Para
Laymert Garcia dos Santos o conflito de classes, em escala global, começa a
acontecer no meio digital. E parte da esquerda ainda não percebeu o
potencial politizador que se encontra ali.
Glauco Faria E
Igor Carvalho
Segundo Laymert
Garcia, “o caso Snowden é o último elo de uma cadeia que vem
vindo de várias outras que já entenderam o enorme potencial das redes, de politizar as
questões simplesmente pela circulação dos fluxos de informação. Por quê?
Porque se o Estado e o mercado podem saber tudo sobre a população,
explorando isso do ponto de vista do controle, por outro lado os movimentos
também podem.” A ponderação é de Laymert Garcia dos Santos, doutor em
Ciências da Informação pela Universidade de Paris VII e professor titular
do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da Unicamp, e remete à importância de se debater o funcionamento das redes
e sua relação com as ruas, algo que veio à tona com as manifestações de
junho no Brasil.
Para Laymert, o
advento do Wikileaks fez com que se prestasse mais atenção sobre
quais informações as elites gostariam que não fossem reveladas. “O conflito
de classes, em escala global, começa a acontecer
nas redes, porque existe uma política de controle e hierarquização da
informação nas redes, e, do outro lado, há gente trabalhando para a
desobstrução dos canais”, afirma. “E isso é democracia, porque se você
começa a fazer todo o fluxo de informação passar, as pessoas ficam sabendo
o que os de cima não querem que elas saibam.”
Eis a entrevista.
Como o senhor enxergou as
manifestações de junho, principalmente o envolvimento delas com as novas tecnologias?
As manifestações de junho
foram uma grande surpresa para mim porque, pouco menos de um mês antes das
manifestações, fiz uma palestra na PUC e introduzi dizendo
que tenho 65 anos, mas gostaria de ter 30, porque achava que essa nova
geração, no Brasil sobretudo,
tinha uma oportunidade como nunca tivemos na história. O país entrou no
mapa, aconteceu com a era Lula uma transformação social,
com a inclusão de 40 milhões de pessoas, mas também por conta de uma
política externa e cultural muito diferente do que tinha havido anteriomente.
Isso abriu uma oportunidade nova de o país buscar o rumo que tinha tentado
em 1964, mas, enfim, é a primeira vez que estávamos na cena mundialmente, e
isso muda tudo.
Queria ter 30 anos hoje
porque pela primeira vez não precisamos dizer “sim, senhor”, e isso dá para
as novas gerações, e para o futuro, uma abertura inédita na história
brasileira. Um pouco mais de um mês depois vieram as jornadas de junho, aí
pensei: “Ou estou completamente fora de sintonia sobre o que está
acontecendo, ou aquilo que estava dizendo continua valendo de alguma
maneira, mas preciso entender o que é esse descontentamento e isso que está
acontecendo nas ruas”.
Fiquei muito dividido
quando as jornadas começaram. Embora entendesse completamente a posição
do MPL[Movimento Passe Livre] e achasse que essas
reivindicações todas que apareceram nas primeiras manifestações eram
justas, por mais direitos, elas tinham uma coloração que me incomodava. E
me incomodava porque não conseguia situar politicamente ali. Mas por que
isso? Porque tinha a memória dos anos 1960. Como havia uma juventude tão
descontente se existia, na história recente, uma transformação tão grande?
E dava para perceber, na universidade mesmo, que a politização era muito
baixa, via isso entre os jovens.
À medida que o tempo foi
passando, como todo mundo, fui tentando entender o que estava acontecendo,
mas sobretudo buscando compreender o papel das redes sociais. Comecei a
achar que havia uma certa esquizofrenia no movimento, e essa esquizofrenia
aparecia da seguinte maneira: eram reivindicações que, em geral, pertencem
ao campo da esquerda, por mais democracia e direitos, portanto, no campo da
esquerda, mas que quando chegava na hora das manifestações, as
reivindicações eram verbalizadas com um tom que, no meu entender, era
pautado pela mídia, em especial a questão da corrupção do modo como a mídia
tinha trabalhado em demasia nos últimos anos.
Chamei de esquizofrênico
por isso. De um lado, você tem as reivindicações de esquerda, por direitos,
mas ao mesmo tempo com uma linguagem mista e que permitiu, inclusive, uma
tentativa de recuperação das jornadas pela direita. Para mim, essa
esquizofrenia se duplicava na relação entre novas tecnologias e velhas
mídias, porque mostrava a permeabilidade dos jovens à mídia tradicional e à
oposição programática que essa mídia tradicional tem com relação aos
governos de esquerda. Ela [mídia tradicional] é francamente reacionária e
francamente conservadora, considero que se trata praticamente um partido
organizado. Por outro lado, há uma utilização das novas tecnologias de uma
maneira muito contemporânea e de certo modo bem generosa, de esquerda, mas
também misturada com essa coisa de redes sociais. Apesar de saber utilizar
muito bem essa mídia para se mobilizar, a juventude não a usava para se
informar.
Penso que essa perspectiva
não esteja invalidada mesmo com o passar dos meses de julho e agosto, ainda
que tenha surgido um fantasma de uma possível recuperação das ruas pela
direita. Contudo, esse fantasma passou, e de certa maneira não colou,
apesar de em algum momento ter havido uma dubiedade bastante grande que fez
com que muita gente da esquerda se espantasse, sobretudo quem viveu 1964,
aquela coisa de “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” etc. Um outro
aspecto importante diz respeito ao envelhecimento do discurso politico
tradicional e da própria mídia, apesar do efeito que causou sobre os
manifestantes, em lidar com o assunto. O caráter jurássico da televisão e
dos jornais para lidar e cobrir os assuntos ficou evidente. Isso foi um dos
efeitos positivos dessa história, por exemplo, se a Globo tem
que pedir desculpas, não importa se é hipócrita ou não, é porque alguma
coisa aconteceu e arranhou a imagem dela.
Se a Globo começa
a pensar que ela precisa ter o Fernando Meirelles para
diretor-geral, é porque eles sentiram, com as jornadas de junho, que de
repente a linguagem, o modo de abordar ficaram visivelmente superados, e
para mim o ponto onde isso apareceu com mais vigor foi na incapacidade de
sequer entender o que aqueles meninos do Mídia Ninja queriam dizer. Tentaram
criminalizá-los, dizer que era uma mídia chapa-branca, que recebia verbas
públicas… O que aconteceu de fato ali, que foi bem importante, é que as
repostas deixavam claro que tinha uma outra lógica funcionando, inclusive
de trabalho em rede, de cooperação e de colaboração, que escapava do
esquema empresarial.
Um dos fatores importantes
das jornadas é que houve um update da juventude em relação
a uma série de questões, entre elas a redescoberta da rua, que depois vai
aparecer nessa espécie de fragmentação de manifestações e reivindicações.
Fragmentação que não acho ruim, pois é interessante que as pessoas saibam
que elas podem – já podiam, mas não sabiam que podiam – se mobilizar. A
questão da rua mudou, mas houve uma politização que começa a acontecer em
relação aos próprios meios digitais. Se a passagem do Fora do Eixo para
a Mídia Ninjaacontece nesse momento não é por acaso; o que
antes era uma prática cultural passa a ser uma prática cultural e política
ao mesmo tempo, porque abrange uma compreensão sobre fazer política de um
outro modo.
Essa questão não está
ligada justamente a esse caráter esquizofrênico? Às vezes as pessoas foram
lá pautadas pela mídia tradicional mesmo sem saber, e, quando aparece um
microfone da Globo, rejeitam essa mesma mídia tradicional. Hoje, observamos
que as coberturas ao vivo das manifestações são feitas de cima, de prédios
ou helicópteros ou de jornalistas sem identificação, enquanto outras mídias
estão no chão, em meio à multidão…
Por isso disse que era esquizofrênico.
Por um lado, aquilo que era reivindicado era uma pauta de esquerda, mas a
linguagem ainda estava ligada a uma cabeça permeável a essa mídia, e uma
das coisas boas que aconteceu é que houve uma politização aí, com relação à
própria mídia, e uma distância desse discurso que era um modo de expressão
dominante, sobretudo da classe média. Tem várias nuances, quando falo das
manifestações, me refiro às grandes que aconteceram nas cidades maiores,
que pegavam uma faixa grande de classe média. Porque, desde o começo, se
você observava o que se dizia na periferia é “aqui a bala não é de
borracha”. Essa foi uma das primeiras coisas que apareceu em relação à
repressão policial no centro, a crítica sobre o papel da polícia, o quanto
a PM é uma herança da ditadura e a necessidade de se discutir essa questão
e modificar a forma como é pensada a segurança…
Existe uma ruptura também
no discurso da imprensa, que chegou a defender em editoriais a repressão e,
quando seus repórteres foram atingidos pela polícia, passaram a adotar
outra postura.
Foi aí que se tornou
impossível a repressão das manifestações. Enquanto você está fazendo isso
na periferia, tudo bem, não pode fazer onde estão os “nossos filhos”… É
como já se disse em relação ao nazismo, enquanto solução de extermínio,
genocídio, era feita nas colônias, tudo bem, mas fazer isso no coração da
Europa não dá. A lógica é a mesma.
No debate que o senhor
participou na USP o senhor falou sobre “vandalismo seletivo”…
Houve num certo momento
uma tentativa de se fazer uma distinção os manifestantes, havia os
“palatáveis”, como aquele que se enrola na bandeira e a Veja vai
fotografar como se fossem os verdadeiros manifestantes porque estão lutando
contra a corrupção, tentando fazer colar no governo do PT o
carimbo da corrupção, uma questão classe média. Do ponto de vista
conservador havia essa distinção, de um lado, há o bom manifestante; do
outro, o mau, que é o vândalo, indistinto, é todo mundo que quebra alguma
coisa. Conversando com gente que conhece a periferia, os manifestantes que
vinham de lá, percebi que havia uma diferença entre os chamados
“violentos”, e que não era possível colocar todos no mesmo bloco. Havia
agentes provocadores que entravam nas manifestações e que procuravam
atingir as instituições, mas com quebradeiras indiscriminadas, e aqueles
que chamei de ”destruidores seletivos”, que queriam atingir os símbolos do
capital, não estavam atacando qualquer coisa, mas visavam agências de
automóvel, bancos e alguns símbolos do capital global, retomando um pouco o
que acontece desde Seattle [em 1999].
Nas primeiras edições do
Fórum Social Mundial, não era incomum ver a polícia protegendo o
McDonald’s, ou seja, protegendo o patrimônio.
A questão do patrimônio…
Lembro que um dos grandes “escândalos” em uma das primeiras manifestações
foi o ataque a uma agência de automóveis, no mesmo dia em que houve uma
intervenção militar na Maré, em que morreram nove pessoas. E o escarcéu foi
em torno da agência de automóveis. Se tem, por um lado, uma espécie de
violência seletiva, por outro tem de ser sempre lembrado que a questão do
patrimônio é mais sacrossanta na visão da mídia tradicional e dos
conservadores, e a vida das pessoas, não. Na Maré, ninguém levantou o dedo
para apontar que havia ocorrido um verdadeiro massacre.
São essas nuances que é
preciso observar para não condenar a violência em bloco, porque existe um
certo tipo de violência compreensível e talvez até defensável. Entendo
perfeitamente porque ouvi relatos de pessoas que conheciam jovens de
periferia que participaram de algumas das ações de violência e que estavam
dando o troco por aquilo que recebem todo dia na periferia. Quando existe
um momento em que se pode revidar no centro da cidade, entendo, porque
sabemos como a periferia é tratada por governos como o do Alckmin, em
São Paulo, ou no Rio de Janeiro. A gente sabe como é.
A questão da segurança
precisa ser rediscutida, e por isso gostei da capa da Fórum [125]
que dizia: “Polícia não pode ser militar”, fazendo uma dissociação que é
fundamental. Muito das outras impunidades são herança de uma impunidade na
qual existe uma categoria de cidadãos que está acima da lei, e não é só o
agente do grande capital, mas está representada no exercício da violência
aberta contra a população.
Enquanto não houver uma
discussão de fundo sobre a violência que é exercida contra os índios, desde
1500, um genocídio… Tem de colocar esse pacote em cima da mesa, assim como
o pacote da Lei de Anistia, é necessário responsabilizar aqueles que
na ditadura torturaram, essas pessoas têm de ser punidas. É preciso colocar
a questão da segurança mostrando que a polícia não pode tudo, porque também
tem de obedecer à lei. Enquanto não acabar essa impunidade, acho difícil
que as outras impunidades acabem, porque já se estabelece que há gente que
está acima da lei e gente que tem de obedecê-la. Não é possível dizer que
se está em uma democracia política, e não estou nem falando social e
econômica.
Ou seja, essa seria talvez
uma das principais questões a ser tratada, também decorrente das
manifestações, começarmos a remover esse entulho autoritário?
Sim, temos de começar a
remover esse entulho autoritário, para além das reivindicações específicas.
Essa é uma questão de fundo, e temos de levar até o fim o tema da
segurança, o genocídio contra os índios… E a outra questão é a das mídias,
da mídia velha que ficou patente, e isso é patente, e a relação da
juventude com as novas tecnologias. Isso precisa ser trabalhado.
Os manifestantes não
aceitam, por exemplo, a Rede Globo nas manifestações, mas os marcos
regulatórios das comunicações e da internet ainda não se tornaram bandeiras
ativas nas ruas.
Quando comecei a ver
algumas manifestações de “Fora Globo” e depois, ainda, manifestações na
frente da emissora, paralelamente corria o caso do [Edward] Snowden. No
início as questões estavam totalmente dissociadas e depois se juntaram,
comecei a prestar mais atenção nele do que no outro pedaço, porque percebi
que aquilo era histórico. Quando começaram as manifestações na porta da
Globo, comentei aqui em casa: Será que não era mais importante haver
manifestações pelo marco regulatório? Será que é mais importante atacar a
mídia velha ou já assumir a discussão da regulação das novas mídias, porque
é com elas que está o futuro, não está com a imprensa escrita e nem mesmo
com a televisão. Será que não é na questão das redes que estaria a questão
principal e a briga do marco regulatório? Até porque existem setores do
governo que são bastante permeáveis aos interesses das teles, da televisão
tradicional, que estão, inclusive, emperrando no Congresso a votação dessa
lei.
Existe em vários setores
do governo…
Claro. Mas parecia que
ainda não era pauta, e de certo modo ainda não se tornou uma pauta política
dos jovens, e aquele momento era muito importante para se tornar uma pauta
dos jovens, porque juntou tudo quando as revelações do Snowden chegaram
aqui, e principalmente quando a presidenta da República tem sua comunicação
espionada. Não dá mais para invocar a explicação que eles deram, de que o
motivo da bisbilhotagem era só por razões de terrorismo. Torna-se
absolutamente necessário um marco que regule a internet, que seja pela
proteção da privacidade e que possa se estabelecer uma política digital,
necessária até por questões de soberania.
Por outro lado, é preciso
que haja uma pressão da sociedade civil e sobretudo dos jovens no sentindo
de entender que a questão da defesa da privacidade é política, e é
extremamente importante não para você colocar sua fofoca em dia pelo Facebook, o
que precisa se defender é uma outra lógica de operação em rede. Essa
lógica, de certa maneira, já vem sendo trabalhada no Brasil desde o começo
do governo Lula, o Ministério da Cultura do Gil tinha uma
estratégia em relação a isso, unir diversidade cultural e cultura digital.
Por que isso?
Justamente por ser
potência com potência. Potência das novas tecnologias com uma potência de
uma cultura popular forte que existe no Brasil, mas que não encontra canal,
porque os canais estão estrangulados e dominados por uma produção cultural
que não é feita para a população. Ou ela é feita para a elite ou é feita
com o objetivo de massa e de indústria cultural, de exploração comercial.
Mas a riqueza da cultura popular não é engatada positivamente de tal
maneira que possa se desenvolver e criar condições não só para a ampliação,
inclusão cultural, mas para que esses jovens possam encontrar uma inserção
social através da produção de cultura. O Gil viu isso muito claramente e
fez disso uma estratégia, reconhecida internacionalmente, porque nós éramos
um dos países que estavam na ponta na relação entre cultura e tecnologia, e
na ponta do entendimento da possibilidade que o digital traz, inclusive na
política, trabalhando na lógica cooperativa, daquilo que escapa da
propriedade intelectual, do software livre, do Commons.
Não é por acaso que o
sujeito que inventou o “www” [Tim Berners-Lee] disse que o marco
regulatório brasileiro, se aprovado, será o mais avançado do mundo na
questão da proteção das liberdades individuais. Por que ele é o mais
avançado? Justamente porque já tem um caldo cultural, conversei com alguns
desses grandes advogados americanos que trabalham na questão do Creative
Commons, do software livre, e eles achavam que tem uma política de ponta no
Brasil, uma elaboração feita… Depois que entrou o governo Dilma, isso deu
uma arrefecida, veio a Ana de Hollanda [ex-ministra da Cultura], que foi um
retrocesso e ainda estamos em processo de retomada. Dá para entender o que
eu digo?
Agora, com o fato de os
americanos terem feito o que fizeram [espionagem na NSA], temos
uma oportunidade de ter uma política de Estado que é crucial, porque é o
futuro. A questão do digital é o futuro, não tem volta. Se não estivermos
preparados para isso, não estamos preparados para essa autonomia que
estamos começando a desenhar, que começou há dez anos, em 2003, e é nessa
autonomia relativa que temos de navegar. E pude perceber porque acompanhei
de perto, nas ações do Ministério da Cultura, que existia uma sintonia
forte entre a nova diplomacia brasileira e o que era a visão estratégica de
cultura do Gil. Um entendimento forte em relação a qual
era o papel do Brasil na América Latina, seu papel no mundo, que diferença
poderíamos fazer, já existe um pensamento no Brasil, uma prática e um conhecimento
acumulado que permite que isso tenha vazão, e essa luta da cultura e da
tecnologia precisa ser reconhecida como pauta mesmo.
Dentro dessa sua ideia de
entender o digital como o futuro e remetendo um pouco às manifestações. Nós
tínhamos esse setor do Gil, com o Juca Ferreira, no governo Lula, que tinha
esse entendimento muito claro do papel da tecnologia aliada à cultura. Mas
as manifestações também não mostraram para certos setores que estão
analógicos demais? Ou seja, nossos partidos de esquerda, muitos sindicatos
e movimentos sociais não tratam desse tema ainda.
Concordo plenamente com a
análise que você faz, tem uma questão que para mim é complicada, a
incapacidade que governos do PT tiveram em lidar com a
questão da mídia. De certo modo, ela permaneceu intocada, até quando houve
momentos em que alguma coisa de mais forte poderia ter sido feito, quando
a Globo fez uma aposta errada no mercado financeiro e
entrou em uma situação de crise. Ali havia um flanco aberto, mas o
governo Lula foi lá e bancou, sem colocar condições.
Isso continua até hoje. Em
parte, isso se deve ao fato de a esquerda brasileira nunca ter feito a
crítica de fundo da mídia. E nem da tecnologia. A posição de esquerda de
partidos, sindicatos etc. é de que os meios são neutros e tudo depende de
quem se apropria dessa técnica e, portanto, quando chegar o momento de a
esquerda estar no poder, se faz uma inversão de signos. Isso é o máximo que
a esquerda pensou sobre essa questão, e há muitos anos venho pensando e
batalhando por um outro entendimento, porque não é possível você considerar
a tecnologia como algo meramente instrumental, quando ela modifica
completamente todos os tipos de relação. A tecnologia, sobretudo depois da
virada cibernética, mudou a vida, o trabalho e a linguagem. Ou seja,
mudaram as relações. Nessas condições, se você não fizer uma crítica de
fundo, vai acabar fazendo aquilo que critica em seu adversário, vai fazer
isso achando que colocou um conteúdo de esquerda, mas as práticas serão as
mesmas. Assim, vai ser tão manipulatório e antidemocrático quanto antes e,
de certo modo, desconhecendo o próprio potencial que a tecnologia traz.
Por exemplo, voltando um
pouco, há uma questão que me espantou, que mostra como se pode ao mesmo
tempo estar no jogo não sabendo que se está no jogo. Nas grandes
manifestações, em junho, todo mundo se volta para o Estado para ver qual
será a reação deste Estado. A Dilma vai para a televisão e
faz uma proposta de uma Assembleia Constituinte específica para a reforma
política. Ela deu uma resposta política que era absolutamente crucial,
porque respondeu a uma demanda de poder dos movimentos nas ruas, com algo
que ampliava a participação em poder, já não seria o Congresso o ator
principal dessa operação. E foi interessantíssimo, bastante elucidativo,
porque, ao fazer essa proposta, os conservadores e a classe política
inteira se mobilizaram para boicotá-la, primeiro para transformá-la em um
plebiscito para que nada acontecesse. Esses setores estão no seu papel,
quem não está em seu papel são os manifestantes, que pediam mais poder e,
quando você tem a autoridade máxima do Estado acenando e dizendo: “Vamos
nessa?”, o outro lado não responde.
Não houve manifestações
para isso e nem um entendimento sobre o que significava esse gesto. Ouvi
gente dizendo: “Ah, mas era um cálculo político”. Não importa. As ruas
emitiram um sinal, e a Dilma emitiu um outro sinal em
resposta num sentido de ampliação da democracia como nunca havia acontecido.
Os setores da direita imediatamente souberam ler o que estava em jogo, e os
manifestantes não souberam. Por quê? Despolitização? Não souberam avaliar?
O que aconteceu? Isso me fez pensar que as reivindicações do movimento são
restritas, de certa maneira têm um certo fôlego, que não é muito grande, e
sendo atendidas algumas reivindicações, você consegue esvaziar. De qualquer
maneira, se perdeu uma oportunidade naquele momento, havia uma abertura
para uma potência, que não se concretizou.
Para mim, essa perda de
oportunidade diz muito sobre a leitura de campos de forças e do
entendimento sobre o que é este jogo de forças. Em relação às novas
tecnologias, para o PT, para os sindicatos e movimentos
sociais, ainda não caiu a ficha da sua importância e que isso pode ser
trabalhado de uma outra lógica, colocando em xeque políticas de controle
global. O caso Snowden é o último elo de uma cadeia que
vem vindo de várias outras que já entenderam o enorme potencial das redes,
de politizar as questões simplesmente pela circulação dos fluxos de
informação. Por quê? Porque se o Estado e o mercado podem saber tudo sobre
a população, explorando isso do ponto de vista do controle, por outro lado
os movimentos também podem, e isso o Wikileaks começou a fazer, a prestar
atenção sobre quais informações os super-ricos querem suprimir.
O conflito de classes, em
escala global, começa a acontecer nas redes, porque existe uma política de
controle e hierarquização da informação nas redes, e, do outro lado, há
gente trabalhando para a desobstrução dos canais. E isso é democracia,
porque se você começa a fazer todo o fluxo de informação passar, as pessoas
ficam sabendo o que os de cima não querem que elas saibam. É o que está
acontecendo com o Snowden de novo. Isso a própria tecnologia permite como a
lógica de funcionamento em rede auxilia na distribuição da informação. O
que as pessoas não entendem de jeito nenhum é que a informação é a
diferença que faz a diferença, e também é o valor do capitalismo
contemporâneo.
Quando a informação se
tornou valor, e isso começou na década de 1970, a questão se colocou: “Como
ganhar dinheiro com a informação?”. Porque a informação não tinha preço.
Foi reelaborada e inventada uma coisa que se chama direito de propriedade
intelectual, que não é só uma extensão do direito autoral e do direito de
invenção da propriedade industrial, é muito mais do que isso. É o que
alguns especialistas chamam de “a última enclosure”, o último cercado que
começou na Inglaterra com o começo do capitalismo, quando se cercou a
terra.
Agora vamos criar um que
vai cercar essa unidade mínima que é a diferença que faz a diferença, para
garantir a exploração desse valor como unidade mínima, e, ao mesmo tempo,
com um alcance global. A lógica das redes, de seu funcionamento e aperfeiçoamento,
é colaborativa, e, sendo colaborativa, ela escapa, é da sua própria lógica
que as informações circulem. Se não circulam é porque começam a colocar
gargalos para cercar e fazer a captura dentro do sistema que permite que
isso vire uma propriedade. A esquerda ainda não entendeu o alcance que isso
tem como luta política. Se pegarmos, por exemplo, esse sistema
anglo-americano de espionagem, porque são americanos, mas os ingleses estão
acoplados, como eles chamam as primeiras operações por meio desses sistemas?
Vão dar os nomes das primeiras batalhas imperialistas, tanto dos EUA quanto
da Inglaterra. Por quê? Porque começou, em outro plano, um outro tipo de
imperialismo, e se você não estiver preparado para lutar neste outro plano,
como vai perceber o que está em jogo? Existe uma guerra, hoje, no mundo
digital, mas é real também porque a dimensão virtual da realidade é tão
real quanto a física. Mas a ficha ainda não caiu que esse conflito está lá,
e é claro que isso precisa ser entendido, se tornar uma questão política de
ponta. Ainda não vi as pessoas se mobilizando para defender o marco
regulatório da internet; inclusive, se a gente fizer isso, ou vier a fazer
num futuro próximo, vamos ser modelo para outros países que estão com o
mesmo problema. Mas precisamos fazer.
Não se faz democracia sem
informação, e a maneira de fazer democracia atualmente é expondo, para os
ricos, aquilo que eles fazem para o resto da população. Se eles podem fazer
tudo e levantar tudo sobre a população, e estão o tempo inteiro se
protegendo e protegendo essa informação, sobretudo para destruir aquilo que
não deve ser conhecido, os caras que aparecem, de certa maneira, e levantam
esse movimento, mostram como essa lógica de captura funciona, estão
trabalhando para uma desobstrução de canais, algo absolutamente
fundamental. Só pela desobstrução de canais e por uma luta entendendo o que
é a propriedade intelectual e o que é fechar a informação para uma
apropriação é que você vai poder lutar no futuro, porque não se pode mais
voltar para trás. Quando se observa a geração de agora, de 20 anos, eles
não conseguem nem lembrar, aliás, nem conseguem saber o que é o mundo sem
internet. Nós também não. Algum de nós consegue viver sem internet? Claro
que não.
Esse campo, esse fluxo das
redes, já se constituiu num campo de batalha para as grandes potências,
para o grande capital também, mas muita gente, inclusive da esquerda, ainda
não captou isso. A gente pode dizer hoje que as redes e as novas
tecnologias são essa nova expressão da luta de classes, só que ninguém
enxergou ainda?
Não é que há um
determinismo tecnológico, não é essa a questão, se essas máquinas existem é
porque as forças produtivas se desenvolveram a ponto de criar essas
máquinas. Mas elas colocam a luta política em outro patamar, e esse outro
patamar não pode mais deixar de ser levado em conta porque a luta vai se
passar lá. Não só lá, mas não é possível entender as ruas hoje, no Brasil e
em outros países, sem entender o binômio redes e ruas, com suas
especificidades. O modo como o movimento se dá nas redes não é exatamente o
mesmo que se dá nas ruas, a relação rede-rua é que tem de ser pensada
junto, na sua articulação, e isso é política. Chamo isso de tecnopolítica
porque não é mais possível pensar a política sem a tecnologia junto.
Estamos vendo agora na política internacional, em que se discute aquilo que
se passa nas redes.
Mas ela ainda é
excludente…
Claro que é excludente, e
se você quiser expandir a democracia política no país, tem de ter banda
larga pra todo mundo e com preço acessível, mas tem de ser uma política de
Estado. Já devia haver uma diretriz nesse sentido, porque o acesso às
comunicações no Brasil é muito caro, não só a banda larga como a telefonia
celular é extremamente cara para uma qualidade ruim, a relação qualidade-preço
é absurda, e isso revela que existe muito caminho para ser trilhado aqui. É
preciso garantir o acesso para a população, mas também trabalhar a educação
digital dessas pessoas, e acho que foi isso que o Gil sacou, que podia
fazer uma relação entre riqueza cultural e um povo sem acesso. O mais
importante é abrir canais novos, e o potencial que a pessoa tem na
periferia encontra uma maneira de realizar aquilo, não se torna só um
consumidor de uma cultura que vem de cima para baixo. É uma diferença
enorme. E até a dependência em relação à mídia velha vai sendo cada vez
menor.
Em relação à educação,
existe também a questão do trabalho imaterial, que começa a ganhar
importância; não sei se é possível isolar, mas como isso modifica a luta
dos trabalhadores, dos sindicatos e como entra a questão educacional nesse
sentido?
A virada cibernética
começou nos anos 1950 nos laboratórios, e nos anos 1970, as máquinas
inteligentes começaram a entrar, com os computadores pessoais, em todos os
setores, na vida social, na produção, em tudo. Houve uma alteração que é
crescente, e cada vez mais profunda, da vida e do trabalho das pessoas,
afetou o modo como se trabalhava, instaurando o que muitos chamam,
inclusive, de crise da sociedade de trabalho. Porque as máquinas começaram
a substituir não só a força física, como era no século XIX, com as máquinas
a vapor substituindo quem fazia a força motora, mas passou a fazer todo
tipo de trabalho que não é o de invenção, que a máquina não é capaz de
criar ela própria. Fora esse trabalho, a substituição do trabalhador pela
máquina é cada vez maior, tanto que vemos, desde que isso começou, um
paradoxo enorme no qual todos os governos do mundo dizem que precisam
aumentar o nível de emprego, e fomentam políticas que substituem os humanos
pelas máquinas. Você diz o tempo todo que vai lutar pelo aumento do emprego
e, ao mesmo tempo, implanta uma política que elimina o trabalhador e põe
uma máquina no lugar dele.
Claro que não é culpa das
máquinas, e sim das relações sociais, pois se elas ocupam o lugar dos
humanos, eles poderiam ser liberados e preparados para fazer o trabalho que
elas não podem fazer. Mas esse desenvolvimento é usado contra o
trabalhador, fazendo com que antes ele fizesse uma greve por melhores
condições de trabalho e depois da era cibernética, que ele pedisse pelo
amor de Deus pra trabalhar. Essa mudança é o que os especialistas chamam de
crise da sociedade do trabalho. Hoje a precarização é tal que você luta
para manter o seu trabalho. Ao mesmo tempo, essa nova situação cria
condições para que outro tipo de trabalho possa acontecer, de caráter
colaborativo, escapando dessa lógica.
É necessário que os
sindicatos, os trabalhadores discutam isso, quais são as positividades que
podem ajudar para não transformar isso em um ludismo, uma briga contra a
máquina. Por outro lado, tem de haver uma educação que já integre essa
frente de transformação digital porque o mundo se transformou em algo no
qual a dimensão digital é incontornável, e é preciso que a população seja
educada pra isso. Qual o problema principal depois que você consegue o
acesso? É que é necessário ter uma educação para que, dentro daquele fluxo
gigantesco de informações, você possa ter parâmetros para discriminar a
informação que vai ser boa para você. Não é só o acesso físico, se não
tiver critério para se politizar dentro disso, por exemplo, você vai usar a
máquina como uma televisão. Usa 1% dela, e no que ela tem de pior.
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