terça-feira, 30 de abril de 2013

Novo estudo aponta erros em 'base científica' das políticas de austeridade


Novo estudo aponta erros em 'base científica' das políticas de austeridade

Argumento de que há uma relação perniciosa entre alta dívida pública e crescimento do PIB, encampado por políticos conservadores, começa a ser derrubado na academia. Economistas da Universidade de Massachusetts acabam de publicar estudo que invalida os achados estatísticos de Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart (foto), os 'papas' daquela teoria.

O influente estudo de Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart sobre a relação negativa entre dívida pública e crescimento, publicado originalmente em 2010 na American Economic Review e com a versão preliminar no NBER, acaba de ser desbancado por economistas da Universidade de Massachusetts em Amherst. 

O estudo de Rogoff e Reinhart foi base para o também livro best seller “This Time Is Different: Eight Centuries of Financial Folly”. O argumento dos autores é o de que há uma relação perniciosa entre alta dívida pública e crescimento do PIB, o que foi imediatamente encampado por políticos conservadores como justificativa científica para os programas de austeridade fiscal. 

Mas outro recente estudo de Thomas Herndon, Michael Ash e Robert Pollin acaba de invalidar os achados estatísticos de Rogoff e Reinhart ao mostrarem que estes cometerem “erros” básicos de metodologia, além de “erros” ao utilizarem funções no Excel. Pior ainda, o “erro” de Rogoff e Reinhart no Excel alterou por completo a principal conclusão do estudo de que países com relação dívida pública sobre PIB acima dos 90% sofrem, em média, crescimento negativo.

A história é a seguinte. Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart, professores de Harvard, queriam avaliar a relação entre crescimento do PIB e dívida pública. Mas como ambos pesquisadores tem um viés ideológico evidentemente conservador, lhes interessava encontrar uma correlação negativa entre a razão dívida pública sobre PIB e a taxa de crescimento médio do PIB. E este foi o resultado que eles de fato encontraram ao analisarem vários países em várias décadas.

Rogoff e Reinhart separam os países em quatro subgrupos de acordo com a relação dívida pública sobre PIB: (1) abaixo de 30%; (2) entre 30% e 60%; (3) entre 60% e 90%; (4) acima de 90%. E perceberam que o crescimento médio do PIB era negativo (-0.1%) para os países no grupo com índice de dívida sobre PIB acima de 90%. Concluíram então que o acúmulo de dívida pública ocorre em detrimento do crescimento econômico. 

Rogoff e Reinhart não escreveram que há uma relação causal entre dívida e contração econômica. Limitaram-se a postular a correlação, sem implicar qualquer causalidade. Mas o faziam em entrevistas para jornais e para a televisão. Fora do mundo acadêmico, Rogoff e Reinhart afirmavam que de fato há uma relação causal entre dívida e retração do crescimento. 

Nada mais propício para os austeros de plantão que ansiavam por uma justificação científica e objetiva para a contração fiscal e redução da relação dívida-PIB. O achado foi utilizado diversas vezes no congresso dos EUA tanto por senadores como por deputados como prova cabal de que o governo deveria cortar gastos, em especial os gastos sociais.

Mas havia uma pedra no meio do caminho. O primeiro problema foi que vários outros economistas tentaram replicar os resultados de Rogoff e Reinhart, todos sem sucesso. Até que os autores tiveram que liberar seus dados e cálculos para dois economistas da Universidade de Massachusetts em Amherst, nomeadamente Michael Ash e Robert Pollin, os quais deixaram Thomas Herndon, colega de doutorado em economia, encarregado de checar os cômputos. 

Resulta que Herndon descobriu que Rogoff e Reinhart tinham cometido “erros” básicos ao utilizarem o Excel para calcular médias de crescimento do PIB, além de utilizarem pesos injustificáveis para as observações. No estudo original, Rogoff e Reinhart excluem arbitrariamente algumas observações cruciais e ainda dão o mesmo peso para observações de uma década e uma observação de um simples ano, o que acaba por viesar os resultados a favor da conclusão de que mais dívida se correlaciona com menor crescimento:

“We replicate Reinhart and Rogo ff (2010a and 2010b) and nd that coding errors, selective exclusion of available data, and unconventional weighting of summary statistics lead to serious errors that inaccurately represent the relationship between public debt and GDP growth among 20 advanced economies in the post-war period. Our finding is that when properly calculated, the average real GDP growth rate for countries carrying a public-debt-to-GDP ratio of over 90 percent is actually 2.2 percent, not -0.1 percent as published in Reinhart and Rogoff . That is, contrary to RR, average GDP growth at public debt/GDP ratios over 90 percent is not dramatically diff erent than when debt/GDP ratios are lower. We also show how the relationship between public debt and GDP growth varies signi ficantly by time period and country. Overall, the evidence we review contradicts Reinhart and Rogoff ’s claim to have identifi ed an important stylized fact, that public debt loads greater than 90 percent of GDP consistently reduce GDP growth.”
Rogoff e Reinhart, em bom português, usaram uma metodologia altamente duvidosa com exclusão seletiva de dados, manipulação injustificável dos pesos e, pior ainda, erro nos códigos das médias. Se corrigidos, os resultados apontam que países com relação dívida-PIB acima de 90% crescem em média 2.2% ao ano, e não -0.1%. 

O achado de Herndon, Ash e Pollin já ganhou repercussão internacional. Artigos no New York Times (aqui também), Businessweek, Financial Times, blog do Krugman (aqui, aqui, e aqui), Wall Street Journal, Bloomberg, Guardian etc. deram publicidade global para o fato de que as conclusões favorecendo a austeridade fiscal se assentavam sobre cálculos equivocados. Resulta que agora Rogoff e Reinhart já admitiram publicamente o “erro” (aqui também), mas não abrem mão do argumento de que a contração fiscal é necessária para obter maior crescimento. Bom, neste caso a ideologia da direita vence a realidade.

No final das contas, se utilizarmos os dados corretamente, haveria correlação entre dívida e crescimento? Em gráfico obtido por Herndon, Ash e Pollin, os autores utilizam todos os dados para todos os países e anos originalmente usados por Rogoff e Reinhart. Aparentemente há uma correlação negativa entre dívida pública e crescimento. Mas esta correlação é mera aparência, afinal a qualidade do ajuste (fitness) da regressão é muito baixa. Vejam como as observações se espalham ao redor da regressão, com R-quadrado = 0.04.

Uma questão central é o problema da causalidade. É o aumento da dívida que causa baixo crescimento, ou o baixo crescimento do PIB que causa aumento da dívida pública? O estudo original de Rogoff e Reinhart sugeria uma correlação, não causalidade. Mas o argumento foi tomado pelos políticos como uma evidência que maior endividamento causa menor crescimento. Mas não poderia haver causalidade reversa com baixo crescimento causando aumento da dívida pública? A teoria keynesiana nos fornece fortes razões teóricas para crer que a causalidade vai do baixo crescimento para o aumento da dívida pública.

Outro problema é o do significado da razão estoque sobre fluxo. Ao medir dívida pública sobre PIB estamos medindo o estoque total da dívida (em dólares) sobre o fluxo de valor agregado em um ano (em dólares por anos), o que nos deixa com um número puro por ano. Além disso, por que usar 1 ano como referência de tempo para a dívida pública? Por que não 10 anos? Não há nada especial em utilizar dívida por ano como um bom indicador de endividamento, pois muito desta dívida é de longo prazo.

“After all, debt (which is measured in currency units) and GDP (which is measured in currency units per unit of time) yields a ratio in units of pure time. There is nothing special about using a year as that unit. A year is the time that it takes for the earth to orbit the sun, which, except for seasonal industries like agriculture, has no particular economic significance.” – Robert Shiller

A retratação pública de Rogoff e Reinhart se resume ao argumento de que se a análise não reflete a realidade, pior para a realidade.

“Reinhart and Rogoff have admitted to a “coding error” in the spreadsheet that meant some countries were omitted from their calculations. But the economists denied they selectively omitted data or that they used a questionable methodology. [...] Reinhart and Rogoff, however, say their conclusion that there is a correlation between high debt and slow growth still holds. “It is sobering that such an error slipped into one of our papers despite our best efforts to be consistently careful,” they said in a joint statement. “We do not, however, believe this regrettable slip affects in any significant way the central message of the paper or that in our subsequent work.” - NYT
Ambos continuam a defender abertamente o ajuste recessivo via políticas de austeridade fiscal como solução para o baixo crescimento. Cabe então indagar sobre quem se beneficia com as políticas de austeridade.

Adendo:

Para aqueles que estiverem interessados em uma análise econométrica da relação entre crescimento e dívida pública, recomendo o excelente e curto artigo preparado por Arin Dube, também professor da UMass Amherst. Dube invalida a ideia de que mais dívida leva a menor crescimento, mostrando justamente o contrário: é o baixo crescimento do PIB que leva ao aumento do quociente dívida pública sobre PIB. O problema é o baixo crescimento, não a alta dívida.

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