“Somos o único grupo populacional no Brasil que não sabe de onde vem”, queixa-se o arquiteto baiano Zulu Araújo, de 63 anos, em referência à população negra descendente dos 4,8 milhões de africanos escravizados recebidos pelo país entre os séculos 16 e 19.
Por João Fellet Do Uol
Araújo foi um dos 150 brasileiros convidados pela produtora Cine Group para fazer um exame de DNA e identificar suas origens africanas.
Ele descobriu ser descendente do povo tikar, de Camarões, e, como parte do projeto Brasil: DNA África, visitou o local para conhecer a terra de seus antepassados.
“A viagem me completou enquanto cidadão”, diz Araújo. Leia, abaixo, seu depoimento à BBC Brasil:
“Sempre tive a consciência de que um dos maiores crimes contra a população negra não foi nem a tortura, nem a violência: foi retirar a possibilidade de que conhecêssemos nossas origens. Somos o único grupo populacional no Brasil que não sabe de onde vem.
Meu sobrenome, Mendes de Araújo, é português. Carrego o nome da família que escravizou meus ancestrais, pois o ‘de’ indica posse. Também carrego o nome de um povo africano, Zulu.
Ganhei o apelido porque meus amigos me acharam parecido com um rei zulu retratado num documentário. Virou meu nome.
Nasci no Solar do Unhão, uma colônia de pescadores no centro de Salvador, local de desembarque e leilão de escravos até o final do século 19. Comecei a trabalhar clandestinamente aos 9 anos numa gráfica da Igreja Católica. Trabalhava de forma profana para produzir livros sagrados.
Bom aluno, consegui passar no vestibular para arquitetura. Éramos dois negros numa turma de 600 estudantes – isso numa cidade onde 85% da população tem origem africana. Salvador é uma das cidades mais racistas que eu conheço no mundo.
Ao participar do projeto Brasil: DNA África e descobrir que era do grupo étnico tikar, fiquei surpreso. Na Bahia, todos nós especulamos que temos ou origem angolana ou iorubá. Eu imaginava que era iorubano. Mas os exames de DNA mostram que vieram ao Brasil muito mais etnias do que sabemos.
Quando cheguei ao centro do reino tikar, a eletricidade tinha caído, e o pessoal usava candeeiros e faróis dos carros para a iluminação. Mais de 2 mil pessoas me aguardavam. O que senti naquele momento não dá para descrever, de tão chocante e singular.
As pessoas gritavam. Eu não entendia uma palavra do que diziam, mas entendia tudo. Era como se eu estivesse no meu bairro, na Bahia, e ao mesmo tempo tivesse voltado 500 anos no tempo.
O povão me encarava como uma novidade: eu era o primeiro brasileiro de origem tikar a pisar ali. Mas também fiquei chocado com a pobreza. As pessoas me faziam inúmeros pedidos nas ruas, de camisetas de futebol a ajuda para gravar um disco. Não por acaso, ali perto o grupo fundamentalista Boko Haram (originário da vizinha Nigéria) tem uma de suas bases e conta com grande apoio popular.
De manhã, fui me encontrar com o rei, um homem alto e forte de 56 anos, casado com 20 mulheres e pai de mais de 40 filhos. Ele se vestia como um muçulmano do deserto, com uma túnica com estamparias e tecidos belíssimos.
Depois do café da manhã, tive uma audiência com ele numa das salas do palácio. Ele estava emocionado e curioso, pois sabia que muitos do povo Tikar haviam ido para as Américas, mas não para o Brasil.
Fiz uma pergunta que me angustiava: perguntei por que eles tinham permitido ou participado da venda dos meus ancestrais para o Brasil. O tradutor conferiu duas vezes se eu queria mesmo fazer aquela pergunta e disse que o assunto era muito sensível. Eu insisti.
Ficou um silêncio total na sala. Então o rei cochichou no ouvido de um conselheiro, que me disse que ele pedia desculpas, mas que o assunto era muito delicado e só poderia me responder no dia seguinte. O tema da escravidão é um tabu no continente africano, porque é evidente que houve um conluio da elite africana com a europeia para que o processo durasse tanto tempo e alcançasse tanta gente.
No dia seguinte, o rei finalmente me respondeu. Ele pediu desculpas e disse que foi melhor terem nos vendido, caso contrário todos teríamos sido mortos. E disse que, por termos sobrevivido, nós, da diáspora, agora poderíamos ajudá-los. Disse ainda que me adotaria como seu primeiro filho, o que me daria o direito a regalias e o acesso a bens materiais.
Foi uma resposta política, mas acho que foi sincera. Sei que eles não imaginavam que a escravidão ganharia a dimensão que ganhou, nem que a Europa a transformaria no maior negócio de todos os tempos. Houve um momento em que os africanos perderam o controle.
“Se qualquer pessoa me perguntar de onde sou, agora já sei responder. Só quem é negro pode entender a dimensão que isso possui.”
Um intelectual senegalês me disse que, enquanto não superarmos a escravidão, não teremos paz – nem os escravizados, nem os escravizadores. É a pura verdade. Não dá para tratar uma questão de 500 anos com um sentimento de ódio ou vingança.
A viagem me completou enquanto cidadão. Se qualquer pessoa me perguntar de onde sou, agora já sei responder. Só quem é negro pode entender a dimensão que isso possui.
Acho que os exames de DNA deveriam ser reconhecidos pelo governo, pelas instituições acadêmicas brasileiras como um caminho para que possamos refazer e recontar a história dos 52% dos brasileiros que têm raízes africanas. Só conhecendo nossas origens poderemos entender quem somos de verdade.”
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