O caminho mais perigoso
Pintar o bigodinho de Hitler na chanceler Angela Merkel apenas estimula a xenofobia e não retrata a realidade. A hegemonia européia de hoje têm mais a ver com von Hayek, a Escola Austríaca, Friedman e outros críticos liberais tanto do nazismo (ou do comunismo) quanto da socialdemocracia e de Keynes. Tem mais a ver com Margareth Thatcher, Ronald Reagan e João Paulo II do que com Hitler, Mussolini, Franco ou mesmo Salazar. Por Flávio Aguiar
Flávio Aguiar
Quem semeia tempestades
Colhe vento.
(Variação sobre conhecido provérbio)
Desde a crise financeira de 2007/2008, e sobretudo desde a aceleração da inadimplência grega a partir de 2010 (embora visível já desde o fim de 2009) a ortodoxia liberal hegemônica na Europa vem semeando tempestades.
Esta hegemonia se expressa, em nível continental, num quadrilátero: os três pés da Troika, formada pela Comissão Européia, o Banco Central Europeu e o FMI, mais o pé da liderança exercida pelo governo alemão, Ângela Merkel e Wolfgang Schäuble (o ministro da área financeira) à frente.
Estes quatro pés não são iguais. De longe e desde muito, o pé “menos à direita” é o do FMI, que vem dando seguidas sinalizações de que é necessário suavizar suas próprias receitas ortodoxas. Jogando no meio-campo, a Comissão Européia, através de seu presidente, José Manuel Barroso, deu mostras de “fadiga mental e emocional”, ao entoar também o coro da “suavização” das políticas de “austeridade”. O Banco Central Europeu, que tem o papel precípuo de conter a inflação e cuidar da moeda (o euro), vem dando mostras de estar disposto a fazer o que puder, dentro de suas limitações institucionais, para amenizar a situação. No caso, o que ele pode fazer é atuar no sentido de baixar o custo da renovação das dívidas dos países mais encalacrados: Grécia, Irlanda, Espanha, Portugal, Chipre, Itália, e, mais perto ou ainda ao longe, mas já acendendo luzes amarelas, Eslovênia, Bélgica, França... a lista vai se estendendo.
O pé mais rígido parte da Alemanha: a presença de Jörg Asmussen(tradicionalmente ligado ao SPD) e Jens Weidmann (este o presidente do Banco Central Alemão) no Conselho do B. C. E., e o próprio governo de Berlim. Esta rigidez tem, por sua vez, duas raízes. A primeira é a eleição de setembro, e a necessidade de manter a ladainha da “austeridade” num país em que o eleitorado permanece largamente seduzido pela diluição de um mix de idéias que partem de Lutero e passam pelas características do capitalismo protestante identificadas por Max Weber: poupa e serás poupado. A segunda, mais profunda, é a absoluta hegemonia que as idéias liberais têm na formação do meio-ambiente e do estado mental dos gestores econômicos alemães, coisa que ocorre também em larga escala nos outros países da Zona do Euro e da União Européia, dos historicamente capitalistas ou dos neo-, advindos da antiga órbita soviética. O principal vetor executivo desta hegemonia se encontra nas universidades, nas escolas de economia e administração, onde seu peso é descrito como autoritário, hierático, e excludente, não perdoando heresias, segundo testemunhos na própria mídia alemã. (Li, há tempos, um excelente artigo a este respeito no jornal Berliner Zeitung. Infelizmente, perdi o exemplar).
Esta face teórica, formadora de um meio ambiente, mais oculta, mas nem por isso menos importante, remete a outro componente da hegemonia liberal na visão econômica predominante na U. E. Se é verdade que a cabeça – ou pelo menos a boca – principal desta hidra se manifesta a partir de Berlim, não é menos verdade que o monstro mito-lógico ou mito-histórico está espraiado por toda a Europa. A esquerda se debate com suas fragmentações partidárias e nacionais, cada corrente prisioneira da miragem de que é a única portadora do facho da liberdade. Por aí é fácil facho virar fascio. A direita orgânica (ao contrário da extrema-), deglutindo seu nacionalismo passado, tem uma vocação internacional.
São duas as manifestações mais óbvias daquele espraiamento.
Primeiro, há o fato de que, depois das desilusões do eleitorado de vários países com os governos social-democratas ou socialistas, que aplicaram sem dó nem piedade o receituário hegemônico, as eleições que ocorreram consagraram coalizões ou partidos de direita, como na Grécia, em Portugal e na Espanha. Segundo, há o fato subseqüente de que, no caso de uma reversão desta tendência, como ocorreu recentemente na França (com a eleição de François Hollande) e na Itália (com a vitória do PD e subseqüente formação de um governo liderado por Enrico Letta, embora secundado por Silvo Berlusconi e Mario Draghi), são evidentes as dificuldades de implantação de uma política alternativa. Estas dificuldades são tanto práticas (devido aos “rombos” deixados pelas políticas anteriores) quanto teóricas, pois os partidos descritos no espectro europeu como de “centro-esquerda” foram coniventes com, senão co-formuladores das políticas neo-liberais. E os mais à esquerda ficam envoltos numa narcísica disputa de beleza – tanto teórica quanto por representatividade, digladiando-se entre si pelos despojos dos desiludidos com a social-democracia. Neste vácuo crescem as propostas de protesto despolitizado, como a do Movimento 5 Estrelas, de Beppe Grillo, na Itália.
O caldo de cultura política que borbulha dentro deste panelão ou moldura, tem aberto espaço para uma emergência (em todos os sentidos da palavra) de grupos, partidos, propostas ou até políticas de extrema-direita: esta é a principal tempestade com que a hegemonia ortodoxa está brincando na Europa, através daquela que está desencadeando faz tempo, a do desmonte do estado de bem estar social que abriu caminho, no passado, para a formação da União Européia, no continente líder dos conflitos de escala mundial desde o fim da Idade Média. Tal desmonte, jogando direitos, multidões e sonhos na rua da amargura, está potenciando onde já havia (como na Holanda, na Áustria, na Suíça, na França), ou ajudando a formar e potenciar movimentos e propostas de extrema direita que vão ganhando cada vez mais alento, espaço (Grécia é o caso extremo) – e corações e mentes.
Junto com a emergência da direita vem medrando também a queda de confiança na União Européia, manifesta em diferentes pesquisas e eleições. A extrema direita francesa é claramente anti- U. E.; Sílvio Berlusconi, que renasceu das cinzas na Itália, se apresenta hoje como um euro-cético, para dizer o mínimo, tanto em relação ao continente quanto à moeda. Tradicionalmente a extrema-direita já jogava com o sentimento anti-imigrantes em vários países, usando como argumento uma diluição da percepção – já ela mesma conservadora – do “confronto de civilizações”, de Samuel Huntington. Nos últimos tempos este jogo vem sendo potenciado como no primeiro de maio grego, em que membros do partido “Aurora Dourada”, de extrema-direita, distribuíam “cestas básicas” apenas para... gregos; ou no alemão, onde os neonazis também reivindicam a data, e faziam a defesa da criação de empregos apenas para... os trabalhadores alemães. O pior é que tais melodias encantam por vezes as serpentes interiores da gente mais pobre, que também as têm. Crescem também organizações de direita “bem pensante” ou “moderada”, como o novo partido Alternativa para a Alemanha (anti-euro) ou o UKIP, apontado como o verdadeiro vencedor das eleições municipais no Reino Unido (que pede o endurecimento em relação à imigração).
Outro monstro que mostra a cabeça nesta sopa envenenada é a velha xenofobia inter-pares que construiu – “normalmente” através de destruições que fazem as vulcânicas parecer uma brincadeira de criança – a história multissecular do continente. A manifestação mais conspícua – e hedionda – desta xenofobia é a fermentação do miasma do desprezo dos povos do “norte”, cuja face se desenha como “laboriosa”, “contida”, “sóbria”, etc., contra os povos do “sul”, cujo perfil é apresentado como “dissipador”, “perdulário”, “dissoluto”, quando não diretamente como “afeito à cultura da corrupção”. Ou no preconceito das nações do antigo Ocidente da Europa em relação às do antigo Leste, ou seus párias, como os Roma e Sintis (ciganos, mas eles não gostam desta palavra).
Ela aparece também no ódio fomentado – atividade que muitas vezes se apresenta como se esquerda – nos povos deste “sul” contra os daquele “norte”, sobretudo, é claro, o da Alemanha. Este fomento surdo aumentou depois que dois clubes alemães se qualificaram para a final da Liga dos Campeões, massacrando os respectivos adversários espanhóis. Ele emergiu tanto do lado dos vencedores (analistas esportivos alardeavam que a Alemanha agora “manda” tanto na economia como no futebol do continente...) quanto dos vencidos, que tinham mais um motivo para odiar o lado vitorioso.
Tudo pode parecer assim ser culpa – mais uma vez – da Alemanha de cultura prepotente, agressiva e arrogante desde sempre, embora tal prepotência se projete sobretudo apenas a partir de 1871, quando a Alemanha passa a existir, tanto de facto quanto de direito. Mas parece que esta Alemanha – autoritária, feroz e imperial – já se gestava dentro da “outra”, a dividida, envolta em guerras intestinas, anterior à guerra franco-prussiana. Onde o monstro se tecia? Ora, no seu pensamento, na sua música, nos seus filósofos, etc. A associação do momento atual com o nazismo é um pequeno passo – tão fácil quanto enganoso, e muita gente de esquerda envereda por ele. Apontam-se Fichte, Wagner, Nietszche et alii como precursores do vezo autoritário alemão, de que o nazismo seria apenas a gema: eles seriam a clara que lhe deu proteína.
Muitos correligionários do nosso lado das esquerdas se divertem ou até exultam cada vez que vêm a efígie da chanceler alemã aparecer nas manifestações da Grécia, de Portugal, Espanha, e outros países, decorada com o bigodinho que era uma das marcas registradas de Adolf Hitler. Eu, confesso, tremo nas bases. Por duas razões. A primeira é a de que isto apenas alimenta as xenofobias de todos os lados, e tradicionalmente na Europa este alimentar do monstro é o primeiro passo para a catástrofe que, inclusive por não ser percebida, acaba se tornando inevitável. A segunda é a de que a hegemonia que hoje se pretende manter na Europa e que encontra expressão e lideran ça na Alemanha, mas não é só dela, tem pouco a ver com Hitler, ou os racismos que medraram na Alemanha (e em outros países) anteriormente. Tem muito mais a ver com outras gentes que, graças a esta fantasmagoria que muitas vezes algumas esquerdas ajudam a fomentar, permanecem na sombra.
Num reconhecimento que não deixa de ser incômodo, as políticas que se querem hegemônicas hoje na Europa têm pouco a ver com o ideário de Hjalmar Schacht, o economista e banqueiro que teve sucesso em conter a inflação alemã em meados da década de 20 e depois foi o presidente do Reichsbank sob Hitler, ajudando este último a combater o desemprego, que ia pelos 6 milhões de trabalhadores. Em ambos os casos ele o fez através de um manejo criativo do déficit público. Aquelas políticas têm muito mais a ver com Heinrich Brünning e Franz von Papen, os chanceleres alemães que, a partir da crise de 1929, aplicaram o receituário “austero” que ora se implementa, cortando orçamentos e políticas sociais, ajudando a criar aquele exército de desempregados que foi, sem dúvida, um dos pilares da ascensão e consagração de Adolf Hitler, do seu Partido Nacional-Socialista, de sua ideologia e suas realizações hediondas na história da humanidade. As buscadas hegemonias de hoje têm menos a ver com Fichte, Wagner ou Nietszche e mais com Huntington, Fukuyama – e Reinhart e Rogoff.
A hegemonia européia de hoje têm mais a ver, portanto, com von Hayek, a Escola Austríaca, Friedman, e outros críticos liberais tanto do nazismo (ou do comunismo) quanto da socialdemocracia e de Keynes. Tem mais a ver com Margareth Thatcher, Ronald Reagan e João Paulo II do que com Hitler, Mussolini, Franco ou mesmo Salazar.
Decididamente, a hegemonia de direita hoje na Europa está semeando tempestades. Se as esquerdas se deixarem levar pela mesma semeadura, se fazendo lenientes com a xenofobia, ao invés de trabalhar pela difícil mas indipensável solidariedade internacional entre trabalhadores, povos, culturas, estarão se preparando para colher apenas vento, isto é, nada.
Colhe vento.
(Variação sobre conhecido provérbio)
Desde a crise financeira de 2007/2008, e sobretudo desde a aceleração da inadimplência grega a partir de 2010 (embora visível já desde o fim de 2009) a ortodoxia liberal hegemônica na Europa vem semeando tempestades.
Esta hegemonia se expressa, em nível continental, num quadrilátero: os três pés da Troika, formada pela Comissão Européia, o Banco Central Europeu e o FMI, mais o pé da liderança exercida pelo governo alemão, Ângela Merkel e Wolfgang Schäuble (o ministro da área financeira) à frente.
Estes quatro pés não são iguais. De longe e desde muito, o pé “menos à direita” é o do FMI, que vem dando seguidas sinalizações de que é necessário suavizar suas próprias receitas ortodoxas. Jogando no meio-campo, a Comissão Européia, através de seu presidente, José Manuel Barroso, deu mostras de “fadiga mental e emocional”, ao entoar também o coro da “suavização” das políticas de “austeridade”. O Banco Central Europeu, que tem o papel precípuo de conter a inflação e cuidar da moeda (o euro), vem dando mostras de estar disposto a fazer o que puder, dentro de suas limitações institucionais, para amenizar a situação. No caso, o que ele pode fazer é atuar no sentido de baixar o custo da renovação das dívidas dos países mais encalacrados: Grécia, Irlanda, Espanha, Portugal, Chipre, Itália, e, mais perto ou ainda ao longe, mas já acendendo luzes amarelas, Eslovênia, Bélgica, França... a lista vai se estendendo.
O pé mais rígido parte da Alemanha: a presença de Jörg Asmussen(tradicionalmente ligado ao SPD) e Jens Weidmann (este o presidente do Banco Central Alemão) no Conselho do B. C. E., e o próprio governo de Berlim. Esta rigidez tem, por sua vez, duas raízes. A primeira é a eleição de setembro, e a necessidade de manter a ladainha da “austeridade” num país em que o eleitorado permanece largamente seduzido pela diluição de um mix de idéias que partem de Lutero e passam pelas características do capitalismo protestante identificadas por Max Weber: poupa e serás poupado. A segunda, mais profunda, é a absoluta hegemonia que as idéias liberais têm na formação do meio-ambiente e do estado mental dos gestores econômicos alemães, coisa que ocorre também em larga escala nos outros países da Zona do Euro e da União Européia, dos historicamente capitalistas ou dos neo-, advindos da antiga órbita soviética. O principal vetor executivo desta hegemonia se encontra nas universidades, nas escolas de economia e administração, onde seu peso é descrito como autoritário, hierático, e excludente, não perdoando heresias, segundo testemunhos na própria mídia alemã. (Li, há tempos, um excelente artigo a este respeito no jornal Berliner Zeitung. Infelizmente, perdi o exemplar).
Esta face teórica, formadora de um meio ambiente, mais oculta, mas nem por isso menos importante, remete a outro componente da hegemonia liberal na visão econômica predominante na U. E. Se é verdade que a cabeça – ou pelo menos a boca – principal desta hidra se manifesta a partir de Berlim, não é menos verdade que o monstro mito-lógico ou mito-histórico está espraiado por toda a Europa. A esquerda se debate com suas fragmentações partidárias e nacionais, cada corrente prisioneira da miragem de que é a única portadora do facho da liberdade. Por aí é fácil facho virar fascio. A direita orgânica (ao contrário da extrema-), deglutindo seu nacionalismo passado, tem uma vocação internacional.
São duas as manifestações mais óbvias daquele espraiamento.
Primeiro, há o fato de que, depois das desilusões do eleitorado de vários países com os governos social-democratas ou socialistas, que aplicaram sem dó nem piedade o receituário hegemônico, as eleições que ocorreram consagraram coalizões ou partidos de direita, como na Grécia, em Portugal e na Espanha. Segundo, há o fato subseqüente de que, no caso de uma reversão desta tendência, como ocorreu recentemente na França (com a eleição de François Hollande) e na Itália (com a vitória do PD e subseqüente formação de um governo liderado por Enrico Letta, embora secundado por Silvo Berlusconi e Mario Draghi), são evidentes as dificuldades de implantação de uma política alternativa. Estas dificuldades são tanto práticas (devido aos “rombos” deixados pelas políticas anteriores) quanto teóricas, pois os partidos descritos no espectro europeu como de “centro-esquerda” foram coniventes com, senão co-formuladores das políticas neo-liberais. E os mais à esquerda ficam envoltos numa narcísica disputa de beleza – tanto teórica quanto por representatividade, digladiando-se entre si pelos despojos dos desiludidos com a social-democracia. Neste vácuo crescem as propostas de protesto despolitizado, como a do Movimento 5 Estrelas, de Beppe Grillo, na Itália.
O caldo de cultura política que borbulha dentro deste panelão ou moldura, tem aberto espaço para uma emergência (em todos os sentidos da palavra) de grupos, partidos, propostas ou até políticas de extrema-direita: esta é a principal tempestade com que a hegemonia ortodoxa está brincando na Europa, através daquela que está desencadeando faz tempo, a do desmonte do estado de bem estar social que abriu caminho, no passado, para a formação da União Européia, no continente líder dos conflitos de escala mundial desde o fim da Idade Média. Tal desmonte, jogando direitos, multidões e sonhos na rua da amargura, está potenciando onde já havia (como na Holanda, na Áustria, na Suíça, na França), ou ajudando a formar e potenciar movimentos e propostas de extrema direita que vão ganhando cada vez mais alento, espaço (Grécia é o caso extremo) – e corações e mentes.
Junto com a emergência da direita vem medrando também a queda de confiança na União Européia, manifesta em diferentes pesquisas e eleições. A extrema direita francesa é claramente anti- U. E.; Sílvio Berlusconi, que renasceu das cinzas na Itália, se apresenta hoje como um euro-cético, para dizer o mínimo, tanto em relação ao continente quanto à moeda. Tradicionalmente a extrema-direita já jogava com o sentimento anti-imigrantes em vários países, usando como argumento uma diluição da percepção – já ela mesma conservadora – do “confronto de civilizações”, de Samuel Huntington. Nos últimos tempos este jogo vem sendo potenciado como no primeiro de maio grego, em que membros do partido “Aurora Dourada”, de extrema-direita, distribuíam “cestas básicas” apenas para... gregos; ou no alemão, onde os neonazis também reivindicam a data, e faziam a defesa da criação de empregos apenas para... os trabalhadores alemães. O pior é que tais melodias encantam por vezes as serpentes interiores da gente mais pobre, que também as têm. Crescem também organizações de direita “bem pensante” ou “moderada”, como o novo partido Alternativa para a Alemanha (anti-euro) ou o UKIP, apontado como o verdadeiro vencedor das eleições municipais no Reino Unido (que pede o endurecimento em relação à imigração).
Outro monstro que mostra a cabeça nesta sopa envenenada é a velha xenofobia inter-pares que construiu – “normalmente” através de destruições que fazem as vulcânicas parecer uma brincadeira de criança – a história multissecular do continente. A manifestação mais conspícua – e hedionda – desta xenofobia é a fermentação do miasma do desprezo dos povos do “norte”, cuja face se desenha como “laboriosa”, “contida”, “sóbria”, etc., contra os povos do “sul”, cujo perfil é apresentado como “dissipador”, “perdulário”, “dissoluto”, quando não diretamente como “afeito à cultura da corrupção”. Ou no preconceito das nações do antigo Ocidente da Europa em relação às do antigo Leste, ou seus párias, como os Roma e Sintis (ciganos, mas eles não gostam desta palavra).
Ela aparece também no ódio fomentado – atividade que muitas vezes se apresenta como se esquerda – nos povos deste “sul” contra os daquele “norte”, sobretudo, é claro, o da Alemanha. Este fomento surdo aumentou depois que dois clubes alemães se qualificaram para a final da Liga dos Campeões, massacrando os respectivos adversários espanhóis. Ele emergiu tanto do lado dos vencedores (analistas esportivos alardeavam que a Alemanha agora “manda” tanto na economia como no futebol do continente...) quanto dos vencidos, que tinham mais um motivo para odiar o lado vitorioso.
Tudo pode parecer assim ser culpa – mais uma vez – da Alemanha de cultura prepotente, agressiva e arrogante desde sempre, embora tal prepotência se projete sobretudo apenas a partir de 1871, quando a Alemanha passa a existir, tanto de facto quanto de direito. Mas parece que esta Alemanha – autoritária, feroz e imperial – já se gestava dentro da “outra”, a dividida, envolta em guerras intestinas, anterior à guerra franco-prussiana. Onde o monstro se tecia? Ora, no seu pensamento, na sua música, nos seus filósofos, etc. A associação do momento atual com o nazismo é um pequeno passo – tão fácil quanto enganoso, e muita gente de esquerda envereda por ele. Apontam-se Fichte, Wagner, Nietszche et alii como precursores do vezo autoritário alemão, de que o nazismo seria apenas a gema: eles seriam a clara que lhe deu proteína.
Muitos correligionários do nosso lado das esquerdas se divertem ou até exultam cada vez que vêm a efígie da chanceler alemã aparecer nas manifestações da Grécia, de Portugal, Espanha, e outros países, decorada com o bigodinho que era uma das marcas registradas de Adolf Hitler. Eu, confesso, tremo nas bases. Por duas razões. A primeira é a de que isto apenas alimenta as xenofobias de todos os lados, e tradicionalmente na Europa este alimentar do monstro é o primeiro passo para a catástrofe que, inclusive por não ser percebida, acaba se tornando inevitável. A segunda é a de que a hegemonia que hoje se pretende manter na Europa e que encontra expressão e lideran ça na Alemanha, mas não é só dela, tem pouco a ver com Hitler, ou os racismos que medraram na Alemanha (e em outros países) anteriormente. Tem muito mais a ver com outras gentes que, graças a esta fantasmagoria que muitas vezes algumas esquerdas ajudam a fomentar, permanecem na sombra.
Num reconhecimento que não deixa de ser incômodo, as políticas que se querem hegemônicas hoje na Europa têm pouco a ver com o ideário de Hjalmar Schacht, o economista e banqueiro que teve sucesso em conter a inflação alemã em meados da década de 20 e depois foi o presidente do Reichsbank sob Hitler, ajudando este último a combater o desemprego, que ia pelos 6 milhões de trabalhadores. Em ambos os casos ele o fez através de um manejo criativo do déficit público. Aquelas políticas têm muito mais a ver com Heinrich Brünning e Franz von Papen, os chanceleres alemães que, a partir da crise de 1929, aplicaram o receituário “austero” que ora se implementa, cortando orçamentos e políticas sociais, ajudando a criar aquele exército de desempregados que foi, sem dúvida, um dos pilares da ascensão e consagração de Adolf Hitler, do seu Partido Nacional-Socialista, de sua ideologia e suas realizações hediondas na história da humanidade. As buscadas hegemonias de hoje têm menos a ver com Fichte, Wagner ou Nietszche e mais com Huntington, Fukuyama – e Reinhart e Rogoff.
A hegemonia européia de hoje têm mais a ver, portanto, com von Hayek, a Escola Austríaca, Friedman, e outros críticos liberais tanto do nazismo (ou do comunismo) quanto da socialdemocracia e de Keynes. Tem mais a ver com Margareth Thatcher, Ronald Reagan e João Paulo II do que com Hitler, Mussolini, Franco ou mesmo Salazar.
Decididamente, a hegemonia de direita hoje na Europa está semeando tempestades. Se as esquerdas se deixarem levar pela mesma semeadura, se fazendo lenientes com a xenofobia, ao invés de trabalhar pela difícil mas indipensável solidariedade internacional entre trabalhadores, povos, culturas, estarão se preparando para colher apenas vento, isto é, nada.
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