TRÂNSITO ENTRE O PARTICULAR E O UNIVERSAL IMPEDE A PERDA DE PARÂMETROS NA ARTE, POLÍTICA E HISTÓRIA E RESGATA O HOMEM COMO CENTRO DO CONHECIMENTO
Daniel Aarão Reis Filho
Daniel Aarão Reis Filho
(Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo em 2003)
Luz contra trevas
ão apenas conferir sentido, mas, ousadia suprema, criar sentido. Karl Marx surge na esteira dessas ousadias desmesuradas. O fato de ter procurado desqualificar os que o antecederam como utópicos, conferindo à formosa palavra um sentido pejorativo, não retira dele os méritos de ter formulado uma visão grandiosa e categorias analíticas que resistiram à usura do tempo. Entretanto, já na época, suas construções suscitaram desconfianças e oposições. Sem contar uma certa ênfase, considerada excessiva, na dimensão econômica, o que impressionava era a ambição de tudo abarcar, formulando determinações que pareciam a muitos prisões conceituais, que poderiam levar a prisões propriamente ditas. Os discípulos, ao longo do século 20, exacerbaram esses traços. Construindo marxismos vários, de Moscou ao Caribe, radicalizaram propostas de uma totalidade que, em nome da humanidade, pareciam esquecer os seres humanos. Os casos particulares apenas se encaixavam nas "leis da História" e, quando não, como disse um famoso revolucionário, "pior para eles".
Fim do sonho
Fim do sonho
Em nome disso, dessas religiões "laicizadas", sucessivas gerações sucumbiram sofrendo, mas com o coração em paz. E, assim, de um pensamento audaz, revolucionário, emancipatório se fez uma "ideologia fria", mais capaz de mobilizar tanques e foguetes do que imaginações.
Quando o sonho terminou, porque há muito se transformara em pesadelo, houve de tudo um pouco: desde os que se recusaram a acordar, aferrados a modelos globalizantes que "tudo explicam", mas nada compreendem, até a tentação de um retorno puro e simples às religiões tradicionais. "Aggiornadas" ou radicalizadas em seus fundamentos, elas estavam prontas para acolher a decepção das utopias fracassadas: a Rússia é um caso exemplar do gênero. Outros, no entanto, dizendo-se pós-modernos, preferiram mergulhar no refúgio do particularismo, catando embaixo das mesas as "migalhas" da história (François Dosse).
Mas ninguém é obrigado a participar dessa falsa polarização. Há muito a literatura ensina que uma boa narração de uma história particular, além de poder ser bela, pode também ser universal. Em política também já não é recente o conselho de agir localmente, mas pensar globalmente. Em história, o mesmo acontece: casos particulares, bem estudados e conhecidos, podem oferecer pistas de valor universal, contribuindo inclusive para redefinir parâmetros gerais. Da mesma forma, as grandes narrativas serão sempre bem-vindas, desde que não façam desaparecer os tempos e os lugares particulares, que são "o quando" e "o onde" em que os seres humanos realmente vivem. Porque são eles, afinal de contas, que se trata de explicar e compreender.
Daniel Aarão Reis Filho é professor de história na Universidade Federal Fluminense e autor de, entre outros, "Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade" (Jorge Zahar).
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