Acumulação sistêmica, poupança externa e rentismo: observações sobre o caso brasileiro
Ao longo de seus cinco séculos de história, o capitalismo passou por diferentes fases, reservando, em cada uma delas, distintos papéis à periferia do sistema. De sua função inicial como território de espoliação no contexto da fase de acumulação primitiva, o Brasil alcança o começo do século XXI como uma emergente plataforma internacional de valorização financeira, no contexto do capitalismo financeirizado hoje vigente. O discurso neoliberal, que sustenta ideologicamente a financeirização, argumenta que o país não está sob risco ao basear o funcionamento de sua economia na utilização de poupança externa. O artigo tenta demonstrar que o modelo macroeconômico assim estruturado afigura-se como mais um capítulo na longa história de heteronomia e dependência da economia brasileira, resultando em regressão em nosso papel na divisão internacional do trabalho, além do fomento ao rentismo internacional. O artigo procura também mostrar quão relevantes são, em tais circunstâncias, os approaches que mostram, por exemplo, a tendência cíclica de sobrevalorização da taxa de câmbio (Bresser-Pereira, 2008 e 2009), apontando a falácia do discurso rentista, bem como a manutenção da posição secularmente subordinada do país, se esse modelo for mantido.
Leda Paulani
Leda Paulani
Ainda que não se possa negar a verdade de algumas mudanças que estão em curso (vide, por exemplo, a diferença tanto de postura quanto de realidade econômica que existe entre a Argentina dos anos 2000 e aquela dos anos 1990), é, contudo, precipitado e temeroso supor que daqui por diante os países latino-americanos não encontrarão obstáculos para efetivar suas pretensões de superação da heteronomia que secularmente os caracteriza. A razão principal que faz que as aludidas mudanças possam na realidade representar muito pouco tem que ver com a manutenção dos interesses que vêm marcando e presidindo o movimento da economia capitalista nas últimas décadas. Considerado o processo de acumulação, como deve sê-lo, de um ponto de vista sistêmico, e por conseguinte, mundial, é preciso, para averiguar e avaliar a efetividade dessas mudanças, colocá-las em perspectiva histórica e analisá-las à luz do processo de financeirização1 que está em curso. Ultrapassada essa etapa da análise, não será difícil perceber que a nova face da dependência, se assim podemos chamá-la, radica na recorrente absorção de elevados montantes de poupança externa. Em países como o Brasil, por exemplo, um volume cada vez mais elevado de renda real é subtraído de nossa economia para fazer face ao pagamento das rendas que essa poupança externa requer. Vale a pena apresentar de antemão a evolução desses pagamentos na economia brasileira nas duas últimas décadas.
A Tabela 1 mostra de maneira inequívoca a crescente extração de renda real da arena doméstica para enfrentar as despesas decorrentes dos capitais externos aqui aplicados. Se compararmos os valores dos fluxos enviados ao exterior em razão da remuneração, seja de investimentos reais (investimentos externos diretos), seja de investimentos financeiros (investimentos em carteira e outros investimentos, especialmente empréstimos convencionais), veremos que esses cresceram, entre 1990 e 2011, 356%, para um crescimento do PIB de apenas 87% no mesmo período. Vista a mesma questão agora do ângulo dos estoques, verificamos que o passivo externo de curto prazo da economia brasileira está hoje na casa dos US$ 650 bilhões, para um volume de reservas de cerca de US$ 350 bilhões (dados de dezembro de 2011).2 Apesar de essa relação já ter sido bem pior (houve sensível melhora em nossa capacidade de honrar passivos de curto prazo em razão do enorme crescimento das reservas verificado a partir de 2007), é inegável que sai bastante prejudicada do confronto com esses dados a tão falada invulnerabilidade externa da economia brasileira nos últimos anos, mito reforçado pelo advento da crise internacional de 2008 e pela forma como passamos por ela. De fato, é pouco confortável, para dizer o mínimo, ter cerca US$ 300 bilhões de passivo externo de curto prazo a descoberto.
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