Somos treinados a concordar com
coisas que não fazem sentido.
Por exemplo, pagamos um Mineirão dia, em juros
da dívida, e achamos que a
Copa é o problema.
Os barões ladrões que rebaixam o Brasil
A agência Standard & Poors, uma das que fazem classificação de risco de países e empresas, alterou a nota do Brasil para pior: de BBB para BBB-.
E se alguém acha que esse é um debate econômico, está redondamente enganado. A economia continua sendo um assunto importante demais para ficar restrito aos economistas.
A elevação ou o rebaixamento da nota de um país são entendidas, mundo afora, como um sinal do quanto um país é rentável e confiável.
Confiável segundo agências de classificação especializadas em dizer aos grandes financistas internacionais onde investir seu dinheiro para obter maiores lucros, com a garantia de que não tomarão um calote.
A Standard & Poors foi criada no século XIX, nos Estados Unidos, por Henry Varnum Poor, em plena época dos chamados barões ladrões.
Os grandes investidores que Henry Poor avaliava e recomendava ganhavam dinheiro com ferrovias, siderúrgicas e empresas de petróleo.
Uma parte significativa dos lucros desses magnatas vinha da apropriação de terras e outros ativos públicos e da arte de usar e roubar o dinheiro de pequenos investidores desavisados, que depositavam suas economias no nascente mercado de ações.
Esses barões ladrões do século XIX não eram tão diferentes dos mais recentes, que causaram a grande crise financeira de 2008 e 2009. Todos bem recomendados pela Standard & Poors.
A avaliação de risco do Brasil basicamente expressa o quanto o país continua sendo um dos paraísos mundiais do rentismo, a mágica de ganhar dinheiro com o trabalho dos outros. Quanto mais a política econômica de um país é ditada pelos interesses dos rentistas, melhor a nota.
Para não ser rebaixado pelas agências, um país precisa rebaixar sua política econômica. Tem que seguir uma receita orientada pelo objetivo de fazer crescer o volume de dinheiro movimentado pelas finanças, e não o de fazer crescer o país.
E ainda tem gente que acha que nosso grande problema é a Copa
Se o Brasil sofreu o rebaixamento de um único pontinho, “o que eu tenho a ver com isso?”, pode e deve perguntar o cidadão. Como diria o velho Brecht, tem a ver com o custo de vida, o preço do feijão, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio. Não deveria ter, mas tem.
Para dizer a verdade, esse rebaixamento tem a ver até com a Copa do Mundo de futebol, pois, enquanto tem gente preocupada, com razão, com o custo dos estádios, esqueceram-se do principal.
Para se ter uma ideia: o País vai gastar cerca de 8 bilhões em estádios. É, de fato, muito dinheiro. Mas o analfabetismo econômico ajuda todo mundo a se esquecer de fazer a conta que importa.
O Brasil gastou, em 2013, R$ 248 bilhões com o pagamento de juros, segundo o Banco Central. Pois bem, dividindo esse valor pelos 365 dias do ano, pagamos mais de R$ 679 milhões por dia.
Vamos comparar com a copa? Dá quase para construir um estádio do Mineirão por dia. Aliás, registre-se que o Mineirão só tem R$11 milhões de dinheiro público envolvido em seu financiamento. O restante será pago pela iniciativa privada. Dois dias de juros da dívida pagam mais de um Maracanã.
E ainda tem gente que acha que a copa é o absurdo dos absurdos do gasto em dinheiro público. É a prova cabal do quanto perdemos a noção das coisas.
Perdemos a noção de grandeza e a de proporção. Com isso, perdemos também o senso crítico em relação a esse buraco negro de nossas finanças públicas. Depois, perdemos o foco das prioridades.
Finalmente, erramos o alvo das manifestações. Tem gente malhando o Judas (a Copa, a Fifa) fingindo que está enfrentando o Império Romano. Se não for piada, é teatro.
Quem sabe, um dia, alguém se lembre de escrever a frase em um cartaz: “Cada 1% de aumento na taxa de juros custa R$20 bilhões aos brasileiros”. É uma mensagem mais consistente e valiosa do que “Não é só pelos 20 centavos”.
Vinte bilhões são duas vezes e meia, por ano, o que iremos investir em estádios, que serão pagos em 15 anos em empréstimos ao BNDES – ou seja, dinheiro que voltará aos cofres públicos.
O rebaixamento do debate econômico nos fez perder a noção das coisas
O verdadeiro rebaixamento que o país sofre não é de hoje e não é só o da Standard & Poors. O mais prejudicial de todos é o rebaixamento do debate sobre os rumos da economia do país.
O Brasil continua sendo um carro em que os mecânicos do mercado puxam o freio de mão e culpam o motorista pela dificuldade de acelerar o crescimento, melhorar a infraestrutura e a qualidade do serviço público.
A primeira mudança para uma tomada de consciência é superar a visão de que os juros são um problema só da macroeconomia e que sua conta é paga pelo governo. Não é.
O governo é apenas quem assina o cheque. Quando falamos “o Brasil”, muita gente ainda acha que estamos falando do governo. Perdemos, talvez na ditadura, e ainda não recuperamos a noção de que o Brasil são os brasileiros.
Quem confunde isso com nacionalismo barato e governismo acaba por reproduzir, às avessas, a velha maneira de pensar ensinada pela própria ditadura. Puro analfabetismo cívico.
Quem paga a conta cara dos juros altos são todos os que pagam impostos, principalmente os mais pobres, que, proporcionalmente, pagam mais impostos.
A luta para inverter prioridades precisa convencer milhões de brasileiros de que é preciso virar as finanças públicas de cabeça para baixo.
Hoje, a principal função do Estado brasileiro é pagar juros, os maiores do planeta. O Brasil é um dos três países que mais comprometem recursos públicos com o pagamento de juros, em proporção do PIB, conforme diz até o Fundo Monetário Internacional.
A educação, a saúde, a segurança pública e os investimentos em infraestrutura são pagos com o troco do que sobra do pagamento de juros.
Somos educados para o analfabetismo econômico
O problema que temos em mãos lembra o alerta feito por um professor de Matemática, com cara de cientista maluco, chamado John Allen Paulos, em seu livro “O analfabetismo em Matemática e suas consequências" (publicado originalmente em 1988).
O divertido livro de Paulos relembra casos famosos que denunciam a falta nem tanto de habilidade, mas de uso prático e corriqueiro até das operações matemáticas mais simples.
A principal denúncia de Paulos é ao quanto nos desacostumamos da operação mais essencial de todas, não exclusiva da Matémática: pensar sobre os problemas e raciocinar logicamente sobre eles.
Paulos nos avisa que isso é um perigo. Corremos riscos diários com essa nossa preguiça de pensar logicamente sobre os problemas e com a nossa incapacidade de extrair resultados práticos e numéricos dessas operações.
O que acho mais curioso nesse livro, e muito similar ao que acontece em nosso debate econômico, é que esse tipo de analfabetismo é ensinado diariamente.
É como se fôssemos educados para o analfabetismo. Somos treinados a esquecer a lógica dos argumentos e a concordar com coisas que não fazem o menor sentido.
Paulos usa, dentre tantos exemplos, o livro “Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift (1667-1745). O matemático nos mostra como o autor de Gulliver, ao descrever um gigante em uma terra de pequeninos (Lilliput), lascou o livro de grandezas absurdas, que não fazem o menor sentido.
As histórias de Gulliver são de 1726. Para não parecer tão distante, Paulos escreveu, em 1995,“Como um Matemático lê os Jornais”, publicado no Brasil como “As Notícias e a Matemática” ou “Como um Matemático lê jornal”.
Acertou na mosca. A imprensa é useira e vezeira em nos deseducar a usar não só os números, mas a lógica. É assim também com as notícias cujo título é contraditado pelas próprias matérias, armadilha comum aos que leem jornal com o espírito crítico repimpado e babando no sofá.
Terrorismo fiscal, um atentado ao raciocínio lógico
A notícia sobre o rebaixamento da nota do Brasil foi uma farra nesse sentido de propagar o analfabetismo econômico.
A conclusão enfiada goela abaixo é a de que o País precisa aumentar seu rigor fiscal e seu controle sobre a inflação.
Ou seja, o Brasil precisaria urgentemente cortar gastos e continuar elevando sua taxa de juros. Como assim, se o nosso principal gasto extraordinário é com juros? Não faz sentido, faz? Depende pra quem.
A ideia brilhante para atender às agências de risco é cortar o que o governo faz para pagar mais juros. Faz todo o sentido – para o financismo, não para a maioria dos brasileiros.
Mal começou o ano, os problemas sazonais dos preços dos alimentos, que impactam também os alugueis, são traduzidos na conclusão disparatada e tão absurda quanto os números das “Viagens de Gulliver”.
A lógica é a seguinte: se choveu muito, ou se choveu pouco, a inflação de alimentos elevou-se. Solução: aumentem os juros. Elevando-se os juros, as pessoas vão comer menos alimentos e os agricultores assim plantarão mais alimentos. Com juros mais altos, choverá a quantidade certa, no lugar certo. Entendeu? Nem eu.
O preço do tomate disparou, então o remédio é aumentar os juros. A pessoa irá desistir de levar tomates quando pensar que a taxa Selic está mais alta. Quando a taxa Selic alcança dois dígitos, as pessoas trocam a macarronada a bolonhesa por lasanha ao molho branco.
Os alugueis subiram, então os juros precisam aumentar, pois, em Lilliput, a terra de quem pensa pequeno, quando os juros sobem, ao contrário do que ocorre em qualquer lugar do mundo, mais imóveis são construídos e os alugueis baixam.
Engraçado, pensávamos que seria o contrário; que, com juros mais baixos, mais pessoas poderiam comprar seus próprios imóveis e se livrar dos alugueis. Aumentaria a própria oferta de imóveis e os aluguéis cairiam. Difícil entender os lilliputianos.
Essa falta de parâmetros e de noção do debate econômico causa uma deficiência grave em nossas políticas públicas.
Figuras exemplares que alertam sobre isso, como fazem Paulo Kliass, Ladislaw Dowbor e Amir Khair aqui na Carta Maior, há muito tempo, falam de coisas sobre as quais deveríamos não só prestar mais atenção, mas usar em nosso dia a dia.
Os movimentos sociais precisam se lembrar de explicar essa lógica dos argumentos aos seus militantes.
Precisam fazer as contas de quantos trabalhadores do setor público poderiam ser contratados e pagos com esses valores estratosféricos e escatológicos pagos com juros.
Precisam mostrar para a opinião pública quanto custa o reajuste de salários de suas categorias e compará-los com o que se paga em juros aos banqueiros.
Quem sabe, uma boa ideia seria acampar no gramado em frente ao Banco Central toda vez que ocorre uma reunião do Copom. E por que não fazer pelo menos um dia de luto quando se decreta aumento na taxa de juros.
Imagine todo mundo com a fitinha preta no braço explicando quanto vai nos custar pagar 0,25 ou meio ponto percentual a mais na taxa Selic, e quanto deixará de ser aplicado em prioridades para o país.
Pode até não ajudar a pressionar a decisão do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, mas, pelo menos, seria um sinal de quantas pessoas terão se livrado do analfabetismo econômico atroz que nos acomete.
(*) Antonio Lassance é cientista político.
Leia mais sobre o assunto:
Ladislau Dowbor, em “Os vazamentos do dinheiro público” , mostra que o Brasil não é pobre, mas os recursos são frequentemente mal utilizados, vazando por numerosas brechas, legais ou ilegais, quando poderiam ser produtivos.
O blog do professor Ladislau Dowbor é uma grande biblioteca de Economia, com artigos, livros, vídeos, filmes e inúmeros recursos dedicados a trabalhar temas econômicos complexos de forma compreensível.
Um editorial recente da Carta trata do mesmo assunto deste artigo de forma exemplar: “Se pensar pequeno, o governo escorrega na goela conservadora”. Lembra-nos de algo fundamental: que o capitalismo não é apenas um sistema econômico, e sim uma relação de poder.
Jaciara Itaim, “Dívida pública e juros: coquetel explosivo”, traz o dado de que 1% a mais em juros custa 20 bilhões.
Do economista Amir Khair, "Desafios ao crescimento".
Também de Amir Khair, "Há visões fiscais antagônicas dentro do governo".
Agradeço ao colega e grande economista Paulo Kliass pela orientação sobre alguns números. Os eventuais equívocos são de minha inteira responsabilidade e, possivelmente, resquícios do meu próprio analfabetismo econômico.
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