Por que a mídia dos EUA ignorou a tentativa de Murdoch de assaltar a presidência?
Periódicos como o Washington Post subestimaram o caso por medo do dono da News Corporation ou por falta de discernimento? A gravação da conversa entre o general e o editor é um documento formidável, um testemunho do desembaraço com que Murdoch passa por cima da ordem civil e política estadunidense sem nem se preocupar com as finezas tradicionais ou fingir independência e honestidade jornalística. O artigo é de Carl Bernstein.
Carl Bernstein - The Guardian
Finalmente temos evidência irrefutável do último e mais audacioso atentado de Rupert Murdoch – frustado, ainda bem, pelas circunstâncias - contra as instituições democráticas estadunidenses. O assalto tinha escala similar ao sequestro e corrupção que o magnata da mídia realizou nas principais instituições democráticas da Grã-Bretanha.
No caso americano, o objetivo de Murdoch parece não ter sido menor do que usar seu império midiático – especialmente a Fox News – para financiar e apoiar a candidatura do general David Petraeus à presidência nas eleições deste ano.
No primeiro semestre de 2011, menos de dois meses antes da revelação do papel central que Murdoch desempenhou no escândalo envolvendo seus periódicos britânicos, o criador e presidente da Fox News, Roger Ailes, enviou uma emissária ao Afeganistão para persuadir Petraeus a recusar a oferta, feita pelo presidente Obama, de tornar-se diretor da CIA e, em vez disso, concorrer à nomeção à presidência do Partido Republicano, com a promessa de ser bancado por Murdoch. O próprio Ailes renunciaria ao cargo de presidente da Fox News para comandar a campanha, de acordo com a conversa entre Petraeus e a emissária Kathleen T. McFarland, uma “analista” da Fox News e membro do Conselho de Segurança Nacional em três administrações republicanas.
Tudo isso é revelado numa gravação do encontro entre Petraeus e McFarland obtida por Bob Woodward, cuja descrição da conversa, acompanhada pelo áudio da gravação, foi publicada no Washington Post. Curiosamente, a reportagem foi impressa na seção de Estilo, e não na primeira página. Na internet, ela foi veiculada também abaixo do logo Estilo, no dia 3 de dezembro.
De fato, tão desesperador quanto o menosprezo que Ailes e Murdoch nutrem por valores jornalísticos e por um processo eleitoral transparente, e tão marcante quanto a avidez do emissário em prometer o apoio da Fox a Petraeus, tem sido a falta de interesse da imprensa e dos políticos norte-americanos sobre o ocorrido. Não se sabe se o desinteresse é causado por medo do poderio de Murdoch e Ailes ou da pouca surpresa que traz a postura dos magnatas da mídia.
O tom da reação da mídia foi dado desde que falou-se do caso pela primeira vez: o Post relegou a matéria à seção referente a fofocas sobre celebridades. “Bob conseguiu um furo importante, uma matéria barulhenta, perfeita para a seção Estilo. Uma primeira página não se justificaria,” disse Liz Spayd, editora-chefe do Washington Post, quando perguntada sobre o ímpar posicionamento da matéria na edição do dia 3 de dezembro.
Matéria barulhenta? A primeira página “não se justificaria”? Ninguém poderia imaginar tamanha falha de um dos predecessores de Spayd, até em função da qualidade do registro que o Post tinha em mãos.
“Avise a Ailes se eu me candidatar”, anuncia Petraeus em gravação digital cristalina, “mas eu não o farei. Se um dia eu o fizer, eu me lembrarei da oferta... ele disse que saria da Fox e bancaria minha candidatura...”
McFarland esclareceu as condições: “é o patrão que vai financiar. Roger [Ailes] só vai dirigir. E o resto de nós estará na organização“, confirmando assim o que os críticos da Fox News sempre mantiveram sobre a conduta do canal de notícias.
Uma coisa deve ser sublinhada aqui: se a emissária trabalhasse para o presidente da NCB, para o editor do New York Times ou do Washington Post, a gritaria seria enorme, principalmente da Fox News e da América republicana/Tea Party, e só se abrandaria com uma investigação por parte do Congresso e a renúncia dos editores do periódico ou canal de tevê. Ou até que houvesse evidência plausível e convincente de que tudo fosse mentira. E, obviamente, o caso permaneceria na primeira página e nos noticiários vespertinos durante semanas.
A gravação da conversa entre o general e o editor é um documento formidável, um testemunho do desembaraço com que Murdoch passa por cima da ordem civil e política estadunidense sem nem se preocupar com as finezas tradicionais ou fingir independência e honestidade jornalística. O caso Ailes/Petraeus esclarece que os objetivos de Murdoch nos EUA eram tão abomináveis e pérfidos quanto no caso das escutas telefônicas, que aniquilou qualquer dúvida sobre a capacidade de Murdoch de corromper qualquer um dos elementos essenciais da ordem civil britânica – a imprensa, os políticos e a polícia.
Murdoch e Ailes ergueram um império midiático de poder incomparável nas culturas norte-americana e britânica. Mas ao invés de exercer tal poder de maneira judiciosa ou melhorar os padrões jornalísticos com seus recursos intermináveis, os dois irrefletidamente investem numa agenda sensacionalista, em controvérsias forjadas e em messianismo ideológico. A gravação é uma evidência poderosa da metodologia e do alcance do império de Murdoch.
A corrupção por Murdoch de instituições democráticas fundamentais em ambos os lados do Atlântico é um dos casos de maior importância e alcance político e cultural dos últimos 30 anos, uma narrativa em curso sem igual. Como no caso de Richard Nixon, muita atenção foi dirigida à necessidade de encontrar provas concretas do que já não era mais uma dúvida, isto é, que os instrumentos elementares da democracia (a presidência no caso Nixon, os privilégios da mídia livre no caso Murdoch) foram empregados de maneira equivocada e abusiva para os fins particulares daqueles que deveriam servir o bem comum.
No caso Nixon, o sistema funcionou. Suas ações foram investigadas pelo Congresso, o sistema judiciário sustentou que nem o presidente dos Estados Unidos da América estava acima da lei, e ele foi forçado a renunciar ou enfrentar um impeachment. As democracias britânica e estadunidense não se sairam tão bem com Murdoch, cujo poder e corrupção não foi reprimido por um terço de século.
A decisão mais importante que um jornalista toma é a de julgar se algo é ou não notícia. Talvez nenhuma história tenha sido tão evitada por nós quanto a da marcha de Murdoch sobre a democracia. Quando a cobertura das escutas telefônicas, na qual o Guardian insistiu por meses, atingiu massa crítica, um ex-capanga de Murdoch disse o seguinte: “este escândalo e todas as suas implicações não poderiam ter ocorrido em outro lugar. Só poderia ter sido na órbita de Murdoch. As delinquências do News of the World foram cometidas em escala industrial. Foi Murdoch quem inventou e estabeleceu esta cultura de redação, na qual se deve fazer o que for preciso para conseguir uma matéria e na qual os fins sempre justificam os meios”.
A fita obtida por Bob Woodward deveria ser o desfecho da história de Murdoch, tanto no Reino Unido quanto nos EUA, para que ficasse claro que nenhuma instituição, nem mesmo o presidente norte-americano, está acima da democracia. Se Murdoch financiasse uma campanha presidencial exitosa para Petraeus com “o resto de nós na organização”, como disse Kathleen McFarland, ele teria demonstrado controle sobre todas as instituições democráticas norte-americanas, controle ainda mais seguro do que o exercido sobre a Grã-Bretanha.
Felizmente, Petraeus não desejava a presidência. O general estava contente com a ideia de tornar-se diretor da CIA.
“Está tudo montado”, disse a emissária referindo-se a Ailes, Murdoch e Fox News. “Nunca vai acontecer”, respondeu Petraeus. “Você sabe que nunca vai acontecer, não vai mesmo. Minha mulher pediria divórcio”.
Tradução: André Cristi
No caso americano, o objetivo de Murdoch parece não ter sido menor do que usar seu império midiático – especialmente a Fox News – para financiar e apoiar a candidatura do general David Petraeus à presidência nas eleições deste ano.
No primeiro semestre de 2011, menos de dois meses antes da revelação do papel central que Murdoch desempenhou no escândalo envolvendo seus periódicos britânicos, o criador e presidente da Fox News, Roger Ailes, enviou uma emissária ao Afeganistão para persuadir Petraeus a recusar a oferta, feita pelo presidente Obama, de tornar-se diretor da CIA e, em vez disso, concorrer à nomeção à presidência do Partido Republicano, com a promessa de ser bancado por Murdoch. O próprio Ailes renunciaria ao cargo de presidente da Fox News para comandar a campanha, de acordo com a conversa entre Petraeus e a emissária Kathleen T. McFarland, uma “analista” da Fox News e membro do Conselho de Segurança Nacional em três administrações republicanas.
Tudo isso é revelado numa gravação do encontro entre Petraeus e McFarland obtida por Bob Woodward, cuja descrição da conversa, acompanhada pelo áudio da gravação, foi publicada no Washington Post. Curiosamente, a reportagem foi impressa na seção de Estilo, e não na primeira página. Na internet, ela foi veiculada também abaixo do logo Estilo, no dia 3 de dezembro.
De fato, tão desesperador quanto o menosprezo que Ailes e Murdoch nutrem por valores jornalísticos e por um processo eleitoral transparente, e tão marcante quanto a avidez do emissário em prometer o apoio da Fox a Petraeus, tem sido a falta de interesse da imprensa e dos políticos norte-americanos sobre o ocorrido. Não se sabe se o desinteresse é causado por medo do poderio de Murdoch e Ailes ou da pouca surpresa que traz a postura dos magnatas da mídia.
O tom da reação da mídia foi dado desde que falou-se do caso pela primeira vez: o Post relegou a matéria à seção referente a fofocas sobre celebridades. “Bob conseguiu um furo importante, uma matéria barulhenta, perfeita para a seção Estilo. Uma primeira página não se justificaria,” disse Liz Spayd, editora-chefe do Washington Post, quando perguntada sobre o ímpar posicionamento da matéria na edição do dia 3 de dezembro.
Matéria barulhenta? A primeira página “não se justificaria”? Ninguém poderia imaginar tamanha falha de um dos predecessores de Spayd, até em função da qualidade do registro que o Post tinha em mãos.
“Avise a Ailes se eu me candidatar”, anuncia Petraeus em gravação digital cristalina, “mas eu não o farei. Se um dia eu o fizer, eu me lembrarei da oferta... ele disse que saria da Fox e bancaria minha candidatura...”
McFarland esclareceu as condições: “é o patrão que vai financiar. Roger [Ailes] só vai dirigir. E o resto de nós estará na organização“, confirmando assim o que os críticos da Fox News sempre mantiveram sobre a conduta do canal de notícias.
Uma coisa deve ser sublinhada aqui: se a emissária trabalhasse para o presidente da NCB, para o editor do New York Times ou do Washington Post, a gritaria seria enorme, principalmente da Fox News e da América republicana/Tea Party, e só se abrandaria com uma investigação por parte do Congresso e a renúncia dos editores do periódico ou canal de tevê. Ou até que houvesse evidência plausível e convincente de que tudo fosse mentira. E, obviamente, o caso permaneceria na primeira página e nos noticiários vespertinos durante semanas.
A gravação da conversa entre o general e o editor é um documento formidável, um testemunho do desembaraço com que Murdoch passa por cima da ordem civil e política estadunidense sem nem se preocupar com as finezas tradicionais ou fingir independência e honestidade jornalística. O caso Ailes/Petraeus esclarece que os objetivos de Murdoch nos EUA eram tão abomináveis e pérfidos quanto no caso das escutas telefônicas, que aniquilou qualquer dúvida sobre a capacidade de Murdoch de corromper qualquer um dos elementos essenciais da ordem civil britânica – a imprensa, os políticos e a polícia.
Murdoch e Ailes ergueram um império midiático de poder incomparável nas culturas norte-americana e britânica. Mas ao invés de exercer tal poder de maneira judiciosa ou melhorar os padrões jornalísticos com seus recursos intermináveis, os dois irrefletidamente investem numa agenda sensacionalista, em controvérsias forjadas e em messianismo ideológico. A gravação é uma evidência poderosa da metodologia e do alcance do império de Murdoch.
A corrupção por Murdoch de instituições democráticas fundamentais em ambos os lados do Atlântico é um dos casos de maior importância e alcance político e cultural dos últimos 30 anos, uma narrativa em curso sem igual. Como no caso de Richard Nixon, muita atenção foi dirigida à necessidade de encontrar provas concretas do que já não era mais uma dúvida, isto é, que os instrumentos elementares da democracia (a presidência no caso Nixon, os privilégios da mídia livre no caso Murdoch) foram empregados de maneira equivocada e abusiva para os fins particulares daqueles que deveriam servir o bem comum.
No caso Nixon, o sistema funcionou. Suas ações foram investigadas pelo Congresso, o sistema judiciário sustentou que nem o presidente dos Estados Unidos da América estava acima da lei, e ele foi forçado a renunciar ou enfrentar um impeachment. As democracias britânica e estadunidense não se sairam tão bem com Murdoch, cujo poder e corrupção não foi reprimido por um terço de século.
A decisão mais importante que um jornalista toma é a de julgar se algo é ou não notícia. Talvez nenhuma história tenha sido tão evitada por nós quanto a da marcha de Murdoch sobre a democracia. Quando a cobertura das escutas telefônicas, na qual o Guardian insistiu por meses, atingiu massa crítica, um ex-capanga de Murdoch disse o seguinte: “este escândalo e todas as suas implicações não poderiam ter ocorrido em outro lugar. Só poderia ter sido na órbita de Murdoch. As delinquências do News of the World foram cometidas em escala industrial. Foi Murdoch quem inventou e estabeleceu esta cultura de redação, na qual se deve fazer o que for preciso para conseguir uma matéria e na qual os fins sempre justificam os meios”.
A fita obtida por Bob Woodward deveria ser o desfecho da história de Murdoch, tanto no Reino Unido quanto nos EUA, para que ficasse claro que nenhuma instituição, nem mesmo o presidente norte-americano, está acima da democracia. Se Murdoch financiasse uma campanha presidencial exitosa para Petraeus com “o resto de nós na organização”, como disse Kathleen McFarland, ele teria demonstrado controle sobre todas as instituições democráticas norte-americanas, controle ainda mais seguro do que o exercido sobre a Grã-Bretanha.
Felizmente, Petraeus não desejava a presidência. O general estava contente com a ideia de tornar-se diretor da CIA.
“Está tudo montado”, disse a emissária referindo-se a Ailes, Murdoch e Fox News. “Nunca vai acontecer”, respondeu Petraeus. “Você sabe que nunca vai acontecer, não vai mesmo. Minha mulher pediria divórcio”.
Tradução: André Cristi
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