quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Brancos capitalistas e negros operários- Marlucio Luna

Para o historiador, professor e escritor Joel Rufino dos Santos, a República se estruturou baseada na separação entre brancos e negros

Marlucio Luna
O conceito de democracia racial, durante décadas, serviu de disfarce para o racismo no Brasil. O movimento negro, surgido na República Velha, passou por diversas fases. Viveu o desejo de integração àsociedade, buscou a afirmação de identidade e chegou ao século XXI defendendo a preservação de valores culturais, bem como a implementação de políticas compensatórias. Joel Rufino dos Santos - historiador, professor universitário, escritor agraciado com o Prêmio Jabuti em 1979 (categoria Literatura Infantil) e em 2008 (categoria Literatura Juvenil) - é um dos grandes estudiosos da cultura afro-brasileira. Nesta entrevista, ele analisa a trajetória do movimento negro, fala sobre o caráter racista da sociedade brasileira e destaca a necessidade de ajustes na política de cotas raciais.
Como o senhor avalia a trajetória do movimento negro brasileiro?
Podemos dizer que o movimento negro nasce na República Velha, dentro da perspectiva de integrar o negro à sociedade. Essa lógica vai guiar posteriormente a Frente Negra, movimento social que reunia negros liberais, getulistas e até mesmo integralistas. Ela surgiu no início da década de 1930, tendo como objetivo combater o racismo e lutar por melhores condições de trabalho, saúde e educação para a população negra. Para tanto, era estimulada a fundação de clubes, associações e entidades que apresentassem o negro como cidadão cumpridor de seus deveres e detentor de direitos.
Essa foi a visão incorporada pelas escolas de samba naquele período.
Exato. Paulo da Portela promove uma profunda transformação no universo das escolas de samba. Ele diz que sambista deve ter pescoço e pés cobertos. Isso significa que o lenço de seda e tamanco típicos do malandro dão lugar ao sapato e ao colarinho fechado. A própria escola de samba se organiza de maneira institucional, buscando reconhecimento e aceitação por parte da sociedade. Paulo da Portela adota o "bom-mocismo" como estratégia para trazer também o branco para dentro da escola de samba. Assim vemos o aparecimento do enredo, a entrada do poder público na organização dos desfiles e a disputa por títulos.
(...)
O "ponto de virada" ao qual o senhor se refere é influenciado pelo movimento negro americano?
Eu diria que a transformação no seio do movimento negro brasileiro recebe influência direta de dois elementos importantíssimos: o black soul dos Estados Unidos e as lutas de libertação na África. Torna-se importante conhecer a história da África e da luta contra a escravidão. Depois de décadas de primazia da ideia de democracia racial, ganha força a percepção de que há uma grave situação a ser enfrentada.
Como assim?
O sociólogo Octavio Ianni dizia que quem estudasse as relações raciais no Brasil estaria contando a história do Brasil. Na década de 1970, havia um grande debate sobre a suposta alienação dos negros brasileiros, em função das referências da cultura americana - música e roupa, por exemplo. Eu, particularmente, achava essa influência positiva. A estética e o discurso estavam juntos. A experiência dos negros americanos podia ser, sim, útil para os brasileiros. A identidade que se afirmava era antes de tudo a do negro, independentemente de ser americano ou brasileiro.
(...)
A sociedade brasileira é racista?
Gosto de trabalhar com três conceitos: preconceito, discriminação e racismo. Preconceito existe em toda parte do mundo e é a manifestação branda do racismo. A discriminação carrega em si a ideia de monopólio do papel social. Quer um exemplo? A visão estabelecida de que cabe ao branco mandar e ao negro cumprir tarefas. Já o racismo é mais profundo. Ele é um elemento estruturante da sociedade brasileira.
Em que sentido?
O Brasil se estruturou como república a partir da separação entre brancos (capitalistas e proprietários) e negros (operários ou membros do exército de mão de obra de reserva). Os últimos 100 anos acentuaram as consequências do racismo. Volto ao exemplo do mercado de trabalho e as suas ocupações. A tecnoburocracia dos altos escalões não tem negro. A ele restam as atividades menos sofisticadas. Cito o meu caso como exemplo. Eu era o único negro entre os professores na pós-graduação da área de humanas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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