quarta-feira, 10 de junho de 2015

De editor-chefe a guardião do cofre


Por Angela Pimenta em 09/06/2015 na edição 854
Ao longo dos últimos vinte anos, no posto de editor-chefe do jornal The Guardian, Alan Rusbridger comandou uma das mais talentosas, audazes e produtivas redações do planeta. Um de seus grandes feitos foi reconhecer a inevitabilidade da revolução digital, comandando oGuardian na travessia – ainda incompleta e deficitária – de um jornalão centenário para uma vibrante usina de inovação que aposta no acesso gratuito e irrestrito de seu conteúdo. Quem acessa o site do jornal pode ler o que quiser, mesmo sem se cadastrar. O Guardian é tão bom – sobretudo depois da última reformulação do site, agora mais horizontal e interativo – que uma parcela crescente de leitores, ou “sócios”, como Rusbridger gosta de chamá-los, se dispõe a pagar mensalidades de 15 a 60 libras. Mas a conta ainda não fecha. No ano passado, o jornal reportou uma perda de 30 milhões de libras.
Rusbridger reconhece que embora o faturamento do meio digital tenha crescido, ainda é preciso encontrar uma fórmula sustentável para sobreviver no longo prazo. Além de assinaturas, as receitas incluem publicidade, patrocínios de entidades filantrópicas e pagamentos pulverizados de leitores no chamado modelo crowdfunding. Mas o Guardian só consegue se manter graças ao Scott Trust, um fundo hedge milionário legado pela família de mesmo nome que controlava o jornal em 1936. Por outro lado, o Guardian nunca teve tantos leitores, 7 milhões, dos quais dois terços fora do Reino Unido. Graças a eles, compete de igual para igual com o New York Times pela liderança global no nicho de jornal de prestígio em língua inglesa. O interesse pelo leitor estrangeiro resulta em projetos como a inteligente e divertida animação que explicava a última eleição britânica para “non-brits”.
Historicamente, o Guardian segue uma linha claramente engajada de centro-esquerda, que mescla apuração rigorosa e ativismo editorial. É o caso da série de matérias “Keep it in the ground”, sobre o impacto da queima de combustíveis fósseis no agravamento do aquecimento global. Contando com o apoio de 217.000 leitores via uma petição online e contribuições tipocrowdfunding, o jornal tem produzido matérias multimídia e entrevistado figurões “do outro lado”, como o CEO da Shell, Ben van Beurden. A empreitada visa convencer duas poderosas fundações voltadas à filantropia – Bill e Melinda Gates e Welcome Trust – a vender ativos investidos no setor de óleo e gás.
Missão delicada
Em sua carta de despedida do cargo de editor-chefe, Rusbridger conta que há vinte anos ninguém indagaria um editor de jornal sobre seu modelo de negócios. “Hoje é uma das primeiras perguntas”, afirma, com ironia. Ele se diz animado com outro efeito colateral da revolução digital, que chama de “a nova democracia da expressão”. Se de um lado o Guardian produz textos, fotos, gráficos, áudios, vídeos, blogs e a combinação de todos esses formatos, ele também é alvo e receptor de conteúdo gerado por seus leitores – seja em suas próprias plataformas ou ambientes externos, como Facebook, Twitter ou iWatch. “Eles contribuem conosco de uma forma inimaginável há 15 anos”, diz.
Para dar conta da avalanche de conteúdo gerado por usuários, ainda sob Rusbridger o Guardiancriou um novo ofício jornalístico, o de moderador de comentários. Longe de ser apenas um bedel do leitor, esse profissional deve atuar de acordo com uma tendência dominante no ramo de produzir e receber notícias e comentários: a curadoria de conteúdo em redes sociais. Além de cumprir a tarefa burocrática de mediar comentários e banir conteúdo impróprio, com a ajuda de algoritmos o mediador exerce papéis-chave em uma redação digital. Ele destaca opiniões, ideias einsigths que julga relevantes, realimentando o diálogo com o público. Além de dedicar a devida atenção ao leitorado do jornal, seu trabalho também enriquece apurações em andamento e fornece munição para novas pautas.
Em termos estritamente noticiosos, o caso mais notável da era Rusbridger é a cobertura da divulgação dos arquivos da NSA, deflagrada em 2013. Como se sabe, o caso revelado por Glenn Greenwald, então um discreto blogueiro radicado no Rio Janeiro, a partir de arquivos roubados pelo analista da agência americana NSA Edward Snowden, viria a despertar a ira dos serviços de inteligência americano e britânico, além de estremecer relações diplomáticas entre os Estados Unidos e países como Brasil e Alemanha.
Mais importante, a cobertura do Guardian, posteriormente publicada em parceria com veículos como o Washington Post, New York Times e O Globo, garantiu ao público o direito de saber o grau de invasão da privacidade digital e telefônica de milhões de usuários em boa parte do planeta. No Brasil, o caso serviu para acelerar a aprovação do Marco Civil da Internet, em 2014. Nos Estados Unidos, resultou na expiração da chamada Lei Patriótica, da era George W. Bush, substituída por uma recém-aprovada lei que demanda autorização judicial para interceptação de dados telefônicos pelas agências de inteligência. Para o Guardian, assim como para o Washington Post, o caso resultou em um prêmio Pulitzer em 2014.
Desde dia 1 de junho, o jornal está sob o comando de sua primeira editora-chefe, Katharine Viner. No jornal desde 1997, e com experiência na Austrália e Estados Unidos, ela conquistou o direito de liderar o Guardian em uma eleição direta na redação. Já Rusbridger vai assumir a direção do Scott Trust. De agora em diante, ele tem a delicada missão zelar pela saúde financeira do projeto singular de autogestão legado pelo patriarca John Scott. Por um lado, Rusbridger deve garantir a primazia editorial, mantendo o poder de informar acima do lucro. Por outro, deve aumentar a rentabilidade do Guardian, impedindo que os déficits contínuos ameacem a sua sobrevivência.
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‘The Guardian’, um jornal que tem causas – Luciano Máximo [Entrevista de Alan Rusbridger aoValor Econômico]

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