A entrevista foi realizada antes (13/06) das manifestações que tomaram em massa as ruas das principais capitais do Brasil, mas traz elementos interessantes para se refletir sobre a atual conjuntura econômica do país e os discursos da presidenta Dilma Rousseff.
Eduardo Sá
Gostaria que você fizesse uma análise, do ponto de vista econômico, do governo Lula comparando com o da Dilma e contrastando ou não com o anterior do PSDB.
Conheço a Dilma razoavelmente bem porque ela foi minha aluna na Unicamp, e era ministra de Minas e Energia e eu presidente do BNDES, então durante dois anos foi muito frequente nossa interação. No seu caso, ela sabe o que é desenvolvimento econômico, o que são questões estruturais, política econômica, geopolítica, centro e periferia, desenvolvimento nacional. Acho que ela é muito tímida, porque faz às vezes alguns discursos que apontam numa direção não conservadora e rapidamente assume uma postura conservadora.
Você atribui isso em função do que? Por causa da governabilidade e as coligações partidárias?
Acho que não. No caso do Lula, para mim foi um mistério. Eu assisti como membro do governo a luta entre duas correntes: a nossa que queria inovações na vida brasileira e necessárias transformações profundas no padrão de desenvolvimento brasileiro, e as forças conservadoras que se encastelaram no governo Lula com certa leniência dele, que eu talvez tenha subestimado. Mas o Lula pragmaticamente buscava o que ele perseguia: o discurso priorizando de forma absoluta o combate à inflação, por exemplo. E só pode combatê-la com um formato, que é o neozelandês, que está implícito no Brasil desde tempos de FHC, e ele foi por aí.
O Henrique Meirelles no Banco Central nesse sentido foi uma sinalização?
O Meirelles não foi só uma sinalização, na verdade tiveram outras sinalizações logo no início do seu governo. O Palocci também foi uma sinalização ao chamar aquele menino que veio do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), Joaquim Levy, que era uma figura extremamente importante na administração Palocci. O núcleo político econômico do presidente Lula era basicamente conservador, alinhado com o Consenso de Washington. Eu e gente como o Pinguelli [Rosa], o ministro do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra, Tarso Genro, acho que até o Dirceu também, representávamos uma tendência que achava que o Brasil necessitava de profundas transformações estruturais para conseguir um padrão de desenvolvimento adequado.
E a Dilma não seguiu essa linha?
A Dilma conhece tudo isso, mas quando assumiu seu governo começou dando uma de tipicamente conservadora. Pegou o juro e empurrou lá para cima, freou tudo, no primeiro ano. E depois tentou recuperar o discurso da retomada do desenvolvimento, mas ela nunca teve coragem de colocar o seu discurso e conduta de maneira explícita. Então o governo dela acaba sendo muito conservador, apesar de o discurso dela muitas vezes não o ser. Vou te dar um exemplo que está quase na imprensa diária, a questão da relação do Brasil com a Pérsia, o Irã. Em termos de política externa o governo Lula foi muito mais avançado que o governo Dilma, a administração dela está muito mais alinhada aos Estados Unidos. O governo Lula assumiu diversas posições que representavam, do ponto de vista geopolítico, importantes zonas de atrito com o governo americano. Eu diria que a principal delas aconteceu com o Irã, mas também houve isso em relação à Venezuela, que o governo Lula se alinhou de um modo geral explicitamente em relação à América Latina. A Dilma em matéria de política externa certamente é muito mais conservadora que o Lula, que foi muito mais ousado.
Em política interna eu acho que a cartilha da presidente Dilma é de difícil leitura, porque ela dá uma no cravo e outra na ferradura. Quer dizer, ela faz um discurso que vai priorizar o projeto de desenvolvimento e ao mesmo tempo eleva a taxa de juros. Se você é empresário você fica tonto, qual é o sinal? No final você acaba achando que não há sinal nenhum, e que vai vir mesmo juro mais alto. Na condução político econômica não há nenhum projeto explicitado. Acaba sendo um pragmatismo que começa a se desgastar. A Dilma disse na imprensa: todos que estão criticando a política econômica agora são os mesmos pessimistas que disseram que o Brasil ia ter um problema de crise energética nesse ano. Eu acho que ela não entendeu direito a crítica: a estrutura energética brasileira está submetida a fortíssimas tensões, e tem procurado segurar um pouco em cima da termoeletricidade. Mas a termoeletricidade, dado o mecanismo que foi feito para tarifação de energia, leva toda a tarifa de energia para cima para cobrir os seus custos e impede o governo de fazer a proposta de redução significativa do custo da energia elétrica para as famílias. Havia uma promessa de reduzir em 20% a conta de energia, e não foi possível cumprir. Porque o modelo energético brasileiro está eivado de erros e há subinvestimento público na rede energética, além de ter sido inflacionada de uma maneira perigosa e entorpecedora da soberania nacional.
E como está a indústria nacional?
O caso da indústria é uma situação parecida. O presidente Lula teve uma visão muito pragmática, uma visão amplificada muito superficial, no sentido de que ele generalizou o sonho dele como metalúrgico. O que um metalúrgico tem mais medo? De que a indústria demita, a automobilística que é o coração estratégico da metalurgia. E quando é que ela demite? Quando a demanda está fraca, dispensa, não dá hora extra, no limite pode até demitir. Ele fez uma política de expandir extremamente o consumo de automóvel, sem se dar conta dos impactos na balança de pagamentos, da desorganização urbana que viria inexoravelmente associada a um modelo que faz explodir a população mecânica nas cidades.
A nossa presidente sabe que a construção civil é muito mais importante que a indústria metalúrgica para segurar e criar condições para um desenvolvimento econômico mais justo, entretanto ela está insistindo na linha do Lula. Anunciou que vai dar financiamento para todos que compraram casa própria, automóveis, eletrodomésticos e imóveis. Continua o endividamento das famílias, no longo prazo isso pode ter muitas implicações, é só a economia não crescer. O problema é o seguinte: numa economia capitalista você assume a dívida e paga com o crescimento, mas se não houver crescimento a dívida te esmaga. Tem que ter uma equação de crescimento, mas só o crescimento não resolve o desenvolvimento.
Sobre a construção civil, as empreiteiras estão se esbaldando, o que não falta é obra…
Falta obra sim. A construção civil tem diversos componentes, tem uma construção que é feita por empresa, que é a clássica operação de valorização imobiliária. Outra dimensão é o povo formiguinha que constrói as suas próprias residências. Esse consumo é enorme, por exemplo, de cimento. A indústria de cimento se aguenta muito porque o povão faz mais puxadinho, é uma coisa impressionante. Aliás, como se explica que o nosso povão durma? Porque ele faz as próprias habitações, mas de má qualidade porque não tem assessoria de engenharia e tem muita dificuldade para adquirir os materiais. Ele poupa para comprar os materiais, o povo brasileiro é muito mais poupador do que se imagina. Depois que ele consegue construir sua residência ele poupa para a do filho, é uma coisa impressionante. A vida toda ele está tentando melhorar a habitação, segundo os critérios dele. Se você quisesse estimular a construção popular as prefeituras teriam assessoria de engenharia para recomendar fundação, cuidado com água servida, não interromper fluxo de água, etc. E tem uma terceira que é a construção industrial, de pequenas, médias e grandes obras públicas, isso pega todo o setor que você chamou de empreiteira. Então tem uma dimensão de empreiteira, uma de negócio imobiliário e de construção popular. E eu acho que o Minha Casa Minha Vida está só orientado a construção civil organizada por empresa. Do meu ponto de vista é um erro, se você quisesse convocar o povão para melhorar sua residência seria muito mais fácil.
Ao invés de lucrar as empresas, o próprio povo sendo empregado?
Do ponto de vista de geração de emprego, tanto vai ser feita pela empresa como pelo povão, porque é a mesma encomenda de madeira, pedra britada, alvenaria… Por isso que o povão vai poupando, ele vai juntando esses materiais, só não pode juntar cimento porque tem pedra. A poupança popular não é posta na caderneta de poupança, é muito posta nos materiais que ele vai acumulando para fazer obras. É uma coisa impressionante, tanto que eu acho que para estimular a construção popular você tinha que generalizar a assistência técnica e o financiamento favorecido dos materiais de construção.
Muita gente elogia o avanço no meio agrícola com a evolução tecnológica, os agrotóxicos, transgênicos, o agronegócio. Por outro lado, muitos criticam as violações aos povos tradicionais e a reforma agrária.
As pessoas estão se esquecendo de uma coisa fundamental, que é o chamado pequeno produtor. Ele opera com uma tecnologia mais singela, que produz grande parte do que utiliza para sua própria produção, como a semente e seus reprodutores, e que é a base da estrutura social do campo brasileiro. Não é a grande empresa agroindustrial, ele é a base da economia agroexportadora brasileira. Quando você tem uma ligação virtuosa entre a pequena produção e a grande empresa agroindustrial você pode ter algumas coisas interessantes. Mas o grosso do alimento do Brasil é feito por propriedade de porte médio e pequeno, aliás é por isso que a questão indianista está sendo tão mal tratada.
E a questão da reforma agrária nesse contexto?
É muito mais importante escorar e dar vitalidade à pequena produção já existente, onde tem gente assentada, do que você assentar nova. As experiências de assentamentos mostram que se a atividade agrícola exercitada pelo pequeno produtor for escorada dá uma resposta espetacular. A eletrificação rural, por exemplo, tem um impacto espantoso nas regiões que não têm energia elétrica. Porque permite irrigar mais terra, produzir comida com mais facilidade, ter geladeira e conservar o alimento por mais tempo, e tudo isso robustece a economia da pequena produção. Mas a pequena produção no Brasil não tem um projeto cooperativista sério implementado, o que é um erro enorme, inclusive do ponto vista social.
Mas a Dilma está seguindo essa linha de ampliar os assentamentos já estabelecidos e não distribuir mais terras, e os movimentos são críticos a esse programa.
Ela não está errada, e é uma economista que gostaria de ver o país andando com um desenvolvimento social mais justo. O que ela não tem é coragem de enfrentar os interesses conservadores brasileiros, e acaba pragmaticamente cedendo a eles.
A mídia alardeou recentemente a questão da inflação, falando do tomate, etc. Como estamos?
Você tem diversas componentes, a mais óbvia é se o Brasil vai querer ser primário exportador. É evidente que a opção agrícola vai cada vez mais refletir na estrutura de preços internacionais e na taxa de câmbio. Então, se os preços dos produtos que o Brasil exporta sobem até o pé de alface sobe, porque toda a atividade agrícola passa a ser referenciada pelos preços atingidos por algumas culturas de exportação. Por isso é necessário o imposto de exportação flexível para você poder administrar essas coisas. Agora eles estão assustadíssimos, porque o dólar está subindo e vai acender a inflação. Ao dizer isso, o que o empresário deduz? Devo comprar dólar o mais rápido possível, e encurtar o mais possível toda a dívida que eu tenho. Então você emite um sinal fortíssimo para a recessão.
A condução da política econômica no Brasil é uma coisa muito espantosa, porque ela é esquizofrênica, ela aponta para um lado e para outro. Vai para onde? Na cabeça do empresário, que é forte na economia, diz assim: não estou nem aí, porque se eu tenho mercado e a taxa de câmbio me favorecer eu importo, se eu não tenho mercado eu não importo, mas de qualquer maneira eu empurro para cima se a taxa de câmbio subir porque eu vendo. Você importa a inflação para dentro do país, então a crise nas relações externas tem um efeito terrível dentro do edifício brasileiro porque nós não temos salva guardas.
A aposta atual de salva guardas seria a China?
A China tem salva guarda para tudo. Primeiro porque ela não abriu o seu setor financeiro, não deixou o sistema internacional entrar. Só em Hong Kong, que é uma espécie de território de transição. A China abriu para o capital produtivo, mas não para o capital financeiro. Eles são muito mais espertos e sagazes, pelo menos têm revelado isso até agora.
O cenário político econômico brasileiro não é confortável, é inquietante. Procura-se tapar o sol com a peneira. A crise mundial é muito mais séria, é uma crise estrutural, não é só uma oscilação de nível de atividade. Vai avançar sem ter uma solução à vista. Os mecanismos que foram apontados como saídas repetem a mesma coisa, você vê os Estados Unidos e o Japão agora. Mas do ponto de vista dos bancos, dos operadores do sistema, essa injeção de trilhões de dólares é bem vinda. Frente a um cenário de crise o que os bancos fazem, ajudam a diminuir a crise? Não, eles fazem o que Keynes dizia, engessam a liquidez, reduzem o empréstimo porque passam a ter medo da inadimplência. Então eles recuam, mas não dão sustentação nenhuma a nenhum esforço de crescimento. Os bancos privados brasileiros estão se comportando exatamente no padrão internacional, e nós não estamos numa pior posição porque temos o Banco do Brasil e a Caixa Econômica. Foram umas das poucas instituições que resistiram à privatização, junto com o BNDES que está sendo usado de uma maneira equivocada de desenvolvimento.
Hoje estão ocorrendo protestos por conta das tarifas de transportes públicos…
Mas como é que pode também resolver o problema dos transportes públicos hoje, dentro de cidades que estão entorpecidas por frotas absolutamente colossais de automóveis particulares? Eu não sei exatamente o número de São Paulo, mas no Rio nos últimos dez anos a população automobilística cresceu 9% ao ano. Significa, se os especialistas em organização rodoviária estão certos, que o novo veículo automotor precisa de pelo menos 30m² de área de parqueamento e circulação para não prejudicar o trânsito. Converta isso em pressão sobre a malha urbana. Em Brasília, que foi uma cidade projetada, me disseram que cresce 15% ao ano a população de automóveis na região metropolitana. É uma coisa absolutamente assustadora e insustentável.
É assustador também o que está acontecendo com a motocicleta, porque ela aparece como uma solução mais barata, mais rápida e ágil, mas as malhas urbanas não foram preparadas para ela. Então a mortalidade por acidente é uma coisa horrorosa, e o pior é que a de segunda mão está sendo vendida no interior, está substituindo jegue, jumento, burro e o cavalo. Só que no interior as condições de manejo dela são muito mais perigosas: é um morticínio em massa, as curvas de mortalidade por acidente estão crescendo de uma maneira assustadora.
Você participou de debates críticos sobre a reforma do Maracanã, e conhece bem o Rio de Janeiro. Como a cidade está ficando com essas obras para atender os grandes eventos?
Fizemos investimentos colossais no Brasil todo e no Rio em particular para reduzir a população que vai assistir os jogos. No caso do Maracanã a redução é dramática. Estamos construindo casas de ópera climatizadas para botar a torcida para fora. O fenômeno sociológico, antropológico, da torcida, que é do meu ponto de vista perfeito em relação ao brasileiro, é considerado pela Fifa subversivo, perigoso e para ser eliminado. O Brasil cedeu e todos os projetos reforma estão inspirados dessa maneira. Uma coisa que é absolutamente impressionante, um desses estádios fizeram cálculos de 146 jogos com alta lotação para começar a reverter a curva de prejuízo. É brutal.
Aqui você ainda alterou a tipologia do Maracanã, era um símbolo sua foto do Rio vista de cima. É uma mutilação, do ponto de vista da memória da cidade. Você já fez ideia do torcedor brasileiro sentadinho numa cadeira? O Engenhão, coitado, fizeram tão depressa que já está com riscos em sua engenharia. Espero que no Maracanã não dê esse tipo de risco. Como é que se compatibiliza o Maracanã reduzindo sua população, com o amor brasileiro à pátria de chuteiras? Suponha você que vamos muito bem na Copa das Confederações e na Copa do Mundo, como é que vai ficar o povão? Ele não tem dinheiro para comprar a entrada, que está cada vez mais cara. E não tem lugar para ele, que não pode mais nem ficar em pé torcendo. Tem muita gente de gravata que também vai lá para ficar junto do povão como na festa de fim de ano. É um espaço social de integração naquele curto período, e acabou.
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