sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Perseguido pela ditadura, Florestan Fernandes acabou vítima de erro médico, impunidade e corporativismo


publicado em 30 de outubro de 2015 às 14:43
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Myrian Rodrigues Fernandes e Florestan Fernandes em 1944
O adeus em um olhar: a vida e a morte de Florestan Fernandes
28/10/2015 13h38
“Não sei se é técnica do pessoal dos Estados Unidos para me convencer a ficar por aqui ou se é tudo realmente verdade. Inclusive, falaram-me da prisão do Octavio Ianni e, mais tarde, que ele fora solto. […] Com exceção do pessoal de casa, recebi muitas cartas aconselhando-me com ardor [a] evitar essa decisão que, para mim, é inevitável. […] Disseram-me que andam espalhando nas universidades que eu pretendo voltar porque “vou aderir” ao atual governo. É uma perversidade e tanto.”
Trechos da carta enviada pelo meu pai para minha mãe, Myrian Fernandes, em 24 de março de 1971, o pior momento da ditadura militar. Dois anos mais tarde, Florestan decide voltar ao Brasil e correr os riscos de sua decisão.
florestan 1Trecho de carta de Florestan Fernandes para Myrian Rodrigues Fernandes. Acervo Pessoal
Em agosto de 1995, dias antes de passar pelo transplante de fígado no Hospital das Clínicas de São Paulo, ele me disse que tinha bons motivos para acreditar que a contaminação teria sido proposital. Acostumado desde pequeno a lutar pela sobrevivência, Florestan não se abateu, mas lutou firme contra a doença. Fez dieta, parou de beber socialmente e cumpriu à risca o tratamento médico.Para a surpresa da família e dele próprio, foi em um hospital, e não nos porões da ditadura, que a vida dele ficaria comprometida. Em uma transfusão de sangue realizada por causa de uma cirurgia ele foi contaminado pelo vírus da hepatite C. A infecção provocou uma cirrose hepática que durou 21 anos até levá-lo à morte.
Nesse período sua barriga inchou, a pele amarelou e não foram poucas as hemorragias. Em uma delas ele perdeu muito sangue e pediu para ser levado ao Hospital do Servidor Público Estadual. E qual não foi minha surpresa quando, ao chegar ao hospital meia hora depois, o encontrei em uma fila enorme, que começava dentro do pronto-socorro e terminava do lado de fora do prédio. Teimoso, Florestan argumentava que não iria furar a fila mesmo estando em situação de risco. Por sorte, alguns plantonistas perceberam a gravidade e levaram o paciente para ser examinado e medicado.
Emocionei-me logo na entrada da pequena sala. Em um painel com vários informes havia um recorte da coluna de meu pai na Folha, cobrando do governador recursos para o Hospital do Servidor. Poucos dias se passaram e mais uma hemorragia. E, pela primeira vez, ele teve uma confusão mental. Estava claro que ele já não tinha mais condições físicas para enfrentar um possível transplante.
O ADEUS EM UM OLHAR
Cheguei em casa já tarde da noite. Na secretária eletrônica, uma mensagem de minha mãe. Ela dizia que estava levando meu pai para o Instituto do Fígado do Hospital das Clínicas. Depois de vários anos, o médico Silvano Raia informava que havia encontrado um fígado compatível com as necessidades de meu pai.
Nós três sabíamos. Apesar do otimismo do dr. Raia, que previa uma sobrevida com qualidade por muitos anos após o transplante, sabíamos que meu pai, aos 75 anos e muito debilitado, não tinha boas possibilidades de sobreviver a uma cirurgia tão complexa.Corri ao HC a tempo de encontrar meus pais no corredor da internação. Frágil, de bengala na mão e com a voz rouca, Florestan esboçou um sorriso e com um certo alívio disse: “Ainda bem que você veio”.
Depois de duas décadas desde a transfusão de sangue contaminado, os médicos Silvano Raia, que foi secretário de saúde de Paulo Maluf, e seu fiel escudeiro e assistente Sérgio Mies –ambos à frente do Instituto do Fígado– diziam estar prontos para realizar com sucesso um transplante inédito em um homem em plena terceira idade.
O velho sociólogo decidiu confiar na capacidade da equipe que realizaria a cirurgia. Motivos não faltaram. Logo na primeira consulta, depois de um minucioso exame, Raia disse com toda a convicção que meu pai tinha pulmões, rins e coração de um homem de cinquenta anos. Afirmou, em alto e bom som, que meu pai tinha total condição de fazer a cirurgia, que o transplante seria um sucesso e que ele teria uma sobrevida de pelo menos 20 anos.
Chegamos ao setor de internação: camas distribuídas em um grande corredor e separadas uma das outras apenas por uma cortina branca. Minha mãe despediu-se do marido e voltou para casa a fim de descansar e se preparar para dias difíceis. Eu fiquei ao lado da cama, de mãos dadas com meu pai. Às vezes fazia um carinho em sua cabeça. Foi uma longa noite, na qual conversamos sobre a vida. Ele lamentou o fato de, até aquele momento, eu não ter tido um filho. Quando a enfermeira entrou para prepará-lo para a cirurgia, saí do pequeno quarto e liguei para minha mãe, avisando que em alguns minutos começaria a operação. Perguntei se ela gostaria de trocar algumas palavras antes do transplante. Emocionada, ela me respondeu: “Não, já nos despedimos pelo olhar”.
O dia estava amanhecendo quando meu pai foi levado para a sala de cirurgia. Fui ao lado dele até uma grande porta. Era a linha final de duas vidas repletas de emoção, amor, admiração e respeito. Dei um beijo em seu rosto e fingi otimismo. As duas portas se fecharam e eu desabei a chorar.
A cirurgia não foi nada fácil e durou várias horas. Meu pai foi levado para a UTI. Os médicos disseram que o transplante tinha sido um sucesso e que, dependendo da recuperação, em breve ele iria para casa. Silvano Raia foi mais longe: disse que meu pai tinha acordado e que chegou a ler os jornais. Entrei no quarto e a realidade era outra. Vi-o desacordado, entubado e recebendo medicamentos intravenosos. Alguma coisa estava errada. O otimismo do médico não correspondia à realidade. Como meu pai poderia ter lido jornal daquele jeito?
Na madrugada daquela noite o telefone tocou, fazendo meu coração disparar. Atendi. “Florestan, aqui é Silvano Raia, infelizmente seu pai não resistiu e acaba de falecer. Uma pena. Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance.” Liguei para minhas irmãs, para meus amigos e para minha mãe.
Amanheceu o dia e os colegas jornalistas já estavam a postos falando ao vivo da frente do hospital. No velório, realizado no prédio da administração da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, havia estudantes, professores, funcionários, parentes e muitas autoridades. Minha mãe estava sóbria e firme, consolando filhos e netos. Fiquei admirado com a atitude dela, que não desmoronou por um minuto sequer.
Não demorou muito e o dr. Silvano Raia me ligou pedindo que eu fosse imediatamente à diretoria do hospital, pois eles tinham algo muito sério para falar comigo. O que poderia ser tão sério para me tirar do velório de meu pai? Silvano recusou-se a dizer por telefone. Desligou. Alguns minutos depois, voltou à carga: “Florestan, você vai ter que vir para cá imediatamente. Ocorreu um erro na UTI que provocou a morte do seu pai. Vamos precisar fazer autópsia para saber a causa da morte.” Com a minha negativa, Raia ameaçou: “Se você não vier aqui a polícia vai até o velório pegar o corpo do seu pai”. Respondi: “Então faça isso, mande a polícia vir pegar o corpo na frente da primeira-dama do país, Ruth Cardoso, de ministros, do governador Mário Covas, de artistas, intelectuais e políticos como Lula e Plínio Sampaio. Tudo transmitido ao vivo pelas emissoras de televisão”.
O velório transcorreu normalmente. No crematório da Vila Alpina é que viria a surpresa. Vários carros da polícia aguardavam do lado de fora. Fui encaminhado junto com minha mãe para uma sala onde um chefe de polícia tinha um mandado para levar o corpo para o IML. Minha mãe desabou. Aos prantos, pediu que eu não permitisse aquela violência. Pedro Dallari, advogado e amigo da família, deu-nos uma boa solução: realizar a solenidade até o fim e, depois que todos já tivessem ido embora, o corpo seria levado para autópsia. E assim foi.
IMPUNIDADE E CORPORATIVISMO
O IML fez a autópsia e encaminhou o corpo para o crematório. Cheguei à Vila Alpina às dez da manhã. Na porta, vários colegas repórteres aguardavam a minha chegada. Todos olhavam tristes para mim e, respeitando minha dor, não se aproximaram, apenas fizeram sinais com a mão e a cabeça. No estacionamento, um rosto amigo, o querido Tom Figueiredo, um publicitário que conheci ainda na época em que meu pai estava fora do país. Ele me abraçou e disse: “Faltei ao trabalho porque sei que hoje você vai precisar de um amigo”. Entramos no prédio e Tom fez o reconhecimento do corpo por mim.
Silvano Raia convocou uma entrevista coletiva e pediu que eu ficasse ao seu lado durante sua fala. Respondi que de maneira nenhuma. Depois de tudo o que aconteceu, eu também queria explicações. Raia cancelou a entrevista e desapareceu.
Com o prontuário nas mãos constatei que o quadro clínico de meu pai estava longe de ser bom, como os médicos afirmavam. Descobri que, durante a cirurgia, o coração parou algumas vezes e foi reanimado. Ao ser levado para a UTI, os rins já não funcionavam, os pulmões também estavam com problemas e o fígado transplantado sofreu um processo de rejeição. Para piorar, na noite em que meu pai faleceu, a enfermeira de plantão ausentou-se do quarto por muito tempo e a máquina de hemodiálise, sem sangue, passou a bombear ar nas veias do paciente. Uma quantidade tão grande de ar que, segundo o legista, isso antecipou em algumas horas o que ocorreria de qualquer maneira.
Em seu livro sobre Florestan Fernandes, o jornalista Haroldo Ceravolo cita a declaração de Irineu Velasco, diretor do HC em 1995, feita à “Veja” de 6 de setembro de 1995: “A morte do sociólogo era certa. O seu caso poderia ser comparado ao de um paciente terminal com câncer que é atropelado por um caminhão ao atravessar a rua”. O fígado transplantado estava infectado com a bactéria causadora da sífilis, o que obrigou os médicos a utilizar uma dose elevada de antibióticos depois da operação. Com tudo isso, meu pai entrou rapidamente em um processo de falência múltipla de órgãos.
Raia sabia de tudo isso quando me ligou para comunicar a morte, mas mesmo assim dispensou a autópsia. Ocorre que o médico de plantão colocou em seu relatório o erro com a hemodiálise. As informações caíram na rede do hospital, e os dados estavam à disposição no sistema interno de registros. Pela manhã, quando Raia chegou ao HC, foi chamado às pressas na sala da direção, que cobrou dele a falta da autópsia.
O primeiro julgamento do médico foi no próprio HC. Houve a abertura de um processo interno pelo hospital e eu fui ouvido por uma comissão. Nessa audiência, os médicos deixaram claro que não levariam adiante uma punição para o dr. Raia. Crucificariam a enfermeira e ponto final. Fiquei tão indignado que, em certo momento da reunião, me levantei e disse: “Senhores, não vamos mais perder o nosso tempo, isso aqui é um grande teatro. Está claro que o corporativismo irá levar à absolvição dos médicos responsáveis pela morte do meu pai”.
Dito e feito: dias depois, Raia e Mies foram absolvidos. A enfermeira condenada, já afastada, acabou se escondendo (ou foi escondida). Conversei com o presidente Fernando Henrique Cardoso, que me contou que, durante todo o tratamento do meu pai, Raia telefonou diversas vezes para falar do estado do paciente amigo. FHC disse que, nessas oportunidades, o médico tentou convencê-lo a ajudar a colocar em pé o Hospital do Fígado que ele, Silvano Raia, queria construir.
Certo dia recebi em minha casa uma intimação para comparecer ao julgamento no Conselho Regional de Medicina (CRM). Raia me procurou e marcou uma conversa na unidade do Hospital Albert Einstein da Avenida Brasil, em São Paulo. O encontro foi rápido. Ele pediu que eu não o atacasse no CRM. Alegou ser inocente e não ser responsável pelos erros cometidos no tratamento e na morte de meu pai. Eu disse para ele ficar tranquilo. Se ele realmente era inocente, não deveria temer.
No dia da primeira audiência, falando para uma plateia de médicos, tentei quebrar o corporativismo. Fiz um discurso mostrando que naquele momento estavam sendo julgados dois professores titulares da USP: o médico e a vítima, meu pai. Fiz um discurso tão emotivo e denso que, ao final da sessão, Raia foi punido com uma advertência. Ficou furioso e saiu dizendo o diabo para mim. Meses depois recebi outra intimação do CRM, dessa vez para julgar um recurso feito por Raia. Dois dias depois recebi outro comunicado informando que o julgamento havia sido cancelado sem previsão de data.
Tempos depois descobri que o julgamento não havia sido cancelado coisa alguma. Com a minha ausência, Raia conseguiu ser absolvido. Recentemente Sérgio Mies me telefonou disposto a contar tudo o que sabia, mas não tive estômago para me encontrar com ele. Imagino que ele teria detalhes importantes para me dar. Mas minha mãe, cansada de tanto sofrimento, pediu para encerrar o caso. Não traria meu pai de volta, a justiça não seria feita e a saudade não seria reduzida.
Nota: Este texto estará na edição de número 25 da revista “Margem Esquerda”, editada pela Boitempo, que circula a partir do dia 16/11.

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