No ponto em que estamos, a perspectiva austeritária implodiu: não só todas as suas previsões falharam por completo quando confrontadas com a realidade, como a própria investigação académica, invocada para suportar essa doutrina, acabaria por se revelar repleta de erros e omissões e feita com estatísticas duvidosas
Paul Krugman
Paul Krugman
Mas esta não é apenas uma questão de emoção versus lógica. Não é possível compreender a influência da doutrina da austeridade sem falar de classes e de desigualdades.
Os debates económicos raramente terminam com uma derrota técnica. Mas o grande debate político dos últimos anos, entre keynesianos (que defendem a manutenção, e até aumento, dos níveis de despesa pública em contextos de recessão), e os austeritários (que pugnam por cortes imediatos na despesa), está - pelo menos no plano das ideias - a chegar ao fim. No ponto em que estamos, a perspectiva austeritária implodiu: não só todas as suas previsões falharam por completo quando confrontadas com a realidade, como a própria investigação académica, invocada para suportar essa doutrina, acabaria por se revelar repleta de erros e omissões e feita com estatísticas duvidosas.
A doutrina da austeridade, contudo, não só tem mantido como até reforçado o seu poder e influência em relação às elites. Porquê?
Mas esta não é apenas uma questão de emoção versus lógica. Não é possível compreender a influência da doutrina da austeridade sem falar de classes e de desigualdades.
O que é que as pessoas querem, afinal, da política económica? A resposta, ao que parece, depende muito de a quem fazemos a pergunta - como mostra um trabalho recente dos cientistas políticos Benjamin Page, Larry Bartels and Jason Seawright. O artigo compara as preferências políticas do cidadão comum americano com as dos americanos com maiores níveis de rendimentos. E os resultados são assombrosos.
Assim, segundo o estudo, o cidadão comum americano manifesta alguma preocupação com os défices orçamentais, o que não surpreende dada a enxurrada de histórias assustadoras sobre o défice que circulam na comunicação social. Mas a maior parte dos mais ricos encara o défice como o maior problema que enfrentamos. E como é que o défice deve ser combatido? Os mais ricos respondem com cortes da despesa federal em Saúde e na Segurança Social - ou seja, nos «direitos» - enquanto os americanos em geral querem, pelo contrário, ver um aumento da despesa federal nesses domínios.
As coisas são claras: a agenda da austeridade parece ser a simples expressão das preferências das classes altas, que apenas se disfarçam num aparente rigor académico. Aquilo que os 1% mais ricos querem converte-se no que a ciência económica diz ser preciso fazer.
Mas será que uma depressão prolongada serve realmente os interesses dos mais ricos? É de duvidar, já que uma economia em expansão é geralmente boa para quase todos. E a verdade é que estes anos de austeridade têm sido muito difíceis para os trabalhadores, mas não têm sido assim tão maus para os mais ricos, que beneficiaram do aumento dos lucros e do valor das ações em Bolsa, à medida que o desemprego de longa-duração foi aumentando. Os 1% podem não querer realmente uma economia fraca, mas eles estão a conseguir resultados suficientemente bons para satisfazer os seus preconceitos.
É isto que nos faz pensar na diferença que pode verdadeiramente fazer o colapso intelectual da perspetiva austeritária. Na medida em que temos uma política dos 1%, feita pelos 1% para os 1%, não será de esperar que apenas tenhamos novas justificações para as mesmas velhas políticas?
Eu espero que não, pois quero acreditar que as ideias e as evidências da realidade contam, que têm pelo menos alguma importância. Se assim não for, que sentido posso dar à minha vida? Mas eu acho, contudo, que nós vamos ver até que ponto pode chegar o cinismo.
Tradução originalmente publicada no blogue A Estante dos Passos Perdidos
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