Venda a sua liberdade, suprima a luz do dia, viva para
trabalhar, e você também poderá fazer parte de uma elite
intoxicada e paranoide.
17 DE JUNHO DE 2015 ÀS 15:14
Por: George Monbiot (jornalista, escritor e ambientalista)
Fonte: The Guardian, Londres
Talvez porque a alternativa seja demasiado horrível de ser encarada,
nos convencemos de que aqueles que detêm o poder sabem o que
estão fazendo. A crença numa inteligência superior que nos orienta
e guia é muito difícil de ser contestada. Sabemos perfeitamente que
as condições de vida se deterioram a cada dia. Hoje, a maioria dos
jovens tem pouca perspectiva de vir a possuir uma casa própria,
ou até mesmo de alugar uma moradia decente. Empregos
interessantes são espatifados e fragmentados através de um
taylorismo (*) digital que torna cada fragmento uma atividade
repetitiva, tediosa e cansativa.
O mundo natural, cujas maravilhas melhoram nossas vidas, e
do qual depende a nossa sobrevivência, está sendo dilapidado
a uma terrível velocidade. Aqueles a quem apelamos, no governo
e na elite econômica, não detém esse declínio; eles o aceleram.
O sistema político-social que dá origem a tudo isso é sustentado
por uma aspiração principal: a fé, quase sempre cega, de que se
nos esforçarmos o bastante acabaremos nos integrando à elite,
até mesmo quando os padrões de vida declinam e a imobilidade
social a cada dia mais se petrifica. Mas a que estamos aspirando?
A uma vida melhor do que a que temos, ou pior?
Os Dez Mandamentos do Poder
Há pouco, uma nota de um analista do grupo Barclay's Global
Power and Utilities, de Nova York, vazou. A mensagem era
dirigida a estudantes que começavam um curso intensivo de
verão, e ela oferece uma visão da cultura tóxica para a qual
eles estavam sendo induzidos.
“Quero apresentar a vocês os Dez Mandamentos do Poder...
Durante nove semanas vocês irão viver e morrer por eles...
Esperamos que você seja um dos últimos a ir embora a cada
noite, não importa o que... Recomendo que você traga um
travesseiro para a sala de aula pois ele fará com que dormir
debaixo da sua mesa de trabalho seja muito mais confortável...
Este curso intensivo significa realmente assumir um compromisso
com sua mesa de trabalho... um dos alunos pediu à organização
para ser liberado durante um fim de semana para participar
de uma reunião familiar – a resposta foi que ele poderia ir,
desde que amarrasse o seu telefone celular no pulso e a sua
mesa de trabalho às costas... Acabou o tempo de brincadeiras
e agora é hora de apertar o cinto de segurança”.
Acabou o tempo de brincadeiras... Mas será que para os
jovens que faziam o curso esse tempo algum dia começou?
Se esses alunos têm o tipo de pais descrito em artigo publicado
há poucas semanas no jornal Financial Times, certamente não.
O artigo falava de um novo ofício que entra na moda: o “consultor
de berçário” (nursery consultant). Pais entregam seus filhos a
esses profissionais que prometem – cobrando R$ 1.400,00 a
hora – treinar os pequenos e inseri-los no caminho certo para
que, um dia, façam parte de uma elite universitária.
Espanhol e chinês mandarim aos dois anos
Enquanto isso, no Reino Unido, no campo da Saúde Mental, a
demanda de leitos para crianças aumentou 50 % nos últimos
tempos. Mesmo assim, o país ainda não conseguiu atender os
pedidos de socorro de muitos pais que, quando os filhos tinham
seis meses de idade, já tinham decidido que eles iriam para a
Universidade de Cambridge e, em seguida, entrariam para o
Deutsche Bank. Nem para aqueles pais cuja filha de dois anos
“tinha um tutor com quem passava duas tardes por semana
para melhor desenvolver o aprendizado da matemática superior
e a alfabetização, bem como, nas demais tardes, praticar
exercícios de leitura, de correta pronúncia dos fonemas,
mais aulas de dramatização, de piano, de francês para
iniciantes, sem falar na natação e no balé”. Os pais estavam
considerando adicionar também aulas de espanhol e chinês
mandarim quando a garota surtou. “A menina estava tão
esgotada e amedrontada que, quando chegou na clínica,
não conseguia abrir a boca”.
O problema não é apenas britânico. Em Nova York,
treinadores-animadores cobram 450 dólares (cerca de R$ 1.500,00)
a hora para treinar crianças pequenas em habilidades sociais
que “podem ajudá-las na admissão às mais prestigiosas escolas
privadas”. Entre outras coisas, essas crianças aprendem a
esconder traços que poderiam sugerir que elas estão dentro
do espectro do autismo, o que reduziria as suas chances de
seleção.
Da infância até a idade de procurar emprego, no jovem é
incutido um condicionamento de negação da vida e do amor.
Sem se preocupar com a alegria e a felicidade, no cerne
dessa mentalidade pontifica uma ambição que é ao mesmo
tempo desesperada e inútil. Tudo que essa ambição poderá
proporcionar não compensará o seu custo: a perda da infância,
da vida em família, das alegrias do verão, do trabalho
detentor de significado, da sensação de se chegar a alguma
coisa ou lugar, de realmente viver o momento existencial.
Separação dos alunos
Para a salvaguarda da atual cultura tóxica, a economia é
redefinida, o contrato social é reescrito, a elite é liberada
dos impostos e dos regulamentos, e de todas as outras restrições
impostas pela democracia. Para onde a elite vai, somos induzidos
a segui-la. Como, segundo se informou, o regime de avaliação
dos alunos nas escolas primárias no Reino Unido era demasiado
permissivo, no ano passado a Secretaria de Educação anunciou
um novo teste para alunos de quatro anos de idade. Uma escola
primária em Cambridge logo adotou a novidade: separação dos
alunos em diferentes classes desde os quatro anos de acordo
com as tendências, habilidades e capacidades neles detectadas.
Logo depois, um discurso da Rainha apertou ainda mais o parafuso
anunciando cortes no orçamento para a educação. Essas novas medidas
irão aju
dar as crianças, ou irão prejudicá-las? Quem sabe responder a essa
pergunta?
O governo costumava publicar dados estatísticos sobre a saúde
mental das crianças a cada cinco anos. Isso era regra até o ano de
2004, quando a prática foi encerrada. Sabe-se, no entanto, que na
Inglaterra a oferta de vagas para tratamento de doenças mentais
em crianças aumentou 50% entre 1999 e 2014, mas esse incremento
do número de vagas ainda se mostra insuficiente para atender a
demanda.
Crianças que sofrem crises de saúde mental estão sendo despejadas
nas enfermarias para adultos e até mesmo em celas da polícia por
falta de vagas em instituições terapêuticas adequadas. O número
de crianças vítimas de autoagressão internadas em hospitais
aumentou 68% em dez anos, enquanto o número de pacientes
jovens que apresentam transtornos alimentares praticamente
duplicou em três anos. Não dispomos de dados estatísticos
realmente confiáveis, e portanto fica muito difícil chegar-se a
uma conclusão clara a respeito das causas desses problemas.
Mas vale a pena notar que, no ano passado, de acordo com a
organização beneficente YoungMinds, o número de crianças
que receberam aconselhamento para tratamento de síndromes
de estresse triplicou.
Contra os interesses comuns da humanidade
Em nome do avanço e da autopromoção somos exortados a sacrificar
o nosso lazer, nossos prazeres e o tempo que dedicamos aos nossos
parceiros, filhos e amigos. Somos condicionados a passar por cima
dos corpos dos nossos rivais e a nos definirmos contra os interesses
comuns da humanidade. E então? Nós descobrimos que a satisfação
que obtemos é igual ou menor daquela que tínhamos ao iniciarmos
esse processo.
In 1653, Izaak Walton descreveu em "The Compleat Angler" o destino
dos “pobres homens-ricos”, que “gastam todo o seu tempo primeiro
para obter riqueza, e depois na ansiedade de conservá-la; homens
condenados a serem ricos e, pela riqueza, a serem sempre ocupados
e descontentes”. Hoje, confunde-se esse destino com salvação.
Leve trabalho para casa, passe em todos os seus exames, gaste os
seus vinte anos longe da luz solar, e você também poderá viver
como vive a elite. Mas as vagas para crianças com problemas
mentais aumentaram em 50%, e ainda não são suficientes para
atender a demanda.
(*) O taylorismo é uma concepção de produção, baseada em um
método científico de organização do trabalho, desenvolvida pelo
engenheiro americano Frederick W. Taylor (1856-1915). Em 1911,
Taylor publicou “Os princípios da administração”, obra na qual
expôs seu método. A partir dessa concepção, o taylorismo,
o trabalho industrial foi fragmentado, pois cada trabalhador
passou a exercer uma atividade específica especializada no
sistema industrial. A organização foi hierarquizada e sistematizada,
e o tempo de produção passou a ser cronometrado. O método
também é chamado de “racionalização do trabalho”.
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