Os shoppings das grandes cidades transformaram-se em espaços de soberanias contestadas. Em princípio são espaços públicos para negócios privados.
Prisões e hospitais são espaços segregados nos quais se entra compulsoriamente e a saída depende de documentação liberatória. Quartéis exigem senha ou símbolos em código na entrada e filtro na saída. É enorme o número de espaços preclusos em qualquer cidade, incorporados ao que se parece, mas não é, a natureza. Já em tempos pré-cristãos os muros da cidade referiam-se a obstáculos físicos propriamente ditos. Durante a idade média, idem, e no interior das cidades muradas emparedavam-se castelos. No mundo moderno os limites territoriais das nações substituíram por postos de aduana, sentinelas e pedras ou monumentos simbólicos as sólidas e extensas construções antigas. Isto é, até recentemente, quando teve início o renascimento dos muros.
Os mais conhecidos são a gigantesca cerca construída pelos Estados Unidos na fronteira com o México e a recente parede erguida por Israel separando-o dos árabes e palestinos. A África do Sul mantém inclusive cercas eletrificadas na fronteira com o Zimbawe. A Arábia Saudita ergueu altíssima estrutura de concreto no limite com o Yemen e projeta outra no encosto com o Iraque. Por razões variadas a Índia vem estabelecendo arranjos materiais para impedir o trânsito entre seu território e os vizinhos Paquistão, Bangladesh e Birmânia. Esses arranjos incluem o enterro de minas explosivas e a instalação de aparatos eletrificados ao longo de sua fronteira. O Uzbesquistão isolou-se do Kyrgystão, em 1999, e do Afganistão, em 2001, sendo por sua vez isolado pelo Turkemenistão.
A política de preclusão de espaços é utilizada também pela Botswana, Tailândia, Malásia, Irã e Brunei, entre outros países. A lista é impressionante e crescente, sublinhando importante aspecto da vulnerabilidade da secular instituição da soberania nacional, conforme magnífica pesquisa de Wendy Brown, de Berkeley (Walled States, Waning Sovereignty, 2010). Mas o fenômeno é, também, intra-nacional.
Os escandalosos conflitos nos presídios maranhenses são parentes próximos das controvérsias provocadas pelo rolézinho atribuído à juventude das periferias urbanas. Parentes, mas não siameses. A prisão se funda em inconteste soberania de seus administradores e a quase total suspensão dela em seus internos. Assim como nos hospitais em relação a médicos e funcionários de um lado e pacientes de outro. O conflito do rolézinho se dá em torno a soberanias contestadas, e isso faz toda a diferença.
Portões de ferro impedindo a entrada em edifícios é uma demarcação de soberania, defesa contraposta a presumidos assaltos. Cacos de vidro encaixados em muros de mansões equivalem às minas indianas soterradas. O extraordinário aparato de segurança ostentado por condomínios residenciais de alta renda lembra a militarização de fronteiras, só ultrapassadas mediante adequadas senhas ou símbolos. A separação entre o público e o privado impedindo a invasão do privado pelo público é matéria legal e consuetudinária. Há lugares no mundo em que os carros não são trancados nem são fechadas as entradas das residências. Quando lecionei na Universidade de Wisconsin, em Madison, as portas dos fundos das casas eram apenas encostadas e no condado de Palo Alto, Califórnia, os carros ficavam abertos ao relento.
Também ocorre a segregação física do público para prevenir a intromissão do privado. Praças dispõem de grades, assim como monumentos. Os habitantes sem teto das cidades são denunciados por se banharem em chafarizes urbanos. O consenso sobre a invasão de soberanias aqui é extenso. O potencial de conflito se esconde na sutil distinção entre o fim da soberania privada e o início da soberania pública. São espaços de soberania contestada cujo esclarecimento demanda negociações e senso de medida, de acordo com o espaço disputado. Se parece razoável o fechamento noturno de alguns parques públicos, evitando sua transformação em dormitório de grupos carentes (o humanismo do politicamente correto ainda não abriga esta variante), a cobrança de ingressos para a fruição de praias litorâneas estimularia distúrbios gigantescos. No entanto, alguns hotéis de alto luxo, à beira-mar, vêm fazendo precisamente isso sem grandes alvoroços das populações. Consuetudinariamente a soberania privada substituiu a pública.
Os shoppings das grandes cidades brasileiras transformaram-se em espaços de soberanias contestadas. Em princípio são espaços públicos para a transação de negócios privados. Tais como as feiras semanais. Os passantes ou simples observadores das barracas não são obrigados a apresentar documentação para andar por ali, observar os negócios e, se desejarem, negociar. Os comerciantes não têm como saber se os passantes combinaram encontros ali para um almoço, se são clientes em potencial ou se são criminosos oportunistas. Seus negócios são, certamente, privados, mas estabelecidos em espaço público. Delimitar a fronteira entre as duas soberanias não é tarefa simples. Figuradamente, a prática democrática lembra uma porta giratória, sem maiores dificuldades para entrar ou sair. O diabo é descobrir de que são feitos os gonzos.
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