ESCRITO POR ALBERTO RABILOTTA |
QUARTA, 20 DE AGOSTO DE 2014 |
Não é preciso ser um especialista para ver que nos últimos meses, e de maneira cada vez mais acelerada, o imperialismo estadunidense e seus aliados da OTAN estão tratando de criar todas as condições para transformar as relações internacionais em um novo teatro de confrontos para manter o já questionado sistema internacional unipolar e a hegemonia neoliberal.
Há apenas três anos, quando nascia a multipolaridade com os esforços de criação da UNASUL e a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), com a Rússia tratando de consolidar uma região euroasiática e o Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (BRICS) explorando uma alternativa à tirania neoliberal, o imperialismo se lançou à criação de novos focos de tensão, intervindo na Líbia – que nessa época era um país-chave de uma necessária integração africana -, na Síria e em países da África, e relançou com força a subversão em vários países latino-americanos.
Na segunda metade de 2013, quando assolava a agressão intervencionista na Síria, o último grande país do Oriente Médio com um sistema no qual conviviam diversos povos, culturas e religiões, no marco da reunião do G20 em São Petersburgo, e graças à carta do papa Francisco, a Rússia introduziu a questão da Síria, ameaçada com ataques aéreos por parte dos Estados Unidos e países da União Europeia (UE) pelo suposto e inventado uso de armas químicas por parte do governo sírio, e forçou uma difícil negociação para frear a ameaça de bombardeios em troca de se tirar o arsenal químico da Síria e destruí-lo.
A firme posição russa no caso da Síria, que contou com o apoio da China e da maioria dos países do mundo, mostrou pela primeira vez que existiam forças capazes, na cena internacional, de por limite ou término ao sistema unipolar criado pelos EUA desde o colapso da União Soviética, e começar o restabelecimento de uma ordem multipolar, algo que para o imperialismo significaria o começo do fim de seu projeto de hegemonia neoliberal total.
Não em vão, desde 2013 e, em particular, durante a primeira metade de 2014, quando a CELAC se formou, e na perspectiva da reunião de cúpula no Brasil, o grupo dos BRICS esboça suas intenções de criar instrumentos financeiros para se libertar do dólar, que diretamente, ou através de seus lacaios locais dos EUA e seus aliados, agravaram suas tentativas subversivas na Venezuela e incrementaram a desestabilização política, financeira e econômica em outros países latino-americanos.
É nesta perspectiva de desestabilização, especificamente do governo da presidenta Cristina Fernandez de Kirchner, que joga um importante papel a decisão e toda a atuação do juiz Thomas Griesa, de Nova York, para favorecer os “fundos abutres”: essa decisão constitui uma nova arma do sistema judicial estadunidense para submeter os países devedores, que são maioria no mundo, a uma lei estadunidense que sempre é interpretada de maneira a satisfazer o grande capital.
E, desde janeiro passado, o imperialismo neoliberal pôs em ação as forças que há anos vem financiando, entre elas os ultranacionalistas e neonazistas, para criar um perigoso foco de tensão permanente na Ucrânia, na “porta de entrada” da Rússia.
O rechaço do presidente constitucional Victor Yanukovich a uma integração com a União Europeia, que significava a desindustrialização do país, disparou a operação para derrotá-lo e substituí-lo por um que aceitaria, como foi o caso e muito rapidamente, o ditado de Washington, do FMI e da OTAN, destruindo com armas e bombardeios a oposição interna neste país, com a clara tentativa genocida de eliminar a população de língua russa, como disse na televisão um “jornalista” ucraniano (1), e assim recuperar essas terras. Não disse, mas se pode assumir, que uma vez “limpos” de “gente inútil”, esses territórios serviriam para instalar armamentos ofensivos da OTAN e criar uma constante ameaça direta à segurança da Rússia.
Para iniciar a recente cruzada contra a Rússia, como disse o ministro das Relações Exteriores de Moscou, Sergei Lavrov, “se não fosse a Ucrânia, asseguro, qualquer outro aspecto da política interior ou exterior da Rússia teria servido de razão”. Lavrov lamentou que as boas intenções expressadas pelos “sócios ocidentais na Europa” não resistem à inércia da Guerra Fria que buscam “levar todos os europeus para baixo do teto da OTAN e fazê-los com que se dirijam à Rússia com um tom severo”. Esta miopia política, acrescentou, está baseada na intenção de impor sua vontade a todo custo, de adotar sanções contra quem discordar e represálias contra quem está pela “independência e não aceita obedecer à ordem mundial unipolar” (2).
Esta ordem unipolar permite aos EUA e seus aliados a impunidade criminal que se manifestou pela enésima vez na agressão, com bombardeios e forças terrestres que mataram cerca de duas mil pessoas, na Faixa de Gaza. Israel atua impunemente graças ao apoio político, diplomático e às armas e dados de inteligência estadunidenses, como confirmam os documentos revelados recentemente pelo informante Edward Snowden e publicados pelo jornalista Gleen Greenwald (3).
A lei estadunidense deve prevalecer
Os Estados Unidos, cuja existência jamais foi ameaçada por guerra alguma, fora a guerra de Secessão, não tem mais do que uma definição ideológica de seus inimigos: “são aqueles que não amam o modo de vida estadunidense, onde quer que estejam”, como afirmava em 2005 o historiador Eric Hobsbawm, durante uma conferência na Universidade de Harvard, dedicada a destacar as diferenças entre a hegemonia estadunidense e a antiga hegemonia britânica.
Este historiador argumentou que a Grã Bretanha, como sua hegemonia não dependia da potência imperial, mas de seu comércio, se adaptou mais facilmente às derrotas políticas, como já havia feito quando teve sua maior derrota política, com a perda das colônias na América. E recordou que durante a Guerra Fria o crescimento das empresas estadunidenses no mundo foi feito sob patrocínio do projeto político dos EUA, com o qual se identificaram muitos dos grandes patrões, assim como a maioria dos estadunidenses. Em troca, dada sua hegemonia mundial, a convicção de Washington de que a lei estadunidense deve prevalecer nas relações dos estadunidenses com o mundo adquiriu uma força política considerável.
E Hobsbawm concluiu a conferência com uma pergunta cuja resposta é, agora, evidente: Manterão os EUA esta lição ou cederão à tentação de manter uma posição que se corrói, apoiando-se na força político-militar, engendrando assim não a ordem mundial, mas a desordem, não a paz mundial, mas a guerra, não o avanço da civilização, mas a barbárie? (4).
Agora, o passeio pela realidade e o despertar da “inteligência social”
Por sua natureza, que implica “desengatar” a economia capitalista da sociedade e por o Estado a serviço exclusivo dos grandes interesses econômicos, financeiros e comerciais, o imperialismo neoliberal não tem outra alternativa senão destruir toda forma de democracia e de soberania popular e nacional. Sua única opção é o totalitarismo. O intelectual húngaro Karl Polanyi, historiador da economia, considerava a ideia dos “mercados autorregulados” em nível mundial – o neoliberalismo – como uma perigosa utopia, e já em 1945 advertia que os EUA tinham embasamento histórico e ideológico para tentar realizá-la (5).
A utópica missão do neoliberalismo é instaurar um regime universal baseado nas leis estadunidenses, como recorda Hobsbawm, e para tal deve conseguir que os Estados soberanos cedam sua soberania, aceitem aplicar a lei estadunidense (não é o que Griesa exige?) e derrubem as barreiras nacionais, para assim se converterem em Estados garantidores de um sistema a serviço exclusivo dos interesses econômicos representados nos oligopólios financeiros, industriais, comerciais, minerais, agroindustriais, entre outros, cujas sedes estão nos EUA, na UE, Japão, Canadá e outros países da órbita imperial.
Tal sistema não admite alternativas socioeconômicas, sejam nacionais ou regionais, estejam ou não baseadas no capitalismo, que impliquem a intervenção ativa dos Estados, graus de planejamento socioeconômico e que os povos, através dos organismos políticos e sociais, atuando democraticamente, tomem decisões soberanas para defender legítimos interesses populares e nacionais.
Exatamente porque não pode tolerar competição alguma proveniente de outras alternativas socioeconômicas, já que não tem absolutamente nada de positivo a oferecer aos povos, é que o neoliberalismo pôde se desdobrar em toda sua dimensão a partir do colapso da União Soviética, quando também desabou a ordem mundial multilateral, e foi aplicado com especial brutalidade na Rússia e demais ex-países socialistas.
Uma das razões pelas quais o imperialismo neoliberal se jogou no que parece uma tresloucada corrida para impor seu ditado em nível mundial é que, em duas regiões muito importantes, América Latina e Eurásia, foram lançados movimentos de integração econômica, comercial, financeira e até monetária. E que estas iniciativas – que incluem os BRICS como mecanismo de comunicação entre várias regiões - receberam novos impulsos políticos e estão dando passos até a criação de mecanismos para funcionar sem uma subordinação ao sistema neoliberal. Para o projeto imperial estadunidense, que busca submeter todos os povos, tais iniciativas regionais devem ser destruídas.
O ministro da Corte Suprema argentina Raúl Zaffaroni, ao responder à pergunta do jornal Página 12 sobre que reflexão merece, como jurista e não como ministro da Corte, a situação que apresentam os chamados “fundos abutres”, disse: “vejo isso com um pouco de medo. Para dizer a verdade, com muito medo. Como diria Galeano, tudo parece de cabeça para baixo. Se trouxéssemos alguém que tivesse dormido umas décadas, não entenderia nada. Temo pelo mundo, essa é a verdade. O poder político, o dos Estados, está superado pelo poder econômico das oligarquias, de pequenos grupos de pessoas que manipulam a seu gosto os meios de comunicação e o poder econômico (...) E digo mais claramente: sempre houve e é inevitável que haja vínculos e acordos entre os poderes político e econômico, mas agora o primeiro tende a desaparecer ou a ser manejado completamente pelo segundo, transnacionalizado”.
Mais adiante, e ao ser perguntado por que nos encontramos hoje em tal situação, o ministro Zaffaroni responde que “essa é a segunda parte da questão a respeito da qual temos de pensar no futuro. Nossos próprios governos cederam a soberania nacional, sujeitando-nos a um tribunal provincial estrangeiro (no caso do juiz de Nova York, Thomas Griesa) e a uma Corte Suprema que declara não lhe interessar nada, em favor de uns especuladores com capacidade de pagar advogados e fazer lobbies (...) Creio que o primeiro que devemos fazer ao olhar para o futuro é reformar a lei e declarar imprescritível a administração fraudulenta em prejuízo dos interesses nacionais em toda negociação internacional que comprometa substancialmente a economia nacional. Sei que me pendurarão qualquer rótulo para desclassificar esta opinião, mas o mundo do crime internacional vem pensando nessas coisas há algum tempo” (6).
Também em 3 de agosto no Página 12, e talvez como prova de que está se formando essa “inteligência social” de que falava Karl Marx, o filósofo José Pablo Feinmann começa seu artigo enfatizando que “o capitalismo das últimas décadas tem se impulsionado no modo da vertigem”, descrição com que muitos analistas e jornalistas estão de acordo, e acrescenta que “o Império é o Império e não fala dialetos, não respeita a autonomia dos ‘polos’, arrasa as identidades nacionais, os Estados nacionais, o orgulho europeu, as vidas iraquianas ou as vidas de quem se opõe. Não há política multipolar, o capitalismo é um sistema totalizador. O foi desde 1492, quando nasce, e o é hoje, mais do que nunca, por meio da grande revolução deste tempo, que não é do proletariado marxista, mas, novamente, a do burguês conquistador: a comunicacional” (7).
Tudo isso parece salientar que o combate contra o imperialismo neoliberal é a tarefa principal, e é uma tarefa urgente porque em sua tentativa totalizadora chegou a uma fase demente e mortal para nossas sociedades e para o planeta. E justo quando terminava este artigo, li a esclarecedora análise do filósofo Fernando Buen Abad Dominguez, “Multipolaridade” sim, mas anticapitalista”, do qual reproduzo uma pequena parte:
“Mas o perigo da confusão (até não ter claro de que “multipolaridade” falamos ou fala cada um) não anula a necessidade de quebrar o domínio do império ianque. Tampouco implica cancelar – ou satanizar – qualquer iniciativa, mesmo parcial, que permita dar passos adiantes na soberania concreta dos povos. Só precisamos assegurar que tais passos se dirijam até onde os povos mandem, e não apareçam os piratas reformistas que sempre torcem caminhos e veredas até seus reinos burocráticos, atormentados com gestores servis ao capitalismo. A graça está em não cair nas armadilhas semânticas da burguesia. A graça está em não se iludir com falácias nem se tornar escravo delas. Esse erro nos custou muito” (8).
Notas:
1) "É muito simples. Você precisa matar 1,5 milhão de pessoas na Donbass"
2) Sergei Lavrov em entrevista com Itar-Tass. URL http://en.itar-tass.com/russia/743470
3) Dinheiro, Armas e Vigilância: Os U.S. são a Chave para Todo Ataque Israelense, Glenn Greenwald URL https://firstlook.org/theintercept/2014/08/04/cash-weapons-surveillance/
4) Eric J. Hobsbawm cita as páginas 72 e 78 (terceiro capítulo) do livro “O Império, a democracia, o terrorismo”. André Versaille Editeur/Monde Diplomatique, 2009.
5) Karl Polanyi, Capitalismo Universal ou Planejamento Regional?, página 486 do livro Essais de Karl Polanyi, Éditions du Seuil, 2008.
6) “Isso é um escândalo jurídico”, entrevista ao ministro da Corte Raúl Zaffaroni, Página/12 del 3 de agosto de 2014. URL http://www.pagina12.com.ar/diario/economia/2-252153-2014-08-03.html
7) José Pablo Feinmann, “A Sociedade dos Lobos”,http://www.pagina12.com.ar/diario/contratapa/13-252149-2014-08-03.html
8.- Fernando Buen Abad Domínguez, Rebelión, 5 de agosto 2014, URLhttp://www.rebelion.org/noticia.php?id=188114
9) Fernando Buen Abad Domínguez, Rebelião, 5 de agosto 2014, URL
Alberto Rabilotta é jornalista argentino-canadense.
Artigo publicado originalmente em América Latina em Movimento.
Traduzido por Daniela Mouro, Correio da Cidadania.
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