quinta-feira, 9 de maio de 2013

Il ladro fa l’occasione


Il ladro fa l’occasione

Em resposta ao artigo “Ou Congresso exerce seu poder constitucional ou haverá ditadura ‘legalizada’ por Judiciário”, de J. Carlos de Assis, este autor avalia que prerrogativas do Judiciário fundamentais ao republicanismo estão sob ameaça de amputação com PEC 33.
“No caso do Congresso, tenta-se confundir a instituição, que é o próprio alicerce da democracia, com a função homologatória humilhante que o regime autoritário lhe impôs mediante a amputação de prerrogativas, expedientes eleitorais casuísticos destinados a desenhar previamente uma ‘maioria’ parlamentar ou cassações de mandatos […]" [Posfácio de José Carlos de Assis a “A dupla face da corrupção”, de sua autoria. Rio de Janeiro, maio de 1984. Os grifos são meus] 


Este artigo contém uma série de observações ao texto “Ou Congresso exerce seu poder constitucional ou haverá ditadura ‘legalizada’ por Judiciário” [Carta Maior, 06/05/2013], de J. Carlos de Assis, por sua vez uma reação do economista a comentários feitos - por mim, inclusive - ao seu artigo “Violam-se direitos do povo se Congresso não regular Judiciário”, também recentemente publicado nesta Carta Maior [27/04/2013]. Como, evidentemente, o espaço para comentários é insuficiente para o aprofundamento do debate, pontos daquele primeiro texto eventualmente serão retomados. 

Prerrogativas do Judiciário fundamentais ao republicanismo estão sob ameaça de amputação com a proposta [Proposta de Emenda Constitucional 33] que condiciona "o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal à aprovação pelo Poder Legislativo" e submete "ao Congresso Nacional a decisão [do STF, grifo] sobre a inconstitucionalidade de Emendas à Constituição”. Embora o Congresso possa discutir propostas de emendas relativas ao Judiciário, isso não é carta branca para submeter determinadas prerrogativas do Supremo Tribunal Federal [STF] ao Legislativo. Há limites claros na própria Constituição Federal [CF]. 

Não pode ser objeto de deliberação pelo Congresso a proposta de emenda tendente a abolir a separação dos Poderes. Logo, em boa lógica, é falso que toda emenda constitucional disposta a alterar objetivos e limitar prerrogativas do Supremo é absolutamente legítima e democrática. É importante que isso fique claro porque, ao contrário do que afirma J. Carlos de Assis em seu último texto, ele não escreveu, em seu artigo anterior, “que todo o projeto de emenda constitucional é legítimo, desde que, naturalmente, não fira cláusula pétrea”. Sua recente referência às cláusulas pétreas foi motivada por minha observação ao seu texto anterior, segundo a qual, ratifico, não pode ser objeto de deliberação pelo Congresso proposta de emenda tendente a abolir a separação dos Poderes. Sua tese, literalmente, foi a de que “propor uma emenda constitucional para alterar objetivos e limitar prerrogativas do Supremo é, portanto, absolutamente legítimo e democrático”, donde autorizada a conclusão de sua falsidade pelo fato de que há emendas que não podem ser deliberadas - a saber, as que objetivem abolir a separação dos Poderes. Nem mesmo sua premissa - “O Congresso Nacional tem todas as prerrogativas constitucionais, funcionais e democráticas necessárias para criar leis que estabeleçam objetivos e prerrogativas específicas para o Poder Judiciário, aí incluído o Supremo Tribunal Federal” - faz referência aos limites impostos pelas cláusulas pétreas a projetos de emenda constitucional, não suportando, portanto, o peso de sua conclusão. Trata-se, aqui, tanto de honestidade intelectual quanto de clareza. Se o subentendimento fosse critério exegético, não haveria ininteligibilidade. Noutra falácia, também surpreende o fato de que, do texto da PEC 33, J. Carlos de Assis tenha arbitrária e convenientemente erigido como seu “aspecto essencial” a “exigência de quórum qualificado do STF para derrubar lei aprovada por quórum qualificado do Congresso”, donde, por conseguinte, supostamente preservado “o princípio de independência e harmonia dos poderes”. 

Boa parte da esquerda que abraçou integralmente a proposta do PT paulista está deixando de fazer a discussão que precisa ser feita, que é a que se dá em torno dos controles preventivo e repressivo de constitucionalidade. A consequência dessa leitura enviesada da realidade é a naturalização da inevitabilidade da conclusão de que toda emenda constitucional para alterar objetivos e limitar prerrogativas do Supremo é absolutamente boa - o que, evidentemente, é falso -, água que corre do moinho da velha e boa falácia da demagogia, segundo a qual toda “iniciativa popular” é, necessariamente, uma iniciativa a favor da democracia, uma variante do célebre “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”, de Samuel Johnson. Nesse caso se esquece, convenientemente, que a estratégia oficialista de justificar seus estratagemas denominando como “interferência indevida” toda decisão preventiva do STF é [ i] falaciosa - pois há mecanismos constitucionais que as autorizam - e [ii] um eufemismo para o risco, tão onipresente quanto aquele do Judiciário, do arbítrio Legislativo, que muitas vezes não passa de reflexo condicionado do Executivo. Parafraseando J. Carlos de Assis, do uso de expedientes eleitorais casuísticos destinados a garantir previamente uma ‘maioria’ parlamentar. 

Por algum motivo essa esquerda também esquece que, embora todo poder emane do povo e seu exercício se dê mediante representantes eleitos, em nenhum trecho da CF há qualquer referência a uma suposta hierarquia entre eles pelo fato de membros do Executivo e Legislativo serem eleitos - e atribuições privativas ou exclusivas são simplesmente prerrogativas que obedecem à natureza de cada Poder e ao necessário equilíbrio entre todos, e não um concurso de beleza. Os Poderes são, ao contrário, independentes e harmônicos entre si, e isso se deve, dentre outros fatores, ao fato de que um só e mesmo Poder, aquele que emana do povo, é o que é tripartido. Ademais, a legitimidade do Judiciário é semelhante à emprestada pelo povo aos representantes eleitos, uma vez que seus atos - entre eles, a legislação cumprida pelo Judiciário - são uma extensão da vontade do povo, donde atos do Judiciário também serem atos do povo, pois fundamentados pela legislação escrita pelos representantes eleitos. De modo semelhante, também convenientemente se esquece que o Art. 14 da CF, que clarifica o parágrafo único de seu Art. 1º e seu Art. 2º, estende o conceito de exercício do poder pelo povo para além da representação direta, via plebiscito, referendo e iniciativa popular. Estranhamente, o poder de veto do Presidente da República a projetos parlamentares e sua interferência na pauta da Casa via Medidas Provisórias também parecem não incomodar aos que acusam o STF de interferência indevida e planejam submeter ao Congresso deliberações que pertencem à natureza mesma do ato de julgar, i.e, à natureza do Judiciário. A prerrogativa do Executivo de compôr uma Côrte Suprema de acordo com interesses partidários - do qual a nomeação de Dias Toffoli é o caso clássico, embora não o único -, um escândalo se comparada à de julgar ADIns sem submeter-se ao Congresso, também parece não incomodar ninguém - muito embora certa esquerda tenha ficado visivemente incomodada pelo fato da Suprema Côrte “não ter correspondido às expectativas” no julgamento da Ação Penal 470. 

Desse modo, não fosse a Proposta de Emenda Constitucional [PEC] que tentará submeter Súmulas Vinculantes, Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) e Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) ao referendo do Poder Legislativo uma pueril contradição - interferir nas prerrogativas de um Poder a fim de se mostrar que eles não podem interferir nas alheias - e, ela mesma, inconstitucional - pois contrária ao princípio da separação dos Poderes, o que, por si só, é prova suficiente de que a palavra final sobre constitucionalidade ou inconstitucionalidade deve ser dada, exatamente, pelo Supremo Tribunal Federal [STF] -, estaríamos tentados a pensar que o saco de gatos em que se transformou a noção de "ativismo judicial" não passa de um eufemismo a fim de se submeter o Judiciário ao Congresso - na novilíngua de certa esquerda, o "ilegítimo" ao "legítimo" e "soberano" -, ou, em outras palavras, de se conferir ao Legislativo a arbitrária e esdrúxula competência para decretar a constitucionalidade absoluta de seus próprios atos - o que violaria o princípio da tripartição do Poder tal como ele foi estruturado constitucionalmente segundo nossa forma de governo. Submeter Súmulas e decisões sobre ADINs e ADCs ao Congresso é casuísta, oportunista e contra o próprio espírito da CF, não sendo exagero se afirmar que se trata de prenúncio de autoritarismo. 

Interessados não faltam, por supuesto. 

Há os aproveitadores de ocasião, tais como os mensaleiros José Genoíno e João Paulo Cunha, p. ex., deputados do Partido dos Trabalhadores [PT] paulista. Ambos votaram a favor da matéria, que se deu em caráter simbólico. Interessa-lhes, sobretudo, a discussão que põe em xeque a exclusividade da Câmara para cassar seus integrantes que, eventualmente condenados criminalmente com trânsito em julgado, também perdem seus direitos políticos.

Há o próprio PT, para quem o dito “ativismo judicial” foi bom supostamente enquanto judicializadas foram as posições políticas da esquerda, mantra que entoava a velha direita carcomida nos anos 80. Como se sabe, ao menos desde o primeiro governo Lula que termos como garantismo passaram a ser sinônimo de burocracia, entraves ao crescimento e judicialização da política. 

Foi em função dessa transformação semântica que a acolhida, pelo STF, em caráter liminar, de Mandado de Segurança impetrado pelo PSB pedindo a suspensão da tramitação, no Senado, do Projeto de Lei que limita o acesso dos novos partidos ao Fundo Partidário e ao tempo de propaganda na TV - pedido que, na prática, tenta reverter a estratégia aliada para as próximas eleições presidenciais -, passou a ser vista, nos dizeres do companheiro senador Renan Calheiros [PMDB-AL], como uma “intervenção equivocada”. 

O que o companheiro Renan faz, ao fim e ao cabo, é ecoar os dizeres do deputado Nazareno Fonteles [PT-PI], autor da proposta, para quem não tem sentido uma PEC aprovada no Congresso ser questionada no Supremo, uma vez que "isso não acontece nos Estados Unidos". Segundo Fonteles - que, aparentemente, parece desconhecer as diferenças de origem e estruturais entre os sistemas jurídicos estadunidense e brasileiro e que um dos objetivos de uma ADI é, exatamente, questionar a constitucionalidade de uma norma -, "há muito o STF deixou de ser um legislador negativo, e passou a ser um legislador positivo [...] sem legitimidade eleitoral". 

Também há, por último, mas não menos importante, o interesse da bancada evangélica. Cumpre lembrar que o relator da referida matéria na Comissão de Constituição e Justiça [CCJ] foi o deputado João Campos (PSDB-GO), coordenador da referida frente parlamentar, que repete o argumento sobre o dito "ativismo judicial": “importa salientar que o quadro atual é, sem dúvida, de exacerbado ativismo judicial da Constituição”. Cabe lembrar que se trata do mesmo João Campos que, através do Projeto de Decreto Legislativo 234/11, propôs a suspensão dos artigos terceiro e quarto da resolução de 1999 do Conselho Federal de Psicologia [CFP], pelos quais os psicólogos “não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura da homossexualidade” nem se pronunciarão “de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica“, e isso porque, nas palavras de Campos, “ao restringir o trabalho dos profissionais e o direito da pessoa de receber orientação profissional“, a referida resolução “extrapolou o seu poder regulamentar“. 

Como se vê, ativismo nos olhos dos outros é refresco. 

Bem, mas o que cargas d'água a bancada evangélica tem a ver, especificamente, com a PEC que tentará submeter decisões judiciais ao referendo do Poder Legislativo? 

Tudo e mais um pouco. Uma Súmula Vinculante que viesse a pacificar o entendimento sobre a união estável ou o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, p. ex., poderia ser derrubada pelo Congresso, coisa que não é difícil de se imaginar se considerarmos os interesses que levaram o oficialismo a entregar, em nome da dita governabilidade, o comando da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados ao evangélico Marco Feliciano [PSC-SP]. 

Como se isso não fosse suficientemente assustador, cumpre lembrar que é também de João Campos a autoria da Proposta de Emenda à Constituição [PEC 99/11] que inclui as entidades religiosas de âmbito nacional entre aquelas que podem propor Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade ao STF. 

Em relação à tentativa de submeter o STF ao Congresso, há pelo menos uma consequência imediata de ambas, dela e da PEC 99/11, caso aprovadas. 

No cenário em que o Projeto de Lei 122/2006 - que tramita a fim de incluir a discriminação aos homossexuais dentre as já punidas pela Lei 7.716/89 [raça, cor, etnia, religião e procedência nacional], em atenção aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil de promoção do "bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Art. 3º, IV) - fosse aprovado, nada impediria que uma entidade religiosa de âmbito nacional propusesse uma ADI a fim de questioná-lo supostamente em nome (i) da garantia de que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política [Constituição Federal, Art. 5º, VIII] e (ii) das liberdades de consciência e de crença [CF, Art. 5º, VI], uma vez que, como se sabe, a bancada evangélica é contra toda e qualquer tentativa de criminalização tanto da ação quanto da manifestação de pensamento homofóficos; declarada, porém, pelo STF, a constitucionalidade do PL 122/2006, nada impediria que o Congresso a derrubasse, pois a decisão sobre a ADI que originou tal declaração precisaria ser referendada pela Casa. 

Em que mundo possível a antecipação de tal cenário é algo auspicioso?

Mas o que sabe o povo sobre a forza necessária para se manter governabilidades e a occasione em que isso deve ser feito. A virtù dos grandes homens de fortuna que dirigem a nação lhe é coisa inacessível.

* Mestrando em filosofia. Mantém o blogue http://msilvaduarte.com

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