Para intelectuais ouvidos pelo 'Estado', futuro dos protestos, que iniciaram em junho, ainda é incerto
Felipe Werneck
Felipe Werneck
Três meses após as grandes manifestações de junho, historiadores, cientistas políticos e sociólogos ouvidos pelo Estado têm opiniões distintas sobre o futuro dos protestos, que se mantêm com participação reduzida, e os efeitos da tática de ação violenta de um grupo de manifestantes. Houve consenso, porém, nas críticas à atuação repressiva da Polícia Militar.
Historiadores criticam atuação repressiva da PM
Para o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), as manifestações eram em boa parte espontâneas, multifocadas, socialmente heterogêneas, de ampla participação e com postura predominante não violenta. Já as de agora, segundo ele, são organizadas, unifocadas, socialmente homogêneas e de participação muito restrita, com postura predominante violenta. "Por sua natureza, os novos protestos estão fadados ao desgaste e ao desaparecimento, depois de terem corroído perante a opinião pública boa parte da legitimidade das belas manifestações de junho", avalia Murilo de Carvalho.
Professora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas, a historiadora e cientista política Dulce Pandolfi tem opinião diferente. Para ela, grupos como os adeptos do Black Bloc tendem ao isolamento, mas isso não significa que os protestos vão acabar. Ela não vê mudança no perfil das manifestações, mas um "afunilamento", com pautas mais setorizadas e menos difusas. "Essa descontinuidade faz parte dos movimentos sociais", diz Dulce.
O historiador Daniel Aarão Reis, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), avalia que o País vive um "ciclo longo" de manifestações. Mas há mudanças a ponderar e a interpretar, ressalva."As multidões cederam lugar a pequenas manifestações, quase todas de âmbito local, regional ou setorial. As reivindicações, em consequência, são locais ou setoriais. Não vejo isto como um 'refluxo', metáfora tão usual, mas como uma metamorfose, que me parece adequada, pois enraíza a proposta participacionista embutida nas manifestações", acrescenta Reis.
Para ele, as ações violentas de parte dos chamados Black Blocs merecem capítulo especial porque "evidenciam a desafeição e o desapreço que eles têm pelas cidades em que moram, fazendo lembrar as explosões de raiva das periferias parisienses e londrinas". "Se as respostas a este tipo de ação forem o 'pau puro', como recomendam os conservadores, não teremos dado um passo para a compreensão do fenômeno. Feita a ressalva, penso que depredações descriteriosas não contribuem para aumentar a audiência dos 'enraivecidos'." Já Carvalho afirma que os Black Blocs adotam "como tática de ação o uso da força e sabem que violam a lei, não por acaso escondem sua identidade".
Para Dulce, já havia um acúmulo de pequenas manifestações no País, motivadas por insatisfações em busca de cidadania nos mais variados segmentos, e a novidade foi ter explodido com tanta força e de forma tão diversificada. "Houve desde pais levando os filhos até coisas violentas, que assustam e afastam. Algumas pessoas até entendem, mas têm medo. Nesses grupos mais radicais também há uma diversidade muito grande", acrescenta Dulce. "Há desde o cara que está realmente querendo fazer arruaça, sem nenhuma ideologia por trás, o que está querendo se aproveitar da situação para saquear e o que quer destruir aquilo que considera os pontos nodais do Estado. Tenho a impressão de que isso contribuiu para um certo esvaziamento. Mas não dá para dizer apenas que são vândalos sem entender a razão. Nesse grupo há uma diversificação de atuação bastante diferenciada. Há aqueles que são conscientes de que estão fazendo um gesto político."
O sociólogo Luiz Werneck Vianna, professor da PUC do Rio, acredita que os protestos mais violentos "tendem a evanescer". "Essas depredações e ações ditas revolucionárias e anticapitalistas são influências filosofantes de setores da inteligência europeia que estão encontrando uma nova roupagem aqui. É uma planta exótica que não tem como se reproduzir bem", avalia Vianna.
Para ele, a participação caiu porque setores não organizados refluíram. "Os partidos começaram a ocupar lugar, especialmente os da esquerda mais radicalizada, além de movimentos novos tipo Black Blocs. Nossa sociedade não conhecia de forma tão presente esse movimento anarquista." Vianna diz que nem todos os movimentos de pressão direta sobre governantes vêm de grupos violentos e acredita que a escala dos protestos pode retomar o ritmo anterior.
Aarão Reis avalia que, para além de reivindicações específicas, as manifestações correspondem a uma demanda de participação política que está longe de ser satisfeita. "Assim, creio que vamos ter desdobramentos, como uma música de acordeão, abrindo-se para manifestações maiores, fechando-se em protestos locais e setoriais. O fato é que o pássaro saiu da gaiola e vai dar trabalho trazê-lo de volta."
A avaliação sobre a atuação da PM nas manifestações foi unânime. "A polícia tem errado sistematicamente, seja por excesso, seja por deficiência no uso da força", afirma Carvalho. Para Dulce, a ação tem sido lamentável. "É uma polícia muito classista. Acho que a violência do Estado tem um efeito mais perverso. Uma repressão forte assusta e também dá um sentimento de indignação. Ela intimida, mas produz uma revolta muito grande, sobretudo nos jovens. Ninguém foi para a rua protestar contra os Black Blocs, mas pode ir contra a PM", diz ela, citando a manifestação ocorrida na Favela da Maré, na zona norte do Rio, após a chacina de nove moradores no fim de junho.
Aarão Reis conta que acha graça quando se diz que policiais são 'despreparados'. "Ao contrário, eles são preparadíssimos para bater e matar. Está no DNA da PM, fundada lá no século XIX para pegar, bater e matar escravos. Na tradição autoritária de nossa República, a coisa só fez piorar. Agravou-se ainda mais durante a ditadura e os governos democráticos conciliaram e alimentaram o processo."
Para ele, uma sociedade democrática não pode ter uma polícia 'militar'. "Enquanto persistir este conceito, continuaremos convivendo com matanças e massacres. Perto dos que são cometidos pelos PMs, os atos violentos dos 'homens de preto' (Black Blocs) são brincadeira de criança. Finalizo com uma pergunta: quantas pessoas já foram feridas ou mortas pelos 'homens de preto'? Quantas a PM feriu e matou?"
Principal alvo dos manifestantes no Rio, o governador Sérgio Cabral Filho (PMDB), cuja popularidade despencou desde junho, "está em maus lençóis", diz Vianna.
Nenhum comentário:
Postar um comentário