Entrevista com Sacha Llorenti, homem de confiança de Evo Morales, embaixador na Bolívia na ONU e chefe do G-77, que está completando 50 anos.
Página/12 e Clacso TV
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Quais temas novos apareceram na última década?
O Grupo está tratando em profundidade do desenvolvimento. Coincide com a agenda das Nações Unidas, que tem temas como a agenda de desenvolvimento pós-2015... Que é quando a ONU avaliará se as metas sobre redução da pobreza foram cumpridas. E fixará como continua esse debate sobre desenvolvimento sustentável e financiamento para o desenvolvimento São alguns dos eixos centrais da nova proposta multilateral para encarar temas ainda não resolvidos, como a erradicação da pobreza, da fome e da desigualdade. Por isso, a cúpula que começa no próximo dia 14 quer se valer de um cenário de discussão muito ambicioso.
Precisa tratar, é claro, desse objetivo de acabar com a pobreza, mas além disso quer tratar de temas como o das instituições financeiras. Discutir seu estado e sua falta de democracia. Analisar as relações necessárias para construir uma nova globalização baseada não nas leis do mercado, mas fundamentalmente na solidariedade e na integração. Acrescento outros pontos: cooperação, comércio, povos indígenas, situação atual no marco da crise financeira que vive o planeta. Os temas essenciais do grupo estão vinculados justamente a isso, comércio, desenvolvimento e cooperação.
Qual era a identidade do G-77 há 50 anos e qual é a identidade hoje? O que os une hoje?
Essa pergunta é muito interessante porque, há 50 anos, um dos fundadores do G-77 foi justamente o Che Guevara, que representou Cuba na conferência de Genebra. Naquele 1964, 77 países se reuniram para iniciar tarefas de coordenação e encarar conjuntamente as negociações com os países desenvolvidos. Naquele momento, o que os unia era um passado comum, porque muitos desses 77 países vinham do colonialismo ou estavam saindo dessa etapa. Tinham pela frente o desafio do desenvolvimento. Unia-os também o tipo de relação com os países desenvolvidos porque muitos eram independentes desses países do denominado primeiro mundo. Cinquenta anos depois, praticamente as mesmas coisas nos unem: um passado comum e um presente comum. A diferença é que o grupo praticamente duplicou em número. No lugar dos 77 de então, agora somos 133 países, incluindo a China. Nós nos reunimos não apenas para coordenar esforços, mas para ter uma só voz na hora de negociar com os países desenvolvidos. Em uma reunião que tive há alguns dias com o Secretário Geral, Ban Ki-moon me disse: “Sem o G-77, não se pode fazer nada nas Nações Unidas”. E ele tem razão.
São dois terços do total de membros da ONU.
É uma força muito importante. Quando nos colocamos de acordo, não há quem nos pare nas Nações Unidas. É uma mostra de que as relações de poder no mundo podem ser modificadas. Podemos ter a esperança de transformar essas relações no marco da fraternidade, da integridade e da unidade dos povos.
Em termos de discussão financeira, o que se pode esperar da Bolívia? Qual novo critério, qual novidade ou qual linha de trabalho comum?
Não posso me adiantar à declaração porque nós ainda a estamos discutindo aqui em Nova York. No entanto, posso dizer com segurança que vai tratar do tema da reforma das instituições de Bretton Woods, das instituições financeiras, no sentido de sua imprescindível democratização. Vamos tocar no tema dos fundos abutres, é claro. Sem dúvida, o ponto estará na declaração final. Mas além disso discutiremos como a crise financeira atinge os países em desenvolvimento. Reitero que não posso me adiantar às conclusões. Será no dia 15 de junho quando conheceremos qual é a voz de nossos chefes e chefas de Estado e de governo em Santa Cruz. A cúpula será histórica e, junto com os temas que abordei, tratará sobre a mudança climática.
Quais características o debate sobre a mudança climática tem hoje? Porque foi mudando e, inclusive, assuntos como mineração e outros tipos de ativismo foram incluídos na agenda de muitas sociedades e movimentos.
O debate está em um momento muito importante porque, em 2015, haverá em Paris uma cúpula de chefes de Estado e de governo para fixar um novo marco normativo internacional depois do Protocolo de Kioto. Nesse mesmo ano, faremos uma conferência sobre pequenos estados insulares, que é muito importante para o tema da mudança climática. Será em Samoa. E em Lima, em setembro, outra cúpula discutirá as responsabilidades que os países desenvolvidos têm na emissão de gases de efeito estuda e qual será o compromisso para reduzi-la. Nosso critério de análise se baseia no princípio de responsabilidades comuns e diferenciadas entre os países em desenvolvimento e os emergentes. Como se vê, a agenda que vem com esse tema é muito forte e será forte a presença do debate em Santa Cruz de la Sierra. É preciso recordar, isso sim, que 133 países de todas as latitudes do mundo representam uma enorme diversidade de opiniões, de posições ideológicas e políticas, de níveis de desenvolvimento… Inclusive uma grande diversidade geográfica e cultural.
Por que o senhor destaca isso?
Porque, às vezes, não é tão fácil nos colocarmos em acordo, apesar de termos muitas coisas em comum.
Sobre a pobreza, um embaixador da ONU me disse que o estado de emergência não se esgotou, mas que a ONU fará um balanço de quais são as emergências que ficam pendentes e as articulará com novos objetivos. O que não foi resolvido? A pobreza, a pobreza extrema ou a fome?
Eu escutei vários colegas aqui, sobretudo de países desenvolvidos, falarem que um dos objetivos deve ser a erradicação da pobreza extrema. A esse respeito, o G-77 há muito tempo tem uma posição muito clara: para nós, o objetivo é a erradicação da pobreza, e não da pobreza extrema. Se não, por aí estão algumas estatísticas que podem ser muito bem acomodadas de acordo com determinados interesses.
Então, o tema central é a erradicação da pobreza, e junto com a pobreza estão é claro a erradicação da fome, a atenção a enfermidades curáveis, a possibilidade de que todo mundo tenha acesso à água, ao saneamento, aos serviços básicos, à comunicação, à energia sustentável. Esses são requisitos fundamentais quando falamos de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, temos que falar das responsabilidades dos países desenvolvidos. Há pouco, em um encontro sobre esse tema, uma pessoa fez uma exposição brilhante sobre o tema do saneamento. Explicou como as grandes capitais europeias construíram seus sistemas de saneamento e esgoto durante os séculos XVIII e XIX. Como esse desenvolvimento foi financiado? Foi financiado com as colônias. Com o que eram, então, suas colônias. Quer dizer, nossos países já financiaram o desenvolvimento.
O desenvolvimento alheio.
Exatamente. Já financiamos o desenvolvimento alheio. E agora nos referimos às responsabilidades dos países desenvolvidos para contribuir o desenvolvimento, sobretudo dos países mais vulneráveis. Não estamos falando de caridade, mas de corresponsabilidade. Existem compromissos denominados Ajuda Oficial para o Desenvolvimento. Essa é a terminologia internacional. Esses compromissos até agora foram cumpridos pelos países desenvolvidos. Então, um dos temas centrais é que sejam cumpridos, fundamentalmente para a África, Ásia e para os países em desenvolvimento em geral. Falar de erradicação da pobreza significa estabelecer uma luta integral, holística, contra esses males que, é claro, estão vinculados a outros males.
É um tom de justiça reparatória.
Alguns países no Caribe já propuseram iniciar processos de reparação pela escravidão, por exemplo. E há compromissos assumidos pelos países desenvolvidos que hoje estão sendo descumpridos. Eu digo isso por uma perspectiva nacional, a da Bolívia, porque como representante na ONU do Estado que preside o G-77, repito que existe uma grande diversidade de opiniões.
Estabelecer um acordo entre 133 pessoas é complicado. Entre países, mais ainda. Mas existe, da nossa perspectiva, uma responsabilidade dos países desenvolvidos para cumprir com esses compromissos que têm a ver com um processo de reparação e de responsabilidade histórica.
Volto ao tema da pobreza. Como a Bolívia o mede? É apenas uma questão de receita? Para o governo de Evo Morales, quando alguém deixa de ser pobre?
Na Bolívia, temos uma visão integral da luta contra a pobreza. Não é apenas a receita. Temos melhorado substancialmente a receita. Quase duplicamos o salário mínimo no nosso país. Melhoramos as condições de vida de todos os setores. De todos, absolutamente. De acordo com a ONU, até 2009, 10% de todos os bolivianos e bolivianas haviam saído da pobreza para rendas médias. A renda per capita também subiu enormemente. As reservas internacionais passaram de 1,7 bilhão de dólares para 15 bilhões em poucos anos. Antes, a história dos ministros da Economia e Finanças em nosso país consistia em pedir esmola a organismos internacionais para pagar os salários. O déficit era muito amplo e o orçamento não era suficiente para pagar os professores e médicos. Agora, levamos oito anos consecutivos de superávit fiscal, o que nos permite não apenas economizar, mas também investir. O investimento público deu um salto qualitativo de 400 milhões de dólares ao ano em 2005 para mais de 5 bilhões de dólares no último ano.
Também foram enormemente incrementadas as receitas da nossa renda petroleira. Mas, para nós, a luta contra a pobreza é um tema integral. Tem a ver com as condições de receita, mas também com os níveis de educação e saúde. O presidente Evo incorporou planos de assistência especializada para garantir que as crianças fiquem na escola. Há um subsídio, chamado Juancito Pinto, por meio do qual se dá uma pequena quantia em dinheiro para garantir que as crianças fiquem no colégio. Isso possibilitou reduzir a deserção de 5% para 1% em poucos anos.
Por meio do subsídio Juana Azurduy, que é uma patriota latino-americana compartilhada intimamente pela Argentina e pela Bolívia, damos assistência às mães grávidas. Além de lhes dar uma pequena quantia em dinheiro, garantimos a possibilidade de que sejam atendidas por médicos regularmente. Isso reduz a mortalidade infantil e a mortalidade materna. Em comunicações, graças ao satélite Tupac Katari, teremos acesso à telefonia e à internet em todo o país. Sobretudo na área rural, que era a mais esquecida. Em energia, a mesma coisa. Quero dizer que a erradicação da pobreza está vinculada à renda, à educação, à saúde, às comunicações, ao saneamento, ao acesso à água. À soma da felicidade, como dizia Simón Bolívar. E, para conseguir isso, é preciso uma base material. Nesse sentido, a Bolívia está vivendo uma profunda revolução econômica, social, política e cultural.
Quando se iniciou o primeiro governo do Evo, em 2006, um dos objetivos não era apenas exportar gás, mas industrializá-lo. O que aconteceu em oito anos?
É no gás que está, digamos, a receita do Estado. O governo utiliza o gás fundamentalmente para diversificar sua economia, para não ficar dependente de uma coisa só, e ao mesmo tempo para financiar os projetos sociais e de infraestrutura, que são imprescindíveis.
Usa as divisas.
A exportação de gás financia, entre outras coisas, a industrialização. Estamos terminando de construir uma fábrica de ureia, uma fábrica separadora de líquidos para dar valor agregado ao gás. E o presidente já anunciou há pouco tempo um investimento de 1,8 bilhão de dólares para uma petroquímica que será instalada no departamento de Tarija, que faz fronteira com a Argentina. Enquanto isso, investimos em geração de energia. Vamos inaugurar logo uma termoelétrica, também em Tarija, e estão avançados os projetos de hidrelétricas em distintos lugares da Bolívia. Soma-se a isso, é claro, um forte investimento – como nunca antes o Estado realizou – em infraestrutura de rodovias, o que vai nos permitir ligar um país antes desarticulado, desvertebrado. É uma nova visão de desenvolvimento. Antes, e o presidente Evo dizia isso há alguns dias. O pouco dinheiro que a Bolívia tinha era investido em apenas um departamento. Agora foram gerados equilíbrios para que os nove departamentos se transformem em nove polos de desenvolvimento. Mas além da industrialização do gás, estamos trabalhando na industrialização dos nossos recursos minerais. Em fábricas de fundição, em fábricas de cimento para distintas áreas do ocidente do país. A diversificação faz com que as coisas não fiquem limitadas à industrialização de recursos naturais não renováveis, mas também dá um forte incentivo especialmente para a agricultura.
No plano dos recursos não renováveis, qual é o equilíbrio para um país que exporta, entre outras coisas, matérias-primas energéticas?
O primeiro objetivo é abastecer o mercado interno. Por exemplo, as instalações de gás doméstico foram multiplicadas na Bolívia, sobretudo na cidade de El Alto, que você conhece muito bem. É uma cidade revolucionária, pois não encontro outro termo mais preciso. Não é o único berço do atual processo de transformações, mas é um dos principais. El Alto está aumentando suas instalações de gás doméstico e isso muda a vida das pessoas porque reduz os cursos de energia e permite poupar tempo de suas vidas. Depois do abastecimento interno, vem a exportação.
Inicialmente, de matéria-prima. E, ao mesmo tempo, o valor agregado por meio da a industrialização. Outro favor-chave á a nacionalização dos recursos naturais, a recuperação dos recursos naturais. É importante destacar mais uma vez que, antes da chegada do presidente Evo Morales, antes da nacionalização dos recursos, a maioria do dinheiro que agora é utilizado para revolucionar a Bolívia era destinado às transnacionais e servia para financiar outros países. Esse dinheiro agora é utilizado em prol dos empreendimentos nacionais, mas além disso o Estado recuperou o controle até da negociação dos preços dos nossos hidrocarbonetos.
Antes, a empresa X, estrangeira, negociava na Bolívia com a empresa Y, também estrangeira, os preços, os volumes... tudo. Agora se recuperou o poder do Estado e isso implica um exercício de soberania e a possibilidade de aplicar projetos que beneficiem primeiro os bolivianos, e logo permitam tirar o maior proveito possível de um recurso renovável. Essa deve ser a base da diversificação da nossa economia.
A Bolívia terá eleições presidenciais. Como o governo as enfrenta?
Com muito trabalho e com muito otimismo. Há pouco tempo, uma pesquisa perguntou aos bolivianos: “Quem você acredita que é o melhor presidente da Bolívia da história?”. O Evo saiu em primeiro. Repare que é um presidente no momento do exercício de seu mandato sendo considerado o melhor presidente da história. Isso, eu acredito, é inédito. Deve-se ao fato de que as bolivianas e os bolivianos estamos sentindo em nossa vida cotidiana a revolução e o processo de mudança liderados por Evo. E as pesquisas mais recentes apontam para uma cifra que está próxima de 70% de aprovação de seu mandato.
O Evo encarnou esse processo revolucionário. Eu digo sinceramente: em um exercício de honestidade intelectual e política, Evo Morales é sem dúvida o personagem histórico mais importante dos últimos 500 anos na Bolívia. Conseguiu a libertação política e a libertação social, mas também a libertação econômica e cultural, o que nos permite falar de uma verdadeira revolução. Vemos com otimismo as eleições de outubro próximo. Estamos convencidos de que o povo boliviano ratificá o presidente, que é o líder natural desse processo, e das grandes mudanças da revolução. As pessoas estão vivendo essa mudança. Sabem, com muita esperança, que agora nossos filhos e nossos netos terão um país melhor. Sem dúvida.
Tradução: Daniella Cambaúva
Tradução: Daniella Cambaúva
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