Por Norma Couri em 29/09/2015 na edição 870
A carta de despedida de José Castello no fechamento do caderno Prosa & Verso d’O Globo do dia 12/09 explicava o que o jornal omitiu: “Os suplementos de literatura e pensamento já não existem mais. Um a um foram condenados e derrotados pela cegueira e pela insensatez dos novos tempos”. O Globonão publicou a carta, saiu só no blog do Castello. Assim talvez os leitores em papel não percebessem que o suplemento virou duas páginas encartadas no Segundo Caderno, engessadas pelas 14 páginas do caderno Elaem quatro cores onde aprendemos tudo sobre “Verão Al Mare”. Nos dois últimos sábados (19 e 26/9), repeteco, duas páginas de boa cultura espremidas pelos anúncios ao pé. O Aliás do Estadão (20 e 28/09) aderiu, virou só duas folhas. Mutilado o Caderno 2, resiste. A Ilustrada da Folha, cada vez mais teen ager, também.
Até quando?
O colunista Artur Xexéo, ausente há oito meses, foi resgatado pelo Globo mas na primeira coluna depois da sangria de 60 jornalistas só citou os sobreviventes. Pegou mal. E assim cada vez mais aceitamos as tentações da barbárie e a “descultura”. Quase sem perceber perdemos tantos cadernos culturais e espaço crítico que para a massa já não fazem falta. Nietzsche dizia que se você olha muito tempo para o abismo, o abismo olha para você. Os editores ou os ditadores do orçamento olham para o abismo cultural.
O panorama do pensamento é lúgubre neste momento em que as maravilhosas produções do SESC a preços populares vão ter um corte de 30% (adeus peças de Bob Wilson e produções francesas com Isabelle Huppert a R$ 10,00). Uma “catástrofe” para o diretor do SESC de São Paulo, Danilo Miranda. Tudo fica pior diante do meio milhão de zeros na redação do ENEM deste ano. Ou quando os resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização revelam que seis entre dez alunos de oito anos no Brasil não resolvem problemas simples de matemática, não sabem ver as horas em relógios analógicos, e um em cada cinco não entende o que lê. A prova incluiu no ano passado 2, 3 milhões de alunos das 49 mil escolas públicas. A região do sul e do sudeste, que era um pouco melhor, vai piorar com essa volúpia de cortes em tudo o que leva o nome de cultura. E mais ainda com a crise que leva os alunos de escola particular a frequentar as públicas, antes consideradas ensino de elite.
Cortar os pulsos
Só a Cinemateca de São Paulo, fundada pelo filho de Oswald de Andrade, Rudá, perdeu 50% dos funcionários e o Ministério da Cultura congelou os repasses feitos à Sociedade Amigos da Cinemateca, que geria a casa. A 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que iniciou muitos cinéfilos em quatro décadas, perigou não acontecer este ano e abre dia 22 de outubro com 40% a menos de patrocínios. O Festival do Rio dia 1 de outubro vem com déficit de 100 filmes. A excelente temporada de Óperas do Teatro Municipal de São Paulo terá cortes, pelo menos Cosi fan Tutte, de Mozart, já não será exibida este ano e 2016 só apresentará Don Carlo de Verdi, La Bohème de Puccini e Lady Macbeth de Shostakovich – outras três foram para o espaço.
Bianca Byington comenta que vê teatro ruim e dá vontade de cortar os pulsos. Paulo José afirmou em O Globo, com pessimismo, que “o cinema brasileiro é o pior cinema brasileiro do mundo”. O diretor da TV Globo, Luis Fernando Carvalho, numa entrevista ao Estadão há dois anos, já via na televisão brasileira sinais de esgotamento. Eureka, a Bienal do Livro do Rio vendeu 40% a mais…por conta das blogueiras evangélicas ou as muito jovens como Kéfera Buchmann( Muito mais que cinco Minutos, 13 milhões de seguidores na Internet, gritos e choros das teen agers na platéia do Riocentro.
Nada contra a juventude ou vender muito. Mas prefiro a declaração de Umberto Eco ao El País, “a Internet pode ter tomado o lugar do mau jornalismo…Basta pensar no sucessos que faz qualquer página da web que fale de complôs ou invente histórias absurdas: tem um acompanhamento incrível, de internautas e de pessoas importantes que as levam a sério”
Para os adeptos virais da Internet pelo smartphone Ruy Castro advertiu na sua coluna da Folha, tocando no ponto que mais preocuparia as aficionadas: de tanto curvar a postura para digitar freneticamente as mulheres [além de encolher o cérebro], estão desenvolvendo queixo duplo…
O pensamento claro e lógico foi pro brejo, produzimos geração espontânea de mentes consumistas. Estamos atolados de páginas de Economia nos livros e jornais, de ensinamentos de empreendedorismo, de podridão na política, tudo adornado por Comida, Paladar, cadernosGourmet, e roupas estilosas do Ela. O caderno d’ O Globo chega a ser autofágico. Quando fala de TV então, só dá Globo. E todo mundo mergulhado numa crise monumental que nasceu na existencial. Um gênio apelou: em vez de iniciar empresários deprimidos com linguagem economês resolveu apelar para técnicas de teatro, e deu certo. “Elas agregam valor ao profissional”, diz o criador da escola de cinema, teatro e TV para executivos, Emilio Fontana, “Solucionam problemas até de tensão diante de situações difíceis” (Valor, 27/07/15).
No caderno Eu do jornal Valor, bebido diariamente pelo empresariado, os sócios fundadores da Gávea Investimento, como Armínio Fraga, mandaram sugestões para resistir à crise. Técnicas de sobrevivência na selva aprendidas nos bancos do INSPE ou da FVG? Nada. Assistir filmes comoVidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), ensina o investidor a ser resiliente. O Capital(Costa-Gravas, 2002), leva a refletir sobre questões éticas. A Felicidade Não se Compra (Frank Capra, 1946) é um bom caminho para cada um descobrir que existe fragilidade financeira.
Comunicação por grunhidos
A literatura salva. A ficção pode ser o melhor caminho para se entender a realidade. “O que o escritor faz com sua literatura?”, explicou o moçambicano Mia Couto esta sexta feira (25/9) numa das mesas da Paulicéia Literária. “Num cenário de discussão global de narrativa do medo, que nunca foi tão forte, tento oferecer uma viagem contra o medo”. O que ele busca? “O encantamento poético… fui salvo ainda menino pela poesia de Fernando Pessoa”. A seu lado, o escritor angolano José Eduardo Agualusa embarcou, “O Livro do Desassossego” não sai da minha mesa, não da mesa de cabeceira, da mesa de trabalho, mesmo, em cada pausa leio uma poesia para poder prosseguir”
A cultura é a Geni do Brasil. No sul maravilha, dá nervoso comparar a Revista do Domingo doGlobo ou a Serafina da Folha com o Suplemento Literário de Minas Gerais, que no número de maio exibiu em 45 páginas artigos de Ivo Barroso sobre a tradução como ofício, de Marcelo Backes “Onde Buscar os Livros Lá Fora e Na Alma Aqui Dentro?”, um poema de Leonardo Fróes, Augusto de Campos sobre Maiakovski, tudo em papel grosso e capas em cores, bancado pela Secretaria de Cultura ocupada por Angelo Oswaldo . Aqui, temos a Piauí, que pode não ser literária mas é leitura mais adulta que restou.
Saramago dizia que depois do twitter todo mundo iria se comunicar com grunhidos. Convidamos os incultos a calar ou ler o livro de Pierre Bayar “Como Falar de Livros Que Você Nunca Leu” ( “How To Talk About Books You Haven’t Read”).
Para a posteridade vai restar, feito navalha no espírito, a carta de José Castello (“Hora da Despedida”) que decretou: “Nosso mundo se define pelo achatamento e pela degola. No lugar do diálogo, predominam o ódio e o desejo de destruição. No lugar da tolerância, a intolerância e a rispidez, quando não a agressão gratuita. É o mundo do Um em que todos dizem as mesmas coisas, usando quase sempre as mesmas palavras. Um mundo em que a verdade, que todos ostentam, de fato agoniza. Nesse universo, a literatura se impõe como um reduto de resistência. A literatura é o lugar do diálogo, do múltiplo, da diferença. Não é porque gosto de Clarice que devo odiar Rosa. Não é porque amo Pessoa que devo desprezar Drummond. Ao contrário: na literatura (na arte) há lugar para todos.
Uma pena que o Prosa [caderno Prosa & Verso d’ O Globo] se acabe justamente em um momento em que nos sentimos espremidos por vozes que repetem, sempre, os mesmos ataques e as mesmas agressões. Nesse mundo de consensos nefastos e de clichês que encobertam a arrogância, nesse mundo de doloroso silêncio que se apresenta como gritaria, a literatura se torna um lugar cada vez mais precioso. Nela ainda é possível divergir. Nela ainda é possível trocar ideias com lealdade e dialogar com franqueza. Sabendo que o diálogo, em vez de sinal de fraqueza, é prova de força.” Como escreveu Castello, lá se vai o Prosa com tudo o que ele significou de luta e de aposta na criação.
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Norma Curi é jornalista
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