Chipre: A troika cria o primeiro 'corralito' europeu
Chipre junta-se ao clube dos países sob a administração da troika. A população cipriota é submetida ao “apertar do cinto” para salvar os bancos privados, imprudentes e irresponsáveis, que perderam milhares de milhões especulando com a dívida grega. O artigo é de Jérome Duval, para o CADTM
Jérome Duval - CADTM*
O termo corralito refere-se à decisão tomada pelo governo argentino, no início de dezembro de 2001, destinada a pôr fim ao saque em massa de depósitos bancários (22 bilhões dólares em três meses), à fuga de capitais, ao congelamento de contas bancárias, à proibição de enviar dinheiro para o estrangeiro e a limitar os levantamentos de fundos a 250 pesos por semana.
Em Chipre, como no Estado espanhol, o modelo de desenvolvimento, com uma taxa de crescimento elevada na década de 2000, em grande medida devido aos setores da construção e do turismo, parece atingir os seus limites. Chipre está a ser abalado pelas políticas de austeridade da Grécia, pelos ataques especulativos e pelas pressões dos credores. Porém, a dívida pública cipriota só ultrapassa o nível exigido por Bruxelas (60 % do PIB) após estalar a crise na Europa, passando de 48,9% em 2008 para 71,1% em 2011. No terceiro trimestre de 2012, segundo o Eurostat, seria de 84 % do PIB e poderia ultrapassar os 109% do PIB este ano.
Por último, o governo cipriota já não precisa, como previsto, de 18 bilhões de euros para o período 2012-2016, mas de pelo menos 23 bilhões de euros. Apesar de ainda continuarem as negociações entre as autoridades cipriotas e russas sobre a reestruturação do empréstimo de 2,5 bilhões de euros concedido em 2011 a Chipre pela Federação Russa, a troika deu o seu veredito antes da aprovação dos Parlamentos nacionais: a austeridade em Chipre, como seria de esperar, será brutal, fatal e devastadora. Em troca de um empréstimo de 10 bilhões de euros (9 bilhões de euros da zona euro, através do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), e mil milhões do FMI), a troika impõe as suas recomendações habituais:
- aumento do tempo de trabalho, fazendo avançar a idade da reforma dois anos;
- redução de 4.500 funcionários até 2016;
- congelamento das pensões e dos salários até 2016;
- aumento do IVA de 17 para 19%, à razão de um ponto por ano em 2013 e 2014 (a taxa reduzida do IVA aumentará de 8 para 9%);
- aumento dos impostos/taxas sobre o tabaco, álcool, energia, transportes e combustíveis;
- cortes significativos na educação e na saúde...
Chipre junta-se ao clube dos países sob administração da troika. A população cipriota é submetida ao “apertar do cinto” para salvar os bancos privados, imprudentes e irresponsáveis, que perderam bilhões especulando com a dívida grega.
Com efeito, dos 10 bilhões de “ajuda”, apenas 3,4 mil devem servir para satisfazer as necessidades de financiamento do governo. 2,5 bilhões destinam-se a recapitalizar o setor bancário (a soma total necessária estima-se em 10,4 bilhões de euros) e os 4,1 bilhões que restam servirão de imediato para pagar a dívida quando o prazo vencer. Há que assinalar que o montante emprestado pela troika é mais ou menos equivalente à fortuna de 11,5 bilhões de dólares do multimilionário cipriota John Fredriksen. De acordo com a Forbes, as fortunas dos três maiores multimilionários de Chipre perfazem a quantia de 13,6 bilhões de dólares.
Mas há mais. Para satisfazer os credores, o país deve pagar 13 bilhões de euros, em vez dos 7 bilhões previstos em finais de março. Esses 13 bilhões suplementares (atualmente 75% do PIB anual da ilha) serão responsabilidade dos cipriotas que sofrem uma queda do poder de compra e veem a taxa de desemprego subir brutalmente de 3,7% em 2008 para 14% em fevereiro de 2013.
Chipre, esse paraíso fiscal com menos de 1,5 milhões de habitantes e onde as empresas não pagam oficialmente mais de 10% de impostos sobre os seus rendimentos, deveria comprometer-se a fazer subir esse imposto para os níveis da Irlanda, 12,5%. Uma escassa compensação devido à forte queda do imposto em nove pontos, já que era de 19% em 2000. Por outro lado, o programa de privatizações aumentou para 1,4 bilhões de euros e o banco central deve vender parte do ouro que possui em reserva por 400 milhões de euros.
A particularidade desta crise é que põe em causa a segurança dos depósitos bancários da população, uma vez que afeta a carteira dos cidadãos. O projeto inicial elaborado em março punha a hipótese de introduzir um imposto excecional de 6,75% sobre os depósitos bancários inferiores a 100 mil euros e de 9,9% sobre os depósitos superiores a esse patamar. Foi rejeitado pelo Parlamento em 19 de março de 2013. Após os deputados cipriotas impedirem a violação da sua própria lei, protegendo os ativos bancários inferiores a 100 mil euros, a UE propõe agora uma taxa de 60% sobre os depósitos superiores a 100 mil euros, segundo o FMI. Apesar do alegado controle sobre capitais e do encerramento dos bancos durante 12 dias em março, houve uma enorme fuga sob o olhar do BCE.
A situação lembra muito a crise argentina de 2001, quando foi decretado o corralito, em 1 de Dezembro de 2001 (manteve-se até 1 de dezembro de 2002), motivando a queda do governo de Fernando de la Rúa três semanas depois. O que aconteceu em Chipre, ainda que não represente mais do que 0,2% da economia da Zona Euro (o seu PIB anual ronda os 17,8 bilhões de euros) significa um salto qualitativo na Europa e representa a imensa possibilidade de estender mais além a crise da Zona Euro. Apesar de os recentes discursos do FMI apelarem para uma redução da austeridade, a instituição persiste e assina. O objetivo é controlar a aplicação das políticas de austeridade, mantendo os mesmos mecanismos de ajuste. A austeridade deve continuar custe o que custar, apesar do chumbo do Tribunal Constitucional, como aconteceu em Portugal, ou do "impasse" no Parlamento, como na Grécia.
O problema dos bancos cipriotas é a dívida grega, que os bancos do Centro lhes impuseram.
Os ativos do sistema financeiro cipriota, extremamente exposto à dívida grega, representam oito vezes o PIB do país. Em 2009 e 2010, os bancos cipriotas privados – entre os quais, os dois mais importantes, o Banco Laiki e o Banco do Chipre – investiram massivamente em títulos da dívida grega de alto risco, em busca de rendibilidade no mercado secundário (onde se negociam os títulos de dívida 'de ocasião'), ao mesmo tempo em que os bancos europeus tentavam, por todos os meios, livrar-se desses mesmos títulos.
O Deutsche Bank pode também desfazer-se desses títulos 'de vez' (de dívida grega de alto risco) para os voltar a vender a bom preço aos bancos de Chipre. Com a desvalorização dos títulos da dívida grega, negociada entre a troika e a Grécia, em dezembro de 2012, como condição para a libertação de uma nova fase de endividamento, aliviou-se a situação dos detentores de dívida grega e todo o sistema bancário cipriota sofreu enormes perdas. O Banco Laiki e o Banco de Chipre afundaram-se. Mais uma vez a população foi chamada a salvar o setor bancário privado, que perdeu bilhões, especulando de forma totalmente aberrante.
Tradução para o Esquerda.net: Maria da Liberdade, Revisão: Rui Viana Pereira
Em Chipre, como no Estado espanhol, o modelo de desenvolvimento, com uma taxa de crescimento elevada na década de 2000, em grande medida devido aos setores da construção e do turismo, parece atingir os seus limites. Chipre está a ser abalado pelas políticas de austeridade da Grécia, pelos ataques especulativos e pelas pressões dos credores. Porém, a dívida pública cipriota só ultrapassa o nível exigido por Bruxelas (60 % do PIB) após estalar a crise na Europa, passando de 48,9% em 2008 para 71,1% em 2011. No terceiro trimestre de 2012, segundo o Eurostat, seria de 84 % do PIB e poderia ultrapassar os 109% do PIB este ano.
Por último, o governo cipriota já não precisa, como previsto, de 18 bilhões de euros para o período 2012-2016, mas de pelo menos 23 bilhões de euros. Apesar de ainda continuarem as negociações entre as autoridades cipriotas e russas sobre a reestruturação do empréstimo de 2,5 bilhões de euros concedido em 2011 a Chipre pela Federação Russa, a troika deu o seu veredito antes da aprovação dos Parlamentos nacionais: a austeridade em Chipre, como seria de esperar, será brutal, fatal e devastadora. Em troca de um empréstimo de 10 bilhões de euros (9 bilhões de euros da zona euro, através do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), e mil milhões do FMI), a troika impõe as suas recomendações habituais:
- aumento do tempo de trabalho, fazendo avançar a idade da reforma dois anos;
- redução de 4.500 funcionários até 2016;
- congelamento das pensões e dos salários até 2016;
- aumento do IVA de 17 para 19%, à razão de um ponto por ano em 2013 e 2014 (a taxa reduzida do IVA aumentará de 8 para 9%);
- aumento dos impostos/taxas sobre o tabaco, álcool, energia, transportes e combustíveis;
- cortes significativos na educação e na saúde...
Chipre junta-se ao clube dos países sob administração da troika. A população cipriota é submetida ao “apertar do cinto” para salvar os bancos privados, imprudentes e irresponsáveis, que perderam bilhões especulando com a dívida grega.
Com efeito, dos 10 bilhões de “ajuda”, apenas 3,4 mil devem servir para satisfazer as necessidades de financiamento do governo. 2,5 bilhões destinam-se a recapitalizar o setor bancário (a soma total necessária estima-se em 10,4 bilhões de euros) e os 4,1 bilhões que restam servirão de imediato para pagar a dívida quando o prazo vencer. Há que assinalar que o montante emprestado pela troika é mais ou menos equivalente à fortuna de 11,5 bilhões de dólares do multimilionário cipriota John Fredriksen. De acordo com a Forbes, as fortunas dos três maiores multimilionários de Chipre perfazem a quantia de 13,6 bilhões de dólares.
Mas há mais. Para satisfazer os credores, o país deve pagar 13 bilhões de euros, em vez dos 7 bilhões previstos em finais de março. Esses 13 bilhões suplementares (atualmente 75% do PIB anual da ilha) serão responsabilidade dos cipriotas que sofrem uma queda do poder de compra e veem a taxa de desemprego subir brutalmente de 3,7% em 2008 para 14% em fevereiro de 2013.
Chipre, esse paraíso fiscal com menos de 1,5 milhões de habitantes e onde as empresas não pagam oficialmente mais de 10% de impostos sobre os seus rendimentos, deveria comprometer-se a fazer subir esse imposto para os níveis da Irlanda, 12,5%. Uma escassa compensação devido à forte queda do imposto em nove pontos, já que era de 19% em 2000. Por outro lado, o programa de privatizações aumentou para 1,4 bilhões de euros e o banco central deve vender parte do ouro que possui em reserva por 400 milhões de euros.
A particularidade desta crise é que põe em causa a segurança dos depósitos bancários da população, uma vez que afeta a carteira dos cidadãos. O projeto inicial elaborado em março punha a hipótese de introduzir um imposto excecional de 6,75% sobre os depósitos bancários inferiores a 100 mil euros e de 9,9% sobre os depósitos superiores a esse patamar. Foi rejeitado pelo Parlamento em 19 de março de 2013. Após os deputados cipriotas impedirem a violação da sua própria lei, protegendo os ativos bancários inferiores a 100 mil euros, a UE propõe agora uma taxa de 60% sobre os depósitos superiores a 100 mil euros, segundo o FMI. Apesar do alegado controle sobre capitais e do encerramento dos bancos durante 12 dias em março, houve uma enorme fuga sob o olhar do BCE.
A situação lembra muito a crise argentina de 2001, quando foi decretado o corralito, em 1 de Dezembro de 2001 (manteve-se até 1 de dezembro de 2002), motivando a queda do governo de Fernando de la Rúa três semanas depois. O que aconteceu em Chipre, ainda que não represente mais do que 0,2% da economia da Zona Euro (o seu PIB anual ronda os 17,8 bilhões de euros) significa um salto qualitativo na Europa e representa a imensa possibilidade de estender mais além a crise da Zona Euro. Apesar de os recentes discursos do FMI apelarem para uma redução da austeridade, a instituição persiste e assina. O objetivo é controlar a aplicação das políticas de austeridade, mantendo os mesmos mecanismos de ajuste. A austeridade deve continuar custe o que custar, apesar do chumbo do Tribunal Constitucional, como aconteceu em Portugal, ou do "impasse" no Parlamento, como na Grécia.
O problema dos bancos cipriotas é a dívida grega, que os bancos do Centro lhes impuseram.
Os ativos do sistema financeiro cipriota, extremamente exposto à dívida grega, representam oito vezes o PIB do país. Em 2009 e 2010, os bancos cipriotas privados – entre os quais, os dois mais importantes, o Banco Laiki e o Banco do Chipre – investiram massivamente em títulos da dívida grega de alto risco, em busca de rendibilidade no mercado secundário (onde se negociam os títulos de dívida 'de ocasião'), ao mesmo tempo em que os bancos europeus tentavam, por todos os meios, livrar-se desses mesmos títulos.
O Deutsche Bank pode também desfazer-se desses títulos 'de vez' (de dívida grega de alto risco) para os voltar a vender a bom preço aos bancos de Chipre. Com a desvalorização dos títulos da dívida grega, negociada entre a troika e a Grécia, em dezembro de 2012, como condição para a libertação de uma nova fase de endividamento, aliviou-se a situação dos detentores de dívida grega e todo o sistema bancário cipriota sofreu enormes perdas. O Banco Laiki e o Banco de Chipre afundaram-se. Mais uma vez a população foi chamada a salvar o setor bancário privado, que perdeu bilhões, especulando de forma totalmente aberrante.
Tradução para o Esquerda.net: Maria da Liberdade, Revisão: Rui Viana Pereira
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