publicado em 30 de outubro de 2015 às 21:00
Mídia e justiça
A mídia alternativa e a liberdade de expressão
A grande mídia tem sido beneficiada por um afrouxamento de seus limites. Já a mídia alternativa é reprimida, inclusive com o apoio da grande mídia
Discutir as relações entre mídia e liberdade de expressão se faz cada vez mais necessário no Brasil, na medida que a desigualdade de direitos entre veículos tradicionais e plataformas menores se acentua. No caso da dita grande imprensa, esse direito é bastante dilatado, ao ponto de ser quase impossível alguém, que se julgue ofendido por algo que ela tenha veiculado, sair vitorioso em um pleito judicial.
É reiterada na nossa jurisprudência a dificuldade de se obter uma condenação de um grande órgão de imprensa. Em geral, as ações de defesa da honra acabam não progredindo ou sendo julgadas improcedentes e é nítida a percepção de que os tribunais têm protegido a liberdade de expressão da mídia comercial, desidratando eventuais limitações desse direito.
De fato há uma tendência mundial de desidratação dos limites da lei de expressão e a favor da total liberdade de imprensa, o que é muito positivo. No entanto, no Brasil, ao contrário do que ocorre em outros lugares do mundo, isso é feito em favor de uma minoria, e não em prol da cidadania, o que gera distorções com consequências perversas para a democracia.
Enquanto a grande mídia tem sido beneficiada por um afrouxamento cada vez maior de seus limites, sites, blogs e aqueles que escrevem para a chamada mídia alternativa têm sido reprimidos, inclusive com o apoio da grande mídia.
É crescente o número de ações contra eles, o que, inclusive os tem inviabilizado financeiramente.
Um caso emblemático dessa situação é o do blog Falha de S.Paulo. Em 2010, o jornal Folha de S.Paulo, por meio de uma liminar, conseguiu que a página que satirizava suas publicações fosse retirada do ar, sob pena de pagar multa diária de R$ 10 mil, caso o mantivesse.
A alegação foi de “uso indevido da marca”, o que não se justifica, uma vez que a intenção dos criadores do blog não era se apropriar da marca, mas apenas exercer sua liberdade de expressão por meio de sátiras, como, aliás, se vê em abundância em veículos da grande mídia.
Mais recentemente, portais como o Conversa Afiada, do jornalista Paulo Henrique Amorim,Revista Fórum, editado pelo Renato Rovai, Blog da Cidadania, de Eduardo Guimarães, O Cafezinho, de Miguel do Rosário, Viomundo, de Luiz Carlos Azenha, Luis Nassif entre outros, foram processados, por pessoas e veículos ligados à grande mídia.
Essa aplicação desigual do direito à liberdade de expressão é muito grave, ainda mais quando prejudica justamente agentes de formação de opinião que oferecem um contraponto no debate público, uma gama mais plural de informação e que representam um ponto de vista político que está presente na sociedade, mas que não tem espaço na mídia comercial.
Os blogs e blogueiros “sujos” têm o importante papel de representar um mínimo de pluralidade de opinião na democracia brasileira e estão sendo claramente reprimidos.
Isso é reflexo de um problema maior, que é a não universalização dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. O direito à vida e à integridade física, por exemplo, como tenho reafirmado em vários outros textos, são persistentemente suspensos para as parcelas mais pobres da população, que habitam as periferias dominadas pela violência generalizada.
Vejamos outro exemplo. É curioso lembrar que até bem pouco tempo eram transmitidos ao vivo pela TV aberta bailes de carnaval frequentados pela elite carioca, cujo carro chefe da festa era a erotização excessiva de seus foliões. Homens e principalmente mulheres seminuas, em suas diminutas fantasias, eram glamourizados e davam entrevistas aos repórteres ou apresentadores que “cobriam” esses eventos.
Hoje os bailes funks das periferias são reprimidos por manifestações bastante semelhantes e, muitas vezes, viram caso de polícia. Isso demonstra que as expressões culturais de natureza erótica protagonizadas pela elite são amparadas pelo direito como livre expressão artística e cultural, enquanto aquelas manifestadas pela pobreza são coibidas.
Seja no aspecto social ou político, não há universalização do direito à livre expressão no Brasil. Ele é apropriado ou pela elite das comunicações ou pela elite econômica, que exercem censura e coação sobre a liberdade de expressão alheia.
O cerceamento e a persecução às mídias alternativas, onde expressões mais à esquerda encontram circulação, são ainda uma repressão de natureza política e um dos sinais mais perversos da relação promíscua que há entre mídia e jurisdição no Brasil.
É onde essa relação acaba servindo para reprimir o próprio direito de imprensa e o direito à expressão, em favor de que seja exercido por uma minoria detentora dos grandes meios.
Nossa democracia tem muito a se desenvolver, o que só será possível com a ampliação e a universalização de diretos, sobretudo o de livre pensamento e expressão. Suprimir os direitos dos mais frágeis é minimizar a aplicação do Estado de direito e atrasar a construção de uma cidadania verdadeiramente consistente.
* Pedro Estevam Serrano é advogado, professor de Direito Constitucional da PUC-SP e e pós-doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
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