domingo, 26 de maio de 2013

Ninguém quer os despojos de Videla


 

Sergio Ferrari
Colaborador de Adital na Suiça. Colaboração E-CHANGER
Adital
Tradução: ADITAL
Vida de ditador, morte em cárcere ‘comum’
* Que a Cruz Vermelha e a ONU abram seus arquivos
* Acelerar os julgamentos abertos e as condenações pendentes

Parque de la Memoria y monumento a los desaparecidos en Buenos Aires Foto: Sergio Ferrari
A morte do ex-general argentino Jorge Rafael Videla, no dia 17 de maio, reatualizou na opinião pública os anos trágicos da última ditadura militar (1976-1983). Trinta anos depois do fim desse Governo de fato, seu principal promotor, ideólogo e executor faleceu de morte natural aos 87 anos na cela do presídio de Marcos Paz, onde cumpria cadeia perpétua por centenas de crimes de lesa humanidade. Uma semana mais tarde, o destino de seus restos mortais –contestados pela mobilização de repúdio em sua cidade natal de Mercedes (Argentina)- prolonga a sanção e revive o "Nunca Mais”.
"A morte de Videla constitui um fato político importante na vida da Argentina”, declara Antonio Hodgers, parlamentar nacional suíço, presidente de seu bloco na Câmara de Deputados, que, quando criança, teve que ir ao exílio na Suíça, juntamente com sua família.
"Morreu como um ‘preso comum’ a mais”
"Como filho de desaparecido, a notícia me toca muito. Vejo em Videla a imagem de um dos responsáveis ideológicos do desaparecimento de meu pai. Talvez não o executor direto; porém, um dos principais estrategistas da perseguição contra os militantes sociais e os opositores”, ressaltou o parlamentar do Partido Verde.
Constato, assegura Hodgers, que Videla nunca fez uma autocrítica pública. "É um fato lamentável, considerando a magnitude dos fatos pelos quais foi responsável”.
É importante visualizar o lugar físico onde Videla morreu: uma prisão para detidos sociais, o que na Argentina se chama uma prisão "comum”, sem privilégios. É um símbolo de um processo longo, complexo; porém, dinâmico, profundamente democrático, de julgar aos responsáveis pela ditadura. Sem revanchismos pessoais e nem politiqueiros, mas pela via da justiça e da Constituição, insiste Hodgers.
A solidão do tirano
Lamentavelmente morreu "respeitando o pacto de silêncio feito por quase todos os repressores argentinos”, afirma Alfredo Vivono que, entre 2005 e 2007, foi Subsecretário de Direitos Humanos da Província de Santa Fé, Argentina.
O que complica o avanço "em esclarecer os fatos sobre os milhares de desaparecidos, incluída a vida e a identidade atual de mais de 400 ‘crianças apropriadas’, que foram roubadas de seus pais detidos em centros clandestinos de detenção”.
Consultado sobre a transcendência política do falecimento de Rafael Videla, Vivono é contundente: "não modifica a realidade política de nosso país, nem da região. Porém, tem um impacto significativo enquanto provoca reflexões que mobilizam a opinião pública, nacional e internacional, sobre quem foi o símbolo mais visível do terrorismo de Estado na Argentina”.
Vivono, ex-preso político, atua como querelante e testemunha em várias causas contra os responsáveis pela repressão nessa época em sua província. Insiste na "solidão política que acompanhou a morte do tirano”, abandonado pelos que o levaram ao poder.
"As associações empresariais mais poderosas do país, que promoveram o Golpe de Estado de 1976, não disseram nem uma só palavra, não publicaram nem um curto comunicado. Tampouco a Conferência Episcopal da Igreja Católica argentina, cúmplice nesses anos, por ação e omissão. Nem sequer os grandes meios de comunicação que festejaram na época a ascensão dos militares saíram hoje a defender o general falecido”.
O fato de que Videla morreu na prisão, condenado pelos crimes cometidos "...nos dá a paz e a serenidade que muitas vítimas diretas necessitávamos para confiar nas instituições e na democracia que estamos construindo”, reflete.
De sua análise surgem várias conclusões: "Constatamos que o trabalho e a perseverança dos organismos de Direitos Humanos, especialmente das Mães da Plaza de Mayo, deram seus frutos”. Não houve vingança, nem revanches: a sociedade argentina em geral e as vítimas da repressão acreditam na justiça, na Constituição, sem necessidade de que sejam criados tribunais ou leis especiais.
"Que as organizações internacionais abram seus arquivos”
"A justiça tardou; porém, chegou em meu país; o que, infelizmente, não aconteceu em muitas outras nações do mundo onde ainda há histórias ditatoriais pendentes”, ressalta David Andenmatten, argentino de origem suíça que, após passar mais de três anos na prisão durante a ditadura, conseguiu exilar-se na Suíça.
Andenmatten, atual dirigente do Sindicato de Serviços Públicos, em Genebra, ressalta como um dos principais desafios futuros poder concluir o julgamento às ditaduras, "Incluindo também a anterior (1966-1973), responsável por causas hoje reabertas, como a do Massacre de Trelew (1972), quando foram fuzilados 16 presos políticos após uma tentativa de fuga”. Por outro lado, "é essencial que os julgamentos abertos a centenas de repressores sejam acelerados. E que as condenações de cada um sejam pronunciadas sem demora”.
Não menos essencial, insiste o sindicalista suíço-argentino, "é recriar corretamente o contexto nacional e internacional, as causas e os verdadeiros responsáveis pela repressão e pelos Golpes de Estado. Não se tratava de militares patrióticos, como se apresentavam na época; mas, de braços armados sustentados pelos Estados Unidos, que tentaram destruir o movimento social que estava muito bem organizado e mobilizado em defesa de seus direitos”.
E conclui com um chamado à comunidade internacional: "Vendo que os máximos responsáveis pelo terror, como Videla, levam à tumba informações vitais, mais do que nunca é imprescindível que organizações como a Cruz Vermelha Internacional e a ONU abram seus arquivos”.
Segundo Andenmatten, esses arquivos contêm informações essenciais sobre essa etapa da história argentina. Por exemplo, em relação às visitas de missões internacionais às prisões. O que pode contribuir significativamente à reconstrução da memória coletiva, ao julgamento e ao castigo dos responsáveis e à justiça reparadora para as vítimas, conclui.
[*Sergio Ferrari, em colaboração com swissinfo.ch]
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A justiça e os direitos humanos
* Segundo fontes oficiais argentinas, somente em 2012, cerca de 400 responsáveis pela repressão ditatorial foram levados aos tribunais. Segundo diferentes fontes, os militares julgados poderiam chegar a 1.500. Milhares são as ex-vítimas que participam como querelantes ou testemunhas em centenas de processos.
* A maioria dos acusados são ex-militares e ex-policiais; foram acusados por crimes de lesa humanidade: sequestros, detenções ilegais, torturas, violação sexual, apropriação de menores, homicídios e desaparecimentos forçados. Há também alguns civis. Até o momento apenas um sacerdote católico foi condenado.
* Esses processos jurídicos que continuam se multiplicando em todo o país –incluindo agora responsáveis por certas prisões- foram reabertos a partir de 2006.
* Nessa data, o governo promoveu a declaração de inconstitucionalidade das leis de "Obediência devida” e "Ponto Final” que, promulgadas nos anos 80, haviam indultado aos responsáveis pela repressão.
* Em março de 2013, abriu-se um novo processo contra 25 responsáveis implicados no que se denominou Plano Condor, que estendeu e coordenou a repressão para toda a região sul-americana.
* Jorge Rafael Videla havia sido condenado em 1985 à prisão perpétua no Julgamento às Juntas Militares. Em 1990 foi indultado pelo então presidente Carlos Menem. Atualmente, havia recebido uma nova condenação perpétua e outra a 50 anos de prisão. Outras causas, entre elas a do Plano Condor, estão em processo.

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