Por Daniela Frozi*
Tempos difíceis, diferentes depoimentos e narrativas são construídas a partir de cada ator social, capazes de envolver e mobilizar a todos nós em torno da recente história brasileira. Qual o lugar do pobre na ditadura civil-militar brasileira? A escolha por olhar a partir dos pobres tem em parte a ver especialmente com um olhar centrado para o campo da defesa de direitos e da participação social.
Como era o Brasil antes de entrar no período da ditadura? Alguns historiadores afirmam que talvez fosse um país que enfrentaria fortemente as desigualdades e ao mesmo tempo vivenciaria maior crescimento econômico. Somente nos dias atuais é que a desigualdade brasileira se configura de maneira semelhante ao que era na década de 1960. Em 21 anos o governo ditatorial levou ao agravamento da pobreza e das desigualdades, ao lado da censura, torturas e negação da participação social. Somente agora, 50 anos após o início da ditadura, é que o país retornou a condições similares de desigualdade daquela época, conforme é possível verificar nos dados do Coeficiente de Gini, tendo a diminuição dessa desigualdade começado a diminuir não por acaso com a retomada das eleições diretas em 1989.
Os anos da ditadura se descortinaram em tempos em que pobres e famintos foram todos silenciados. Algumas pessoas, na sua maioria sem memória, chegaram a dizer nos dias atuais que não havia pobre no Brasil, que havia segurança pública, ainda que as pessoas não passavam fome e que praticamente não havia problema social. Ao contrário, havia fome e pobres e, sim, os pobres e famintos permaneceram historicamente presentes na época da ditadura. Porém, foram apagados da memória oral e escrita.
Lamentavelmente, por exemplo, confiscaram os livros de Josué de Castro, autor de Geografia da Fome, médico, gestor e intelectual brasileiro, incansável na luta contra esse grave flagelo: a fome. Com a ditadura, seu pensamento e ação foram desconsiderados, colocados no vazio do esquecimento, com evidenciados esforços para apagar da memória dos brasileiros o triste cenário denunciado pelo célebre intelectual.
O acesso à obra de Josué de Castro foi restringido, teve seus direitos políticos cassados e foi destituído do cargo de embaixador que exercia em Genebra. Faleceu no exterior sem poder retornar ao seu país. Os pobres daquela época faziam parte da história sem ser parte consciente ou reconhecida da história, em um ambiente onde a memória da fome e da pobreza extrema, foram sequestradas do cenário político nacional.
A fome, apesar de bem documentada por Josué de Castro como fenômeno social e biológico, a ditadura civil-militar no Brasil impediu que os achados contidos nas suas obras pudessem subsidiar as ações que poderiam ainda naqueles dias resolver a problemática da fome no Brasil rural e urbano. Ao contrário, a ditadura agravou agendas sistêmicas, com a ausência de Reforma Agrária e a as relações injustas de trabalho no campo, agravou ainda as problemáticas da monocultura e as relações do Nordeste açucareiro, onde existia a fome endêmica, seguida pela região do Sertão Nordestino aumentando a fome epidêmica, como o autor denominava o fenômeno.
Josué ainda denunciou a subnutrição nas regiões que ele definiu como Centro Oeste e Extremo Sul. Lamento muito a perda dessa memória nos anos de 1964 a 1985, se tivéssemos a continuidade do trabalho de Josué de Castro e de sua equipe teríamos avançado mais e até mesmo aplicado as potencialidades de sua análise compreensiva da fome que há muito inovava ao usar as ciências de maneira complexa e relacional, como história, economia, biologia, geografia e antropologia. Desenvolveu um marco-analítico elegendo as populações por suas vulnerabilidades e características regionais como sendo elementos exploratórios do maior agravo da fome, a desnutrição grave e a mortalidade infantil.
Drástica situação histórica! O povo brasileiro deixou de enfrentar de forma magistral seu maior problema moral e ético: a fome. Só no início da década de 1990 o grito do povo foi ouvido em forte apelo pelos dados do Mapa da Fome (IBGE, 1993): 32 milhões de brasileiros passavam fome. Quem deixou de ganhar com a ditadura? Óbvio que foram os pobres famintos do Brasil. A segurança alimentar e nutricional perdeu com a ditadura! Quantas gerações morreram na ditadura civil-militar por conta de um mal social, político e econômico? Quantos pobres e famintos foram mortos, desapareceram do mapa?
Para os pobres e famintos, o Brasil daquela época era opressor, violento, matador, ausente, meritocrático e muito injusto. Os direitos sociais só para os com carteira de trabalho assinada, afinal pobre honesto tem carteira de trabalho assinada. O regime durou de 1964 a 1985 e nos anos1970 e 1980 houve enorme inflação, período de grande insegurança alimentar, sendo novamente os mais prejudicados os pobres e os mais pobres entre os pobres. O Brasil era um país para muito poucos, para pessoas com mérito , situação que para alguns nos centros urbanos elitizados poderia representar um país que funcionava , isso atrelado à uma mídia completamente controlada em que não havia espaço para questionamentos ou críticas. Existia uma massa de pessoas invisíveis, que somente nos últimos 25 anos, diante do regime democrático, passaram a experimentar uma melhor realidade, ainda muito longe de ser a ideal.
Quem pode desejar o retorno de algo similar à ditadura?
Certamente nenhum familiar dos cassados políticos, boa parte oriundos das classes média e alta. Para eles, esse período foi igualmente perverso, foram silenciadas suas liberdades, foi vetada a participação social, tendo sido um regime de exceção, de violência e dolorosa tortura. Da mesma forma que para aqueles que foram perseguidos pelo regime civil-militar, os pobres também não querem que ela volte.
A partir dos anos 1980, mesmo com uma infantil democracia, foram realizadas iniciativas que levaram a conquistas sociais. A democracia trouxe avanços que beneficiaram e foram consequência das lutas de diversas organizações e movimentos sociais. Aumentar o alcance de políticas de saúde e educação não é tarefa simples, ainda mais num Estado que foi formatado para atender a alguns e a excluir muitos. Alterar esta correlação de forças exige uma vigilante postura de monitoramento e de participação social. Em cada cidade, em cada órgão público, nas políticas elaboradas, somos chamados/as a participar de forma crítica e propositiva, enfrentando os dilemas entre o instituído e o instituinte.
É sintomático que, após 50 anos do golpe, ainda tenhamos militares ocupando territórios empobrecidos de uma grande cidade brasileira. Os pobres não querem ocupação militar. No entanto, eles ainda não foram reparados pelo Estado, ou mesmo reconhecidos em seus direitos civis, como o de ir e vir, em várias cidades e territórios do país. A existência de Polícias Militares que ainda adotam em suas ações as mesmas práticas de tortura, ao lado dos chamados autos de resistências , e que enumeram diversos desaparecimentos, representam para a nossa sociedade uma bandeira de luta permanente contra a ditadura civil-militar do passado e do presente e que atinge fortemente aos mais pobres. Exigir o devido tratamento em relação à história vivenciada no período da ditadura não é negar a situação de exceção que ainda muitos vivem, pelo contrário, essa luta representa a afirmação da necessidade de mudança que reconheça e atue no enfrentamento das mazelas que ainda permanecem e que tiver am início num específico contexto.
A democracia precisa enfrentar os resquícios da ditadura civil-militar! As urnas se colocam como um dos mecanismos de enfrentamento a essa realidade, sendo necessário exigir dos candidatos, majoritários ou não, que incluam de forma corajosa esta temática para que juntos seja possível virarmos definitivamente a página desta herança que os governos do período ditatorial impuseram ao nosso país. A rua é outro espaço de ocupação, manifestações públicas, participação e controle social são alguns dos elementos previstos em nossa Constituição e que como cidadãos e cidadãs devemos acionar no sentido do fortalecimento da democracia e para a construção de uma sociedade melhor e mais justa.
*Daniela Frozi é conselheira do Consea (colaboraram Juliana Peres e Ronilso Pacheco)
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