Dom Demétrio Valentini
Bispo de Jales (SP) e Presidente da Cáritas Brasileira até novembro de 2011
Adital
A Igreja do Brasil vive um momento muito especial neste final de semana. Na pequena cidade de Baependi, Sul de Minas, se realiza a beatificação de Francisca de Paula de Jesus, popularmente conhecida como Nhá Chica, há muito tempo venerada pelo povo como santa.
Passados mais de cem anos de sua morte, em 1895, o povo nunca esqueceu o exemplo deixado por Nhá Chica. Com sua beatificação, ela pode agora ser venerada publicamente como exemplo de vida cristã, com a certeza de que em breve será canonizada, para ser invocada como santa.
Por seu simbolismo, o fato mereceria maior divulgação. Ele atesta o prodígio da expansão da fé cristã por todo o país, propagada não tanto por uma evangelização explícita da hierarquia eclesial, mas muito mais pela vivência e pelo testemunho de pessoas humildes, leigos e leigas, que mesmo em meio a condições adversas, encontraram na fé e na prática da caridade um caminho de crescimento pessoal e de sua vocação à santidade.
Entre os diversos dados que compõem sua singular biografia, é bom ter presente que no tempo em que Nhá Chica viveu, no Brasil só havia onze dioceses, no enorme mapa, tão rarefeito da presença da hierarquia da Igreja. Se a fé cristã dependesse naquele tempo do punhado de bispos e dos poucos padres existentes, ela não teria se arraigado desta maneira, fincando raízes tão profundas na cultura brasileira.
Neta de escrava, filha de ex-escrava e de pai desconhecido, Francisca de Paula de Jesusnasceu em 1810 em Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, distrito de São João del Rey, vindo o falecer em 1895 em Baependi, onde viveu por mais de oitenta anos.
De acordo com informações atestadas pelo escritor e historiador José de Souza Martins, a avó de Nhá Chica, uma africana trazida de Angola num navio negreiro em 1725, ficou conhecida como Rosa de Benguela. Violentada aos 14 anos pelo seu "amo e senhor", foi vendida e levada do Rio para Minas, onde veio ao morar perto de Mariana. Cativa na Fazenda Cata Preta, viveu 15 anos na prostituição. Aos 30 anos, doente, resolveu mudar de vida. Vendeu os poucos bens que tinha, distribuiu o dinheiro aos pobres e começou a participar de ofícios e liturgias nas igrejas da região. Esta a avó.
Sua filha Izabel Maria, a mãe de Nhá Chica, foi alforriada, deixando então de ser escrava. Mulher piedosa, ela pediu a Francisca que não se casasse, para assim dedicar sua vida à caridade.
Obediente à recomendação da mãe, viveu celibatária, cultivando verduras, frutas e flores, e rezando muito. Com esmolas e ajuda do povo, mandou construir uma capela que ficou conhecida como a igreja de Nhá Chica.
A menina nunca foi à escola. Viveu e morreu analfabeta. Lamentava não poder ler a Bíblia, da qual decorava trechos e recitava de cor algumas orações. Rezava diante de uma pequena imagem da Imaculada Conceição, retirando-se para junto dela no quarto, enquanto pessoas que recorriam às suas preces aguardavam na sala.
Segundo relato dos seus coetâneos, Nhá Chica era uma "moreninha clara, olhos verde-gaios, jovial, dengosa, um encanto de criança, alegre e comunicativa”.
Ela captou bem a proposta de Cristo, de perder sua vida a serviço dos pobres. Recusou as persistentes insinuações de gozar da riqueza familiar do seu irmão mais velho que tinha enriquecido. Ficou firme no seu propósito até o fim de sua vida.
Na pessoa de Nhá Chica, podemos reconhecer a rica herança da fé cristã com que Deus abençoou o povo brasileiro. Com ela milhões de pessoas podem se identificar, percebendo a semelhança de situações nos caminhos de suas vidas.
Agora a presença da hierarquia da Igreja no Brasil se multiplicou espetacularmente. No tempo de Nhá Chica eram somente onze dioceses. Agora são 276. Que este crescimento estrutural consolide os laços da comunhão eclesial, e dê mais consistência aos conteúdos da fé. Para que o povo brasileiro, ao mesmo tempo, mantenha a espontaneidade de suas práticas religiosas, e se torne mais consciente de seus compromissos cristãos e eclesiais.
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