sábado, 4 de janeiro de 2014

A filosofia nua e crua. por Juvenal Savian Filho

De sua fascinação por Hegel, Freud e Lacan, Vladimir consegue passar a uma análise do sujeito (tanto do ponto de vista da clínica como do ponto de vista da epistemologia) e desta à política. O leitor encontrará aqui uma autodissecação da experiência de Safatle, jovem pensador brasileiro de destaque no cenário nacional e com importantes inserções também em contextos internacionais. O caráter aparentemente técnico e “abstrato” das primeiras respostas é melhor compreendido quando se chega à crueza das últimas, mas mesmo a carne das últimas mostra-se finamente articulada. Se a estrutura teórica ilumina as respostas mais nuas do final, percebe-se que a crueza já agia, latejante, desde o início da entrevista.
Você crê na utilidade de pensar uma instância reguladora dos bancos?
O presidente da Islândia tem uma bela frase. Ele diz que uma economia com bancos muito fortes é sinal de um país que vai mal. Pois os bancos drenam os melhores cérebros para o sistema financeiro, que é um sistema improdutivo por excelência. Se alguém é um ótimo engenheiro, o banco vai contratá-lo. Onde estão os engenheiros do Brasil? Estão nos bancos. Por que não temos engenheiros para extrair petróleo? Porque eles estão fazendo contas nos bancos. O que nós precisamos é enfraquecer o sistema financeiro. Não há nenhum país que realmente precise da quantidade de bancos que temos. Qualquer discussão econômica deve partir da reflexão de como quebrar a força de intervenção econômica dos bancos na economia mundial.
Você falou dos 12 últimos anos que, aparentemente, fecharam um ciclo na política brasileira. Que avaliação você faria desse ciclo?
O governo Lula pode ter tido vários problemas, mas tem coisas a pôr em seu favor na balança. Eu teria altas críticas, do ponto de vista político, mas reconheço que foi importante ele ter criado as condições para um sistema mínimo de segurança social no Brasil, assim como permitir um aumento real do salário mínimo de 50% acima da inflação. Nesse ponto, Lula não é a continuação de FHC. Mas seu maior problema está exatamente em uma das suas ideias mais importantes: a criação de um capitalismo de Estado no Brasil; um capitalismo no qual o Estado é não só o financiador dos maiores atores econômicos, mas também o parceiro de todos eles. O lado importante foi a quebra do processo de desmonte da capacidade de intervenção do Estado, herança de FHC. No entanto, o que aconteceu foi a transformação do Estado no financiador da oligopolização da economia. Um povo como o brasileiro, que tem uma capacidade empreendedora inegável, não teve a oportunidade de se colocar como empreendedor, porque não há nenhum setor da economia que não seja controlado por um oligopólio. Um exemplo clássico: o BNDES injetou uma fortuna na Friboi para ela se transformar num player global. O que eles fizeram com o dinheiro? Compraram todos os pequenos frigoríficos. Com o dinheiro do Estado, oligopolizaram a economia. Isso é uma coisa inaceitável, mesmo do ponto de vista capitalista. A única coisa que presta no capitalismo é a concorrência; e a gente não tem.
E o governo Dilma? O que tem para pôr na balança em seu favor?
Muito pouco. Foi um governo de inação absoluta. Achavam que bastava simplesmente gerenciar a herança de Lula. O país continua numa desigualdade econômica brutal, e não se promoveu uma reforma fiscal que obrigasse os ricos a pagar mais impostos e fornecer serviço para os mais pobres. Um país desigual como o Brasil não tem imposto sobre grandes fortunas, por exemplo. Não é possível nem dizer que o país tem imposto progressivo, porque nossa maior alíquota de imposto de renda é de 27,5%. Roosevelt, que não era nenhum comunista, para conseguir tirar o país da crise, implementou uma alíquota de 75%. Temos um governo que se diz de esquerda mas que nunca discutiu reforma fiscal como meio de combate à desigualdade econômica, o que é surreal. Como resultado, hoje as famílias da dita nova classe média têm seus salários corroídos por serem obrigadas a pagar educação e saúde privadas e não vão conseguir mais ascender socialmente. Qual é a resposta do governo? Nenhuma. O governo não teve capacidade de reação porque não tem ideia, não tem criatividade, não consegue pensar. Basta ver o tipo de resposta às manifestações por educação pública: “fiquem tranquilos, pois daqui a 8 anos a gente resolve o problema da educação com o dinheiro do Pré-sal”. Que tipo de resposta política é essa?
E quanto ao cenário das eleições 2014?
Há dois cenários possíveis. Podemos ter a gestão do vácuo político, que pode acontecer porque os candidatos que estão no páreo até agora são candidatos que conseguem o feito de se colocar à direita do governo. Isso é algo assustador, pois vimos a população dizendo que quer educação, saúde, transporte (o que significa que o Estado vai ter de arrecadar mais, vai ter de ter dinheiro e pessoas capacitadas), mas o que se vê nos programas de governo dos candidatos é um antiestatismo primário que lembra os anos 1990, sem dar conta das reais demandas da sociedade brasileira. Esse é um cenário possível. Gere-se o vácuo político. Outra possibilidade é a de que se radicalizem os extremos, tanto à direita quanto à esquerda, porque o Brasil tem uma direita forte. Se precisar ir para a rua, ela vai. É uma direita popular, que pode ser uma direita de costumes, econômica e política. Por isso, é  necessário que surja um polo de contraposição forte à esquerda, pois, se não houver, corre-se o risco de toda a agenda debandar para o lado da direita. Seria uma situação muito parecida com a da Europa. Há uma tendência mundial de fortalecimento do polo da direita, e o Brasil corre o risco de cair nisso. A não ser que surja outro polo que possa puxar para o outro lado.
Você é candidato a governador?
Hoje? Não. Entrei de fato em um partido, o PSOL, e isso pode soar um pouco contraditório para alguém que falou que acha que a política está além dos partidos. Mas entrei num partido que, de forma muito clara, compreendeu a necessidade de se pensar uma política para além dos partidos. É importante que isso se transforme numa pauta eleitoral, o que nunca aconteceria se a pauta não fosse encampada por um partido. A primeira coisa agora, antes de qualquer discussão sobre nomes, é criar uma clara plataforma para entrar na agenda do debate brasileiro. O que a população brasileira espera é uma alternativa clara. Quer saber como faremos a economia funcionar. A direita sempre tem uma vantagem: ela não precisa deste detalhamento porque opera pelo afeto mais sensível das pessoas, que é o medo (medo da insegurança, medo do Estado, medo da mudança etc.). É nisso que a direita é forte. A esquerda não pode fazer isso. Esse não é o afeto que mobiliza nosso campo político. O afeto que nos mobiliza é o da invenção, da confiança e da crença de que, apesar das dificuldades e das limitações, vamos conseguir criar algo melhor do que temos. Crença de que não estamos condenados a olhar para trás, como a mulher de Lot, até virar uma estátua de sal. As pessoas querem a experiência da liberdade efetiva, da criação, a experiência do enriquecimento – enriquecimento material, cultural e social.
Você pediu para ser fotografado num frigorífico. Qual a razão dessa associação entre o seu trabalho intelectual e a crueza da carne cortada?
Primeiro porque eu me lembrei de Sol Lewitt, que dizia: “eu quis retirar a pele das coisas para ver suas estruturas”. Essa é uma boa imagem do que é a filosofia. Existe um desejo dessa natureza em todo aquele que faz filosofia. Retirar a pele das coisas, esfolar um pouco as coisas, ou seja, ver um pouco aquilo que outros não gostariam de ver. Isto está longe de ser uma revelação epifânica. É uma complexificação da visão, acompanhada da decepção em relação a certezas do senso comum. É a consciência de que se vai andar muito tempo brigando consigo mesmo. Sartre tinha essa ideia: “filosofar é pensar contra si mesmo”. Não há nada mais natural, numa experiência filosófica, do que, num dado momento, perceber que se estava errado. A filosofia sempre terá essa agressividade, essa estranha agressão contra si mesmo. Pensei na história da carne também porque sempre fui muito impressionado pela capacidade de nos reconhecermos em um animal. Não é possível ficar diante de um animal morto e não se sentir concernido, porque aquela carne é parecida com a sua. É se ver numa outra posição, o que obriga a colocar uma série de questões. É uma modalidade inelutável de pensar contra si mesmo. Por fim, meu avô tinha uma fazenda de gado onde bois eram abatidos, então isso me remete ainda à experiência da infância.
Juvenal Savian Filho
é filósofo e teólogo, doutor pela Universidade de São Paulo e docente da Universidade Federal de São Paulo

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