidade na qual leciono, e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, creio que estou, conjuntamente, com outros colegas do Departamento de Antropologia e das Ciências Sociais, criando condições para discutir temas que contribuem para o entendimento da sociedade brasileira, tais como segurança (pública e privada), Estado, polícia e violência urbana. O projeto COPP-LAB tem ainda o compromisso de enriquecer a teoria antropológica com temas relacionados à mobilidade, migração laboral em grandes organizações burocráticas, formação e treino policial, modelos e práticas do policiamento. Nesse sentido, o Centro de Estudos da Migração Internacional (CEMI), coordenado pelo antropólogo Omar Ribeiro Thomaz, pesquisador também no projeto, oferece um enquadramento institucional relevante. O projeto deve preocupar-se em produzir dados que possam levar-nos a discutir com a literatura internacional de estudos policiais e a antropologia da polícia e do Estado.
Aqui é particularmente importante pensar no que se passa no Brasil, com o debate sobre desmilitarização, as experiências das Unidades de Polícia Pacificadora e outras formas de policiamento comunitário e privado e, muito particularmente, o papel de oficiais nesses processos. No Brasil, é certo que os apelos da mudança surgem numa direção diferente daquela que encontramos em outros países e estados africanos. Todavia, ao centro desses apelos em países pós-coloniais, os quais em muitos casos também passaram pela experiência histórica de ditaduras, é clara uma mesma asserção: sem o envolvimento das polícias nacionais na mudança e a perspectiva do policiamento como serviço público universal a democracia torna-se um processo incompleto.
Os objetivos empíricos do projeto compreendem, em 2013, a coleta de um vasto conjunto de entrevistas no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna (ISCPSI), uma academia de formação superior que acompanhamos mais de perto. Dois bolsistas do projeto estão realizando trabalho de campo nessa instituição situada em Lisboa. Em 2014 iremos entrevistar oficiais de polícia da ativa na maioria dos países africanos de língua oficial portuguesa e no Brasil. Para tal, estão previstas várias missões de trabalho de campo em países africanos e em estados e cidades brasileiros. Privilegiamos o estudo de percursos de oficiais que tenham passado por treinos e formações transnacionais e, muito particularmente, que tenham vivido a experiência de protocolos de cooperação internacional. A dimensão histórica, os planos institucionais, as dinâmicas de decisão política e as etnografias de polícias já realizadas são para nós matéria fundamental de trabalho.
JU – Em que medida o fenômeno de transnacionalização vem influenciando a formação de forças de segurança em Portugal, na África Lusófona e no Brasil? Que tipos de ensinamentos e de informações são compartilhados?
Susana Durão – No projeto não estamos ainda em condições de saber o quanto pesa, nas polícias nacionais, a formação internacional que faz com que vários dos seus oficiais intermediários tenham experiências transnacionais. Sabemos, todavia, que muitos entre eles poderão vir a ocupar cargos de liderança. Cabo Verde e São Tomé e Príncipe são os casos onde surgem mais exemplos de oficiais formados em Portugal alcançando cargos de direção. Em Cabo Verde, um dos Diretores Nacionais foi aluno do curso de oficiais do ISCPSI. Em Moçambique, Angola e Guiné, as carreiras têm formatos menos burocratizados e são menos previsíveis, o que significa que vamos ter surpresas. O caso do curso de oficiais do ISCPSI – o protocolo para a formação no qual decidimos ancorar a pesquisa – é muito bom para análise, porque se trata de uma formação acadêmica superior de 5 anos, com a possibilidade de os alunos reprovarem apenas um ano. Isto quer dizer que todos os alunos, incluindo os cadetes “cooperantes” africanos, recebem uma educação que incide muito sobre o Direito Penal português, Direitos Humanos, mas também humanidades (sociologia, psicologia, cultura portuguesa).
Existe uma unidade que prevê a avaliação disciplinar e moral, combinada com outras de índole mais desportiva e o encorajamento dos alunos a desenvolver projetos de solidariedade social. Alguns professores são oficiais da polícia portuguesa, outros funcionários do Estado e há lugar para quem venha de fora, como professor universitário. Trata-se de um curso frequentado em regime de internato, mas civilista, marcado por uma ruptura com os princípios militares. A ideia parece ser conciliar a concentração e a abertura de experiências. Defendem, professores e alunos, que este é um instituto de formação integral. O curso de oficiais, em Portugal (que recruta tanto agentes como civis) significou um corte com a herança ditatorial. Ali, acredita-se na formação de oficiais de polícia através do que pode ser designado como “o exemplo da pedagogia e da imagem”. Esta transformação processa-se tanto para dentro da Polícia de Segurança Pública como para a sociedade em geral, procurando-se afastar do imaginário social o policial violento associado ao regime ditatorial. O efeito deste ensino de caráter “nacional” em pessoas que não irão ser oficiais em Portugal, como é o caso dos vários africanos, não deve ser analisado linear ou funcionalmente.
No projeto acreditamos que os processos de formação, aprendizagem e transmissão, bem como os usos de conceitos e as práticas policiais são altamente complexos. Eles envolvem redes dinâmicas e não podem ser analisados descontextualmente. A nossa visão não passa pela avaliação do programa, mas sim pela interpretação das suas várias incorporações e manifestações. As variações inter-pessoais e internacionais merecem ser descortinadas através de cuidadosas e criativas descrições etnográficas.
JU – Qual é a avaliação que a senhora faz dos processos de capacitação e de profissionalização das forças de segurança dos países enfocados pelos seus estudos? Que problemas existentes na formação dos agentes se refletem em questões como violência policial e corrupção, recorrentes no Brasil?
Susana Durão – Os processos de formação e de profissionalização são determinantes para a vida policial, mas não se pode esperar que sejam eles a transformar na íntegra modelos e práticas profissionais. Em vários países, como Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, há uma grande dependência de protocolos internacionais para a formação dos seus oficiais –incluindo países tão diferentes como Portugal, Espanha e Taiwan. Moçambique e Angola já têm academias nacionais para a formação de seus policiais de topo, mas também mantêm protocolos de cooperação fundados na história das suas relações internacionais.
Em quase todos esses países a formação superior vai capacitar os já policiais “de base”, à excepção de São Tomé. Em Portugal, o treino dos oficiais é misto, mas a maioria dos recrutados são à entrada jovens alunos que concluíram o ensino médio. No Brasil, a formação de policiais e o tempo de treino diferem muito nos 26 Estados. Essa formação reflete a separação de carreiras. Nas Polícias Militares os praças e oficiais são mundos à parte; nas Polícias Civis os delegados e agentes não se confundem. Pode parecer contraintuitivo, mas esta interrupção de carreiras, estatutos e poderes pode facilmente levar a perversões e torna ainda mais ambígua essa linha tênue entre legalidade e ilegalidade, entre crime e punição.
Como Luís Eduardo Soares, Sílvia Ramos e tantos outros têm demonstrado, os policiais oscilam entre carrascos e vítimas em um modelo que foi arquitetado durante a ditadura militar, depois de 1968. Porém, uma das mais dramáticas divisões no Brasil, impressa na Constituição em vigor, é aquela que interrompe o ciclo de trabalho entre um policiamento “ostensivo”, executado pela PM, e o policiamento de investigação, levado a cabo pela Polícia Civil. Esta situação justificou recentemente uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 51.
Teremos de aguardar para saber se todo o debate e anseios de mudança vão resistir, invertendo o que foi o recuo de uma promessa na primeira gestão do presidente Lula. Uma de minhas hipóteses é que a formação de policiais em uma cultura militar, que incide na ideia de guerra e de inimigo, está em geral mais alicerçada entre os soldados. Ou seja, é sobretudo neles que se fomenta a prontidão militar para “controlar o crime”, como tem evidenciado Paula Poncioni. Na formação de oficiais é possível que se encontrem variações.
Em uma formação superior, com tempo e influências externas à corporação, não é possível hoje escapar a algum tipo de percepção de direitos humanos e respeito pela diversidade social e étnica. É possível que venham sendo engendradas concepções mais intelectualizadas da autoridade policial como algo que não se confunde com a autoridade das forças armadas. Este não é um processo apenas brasileiro, insere-se numa tendência global. Tais ideias estiveram na base daquilo que nos anos 1980 levou à criação dos policiamentos comunitários em países anglo-saxônicos. Assim se criaram condições de abertura das organizações policiais aos meios urbanos envolventes, garantindo um maior escrutínio social das suas práticas.
Isto teve inevitavelmente um efeito no recuo de formas de corrupção e controle do uso arbitrário da violência. Hoje há que saber o que está operando a esse nível no Brasil e nos outros países pós-coloniais que estudamos. O que se espera dos jovens oficiais? O que esperar desses homens e mulheres com o estatuto de oficiais intermédios e superiores? Poderão alguns destes oficiais ser considerados mediadores e potenciais transformadores dos ethoi policiais?
Estou convencida de que produzir dados comparativos, entre vários países com escassas décadas de transição democrática, nos pode ajudar a iluminar cada caso e a distinguir as respectivas singularidades históricas. A polícia no Brasil sofre de um problema complicado: a ausência de referências positivas no seu passado que ajudem a reformulá-la. Estou do lado de todos os que acreditam que o modelo tem que ser integralmente repensado. Todavia, o futuro passa necessariamente por buscar algumas memórias positivas no passado, mesmo que isso signifique no caso perspectivar contributos pessoais e menos a arquitetura de modelos. Creio que mudanças só terão impacto real com a colaboração e o protagonismo dos oficiais mais qualificados e abertos.
JU – Sobre essa questão do modelo concebido na ditadura, a senhora acredita que ainda persista na formação e nas ações dos policiais brasileiros uma herança desse período, quando tinham poder irrestrito para prender, torturar e matar?
Susana Durão – Acredito que várias mudanças na formação de policiais, tanto nas militares quanto nas civis, possam estar já em curso. Todavia, arcaísmos e atualizações do que as polícias brasileiras têm de pior podem ser observados em alguns aspectos concretos. Entre os mais dramáticos está a participação da polícia na letalidade, na reprodução da desigualdade social e na “desordem” pública. Tem sido sistematicamente evidenciado como o uso abusivo dos autos de resistência encobrem tortura e mortes causadas por policiais, sendo estas, na maior parte das vezes, arbitrárias e violentas. Ou seja, parece existir uma institucionalização do direito policial de matar.
As operações de guerra policial, resgate criminal e a participação de policiais no mercado do crime, conjugada com a ausência de limites na atuação em territórios da pobreza, potencializam a violência e criam a sensação de que existe um Estado dentro do Estado. Um outro exemplo, essa unidade móvel que é o “caveirão”, que cotidianamente percorre favelas da zona norte do Rio de Janeiro ecoando palavras de ordem e de terror para as populações, é o reconhecimento público da falência de um estilo de policiamento. É um pouco estranho como no momento em que vivemos no “tempo das vítimas” e “império do trauma”, como defendem alguns autores, os parentes de mortos nas mãos dos policiais no Brasil, maioritariamente pobres e negros, tenham um acesso tão restrito à reparação judicial e social. Polícia que é treinada para matar é antipolícia.
JU – A propósito, gostaria que a senhora comentasse sobre a experiência do Rio de Janeiro com as polêmicas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) para redução da criminalidade. É uma medida eficaz?
Susana Durão – O policiamento comunitário tem muitas formas. No Rio de Janeiro já houve experiências anteriores, nos anos 1990. Mas por várias razões que não posso aqui especificar foi recentemente escolhida a versão UPPs. As UPPs são uma invenção brasileira com um olho nas cidades da Colômbia e outro nas urbes da África do Sul. Até o nome “pacificação” evoca cenários de guerra e intervenção militar. A sua territorialização e delimitação por favelas cria um projeto concentrado problemático. Há uma tensão evidente entre criar uma imagem positiva, midiatizada e a atomização de funcionamento de uma política de policiamento que parece ser refém das micro-dinâmicas do cotidiano.
Como já foi dito por Luiz Machado da Silva, tem-se verificado um alargamento perverso do mandato dos policiais em lugares e classes sociais que eles pensam como a sua “propriedade”. Todavia, o aspecto mais gritante é como os mesmos policiais que participam na diminuição geral da letalidade nas favelas – que ninguém se poupa em elogiar – podem ser os mesmos que se envolvem em mortes violentas, ocultação de cadáveres e de provas, como tudo indica ter acontecido no caso Amarildo na Rocinha (com 25 PMs acusados no processo).
Como vários estudiosos têm afirmado, sem uma transformação mais ampla e inteligente de todo o modelo das polícias no Brasil, as UPPs correm o risco de permanecer ilhas, ilhas que tanto alcançam bons resultados como refletem os problemas de sempre. A UPP nasceu com o propósito de ser um policiamento pacificador de áreas urbanas dominadas pelo tráfico, não com o compromisso de perseguir e erradicar o tráfico. A ideia seria criar uma visibilidade estratégica do policiamento em algumas favelas e com isso diminuir a letalidade, garantindo a liberdade de ir e vir. É desse modo que ela se dá a conhecer nacional e internacionalmente, como uma espécie de reconquista das favelas pelo Estado, restaurando a ideia de verticalidade e de englobamento (como diriam os antropólogos Ferguson e Gupta).
Creio que a extensão de convencimento mundial desta “imagem de marca” é hoje diferente daquela que se imaginava poder vir a ser em 2008, quando foi implementada a primeira UPP no morro de Santa Marta, bem no coração do Rio. Entretanto, movimentos sociais e a mídia nacional e internacional têm revelado as fragilidades do programa. Reitero que hoje um dos aspectos mais importantes a pesquisar é como a ideia de mudança no seio da velha PM está sendo aparentemente apoiada e propagada por alguns de seus distintos oficiais. Tal é o caso do Coronel Ibis Pereira, no Rio, e também de outros homólogos que atuam em diversos estados do país. É preciso ouvir essas vozes e saber o que estão dizendo. É sempre muito interessante acompanhar quando a mediação política se desloca de fora para dentro das polícias.
JU – Em recentes manifestações de rua no Brasil, a polícia foi acusada de despreparo para atuar nesse tipo de situação, que apresentava um perfil muito distinto das intervenções a que estava habituada. Em sua opinião, isso revela alguma lacuna na formação policial?
Susana Durão – Em sociedades democráticas, que prezam a imagem das suas polícias e a confiança que as burocracias produzem entre os cidadãos, a gestão da chamada “ordem pública” deve ser predominantemente preventiva e só muito ocasionalmente reativa. Quando governos e policiais usam o que chamo de violência-como-contenção em passeatas que são majoritariamente pacíficas, eles estão sinalizando uma autoridade que está longe de ser democrática. Pode dizer-se que todo o jogo de poderes e a espetacularização da repressão policial são apoiados por setores e classes sociais conservadoras.
Mas eu creio que o Estado e os governos eleitos devem ter aqui um papel pedagógico diferente do que têm tido. Existem muitos domínios diferentes de formação policial que são importantes para os profissionais: patrulhamento e prevenção, ordem pública, segurança interna, criminologia e investigação criminal, gestão da segurança, policiamento municipal, segurança pública e segurança privada, gestão civil de crises. Podem ainda definir-se áreas mais específicas que merecem treino: o policiamento da violência doméstica e de gênero, crimes de ódio e ofensas raciais, crimes contra a criança, etc.
No Brasil, como em muitos outros lugares, a formação e o conhecimento partilhado é parte do processo. Infelizmente, quando os governos recusam escutar o que dizem os movimentos sociais e os mais pobres, o policiamento ostensivo assume todo o seu esplendor. Creio assim que mudanças no policiamento têm necessariamente que ser sincronizadas com mudanças na política institucional, na forma como o Estado gere o que é de todos, incluindo a autoridade democrática.
JU – Sinta-se à vontade para outros comentários, opiniões e observações que julgar importantes sobre os temas tratados pelos seus estudos.
Susana Durão – Gostaria de ressaltar que o IFCH e a Unicamp estão tendo um papel importante na promoção do conhecimento e na abertura para um debate sobre segurança e polícia. Este ano, como resposta aos eventos e movimentos populares de junho, foram já organizadas várias discussões científicas. Ajudei a montar as “Primeiras Jornadas sobre Segurança Pública: a Polícia e as manifestações recentes da sociedade civil”, em 4 de setembro. Como disse antes, um mês depois realizamos a primeira reunião do COPP-LAB.
Em 17 de outubro ofereci uma palestra aos alunos do Instituto de Artes sobre temas da segurança e do policiamento, a convite da professora Graça Navarro. Jorge Coli, diretor do IFCH, teve a feliz ideia de convidar o coronel Ibis Pereira para nos vir falar, em 13 de novembro, a respeito do modelo policial brasileiro e suas críticas. Outros eventos estão sendo planejados em várias instâncias, em colaboração com a Pró-Reitoria de Pesquisa.
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