Ilustremos com o seguinte exemplo para desconstruir essa “falação”. “ Isto aqui é um Centro de Saúde?” Certamente as pessoas vão dizer: “Sim, sim, é claro.” “Não é não, aqui é um Centro de tratamento de doenças.” E a Saúde, onde está? perguntam todos? Ah, a Saúde está em todo lugar, na cidadania, na justiça , na igualdade de direitos, na educação, no meio ambiente não contaminado, no salário justo, no transporte, na habitação, no tratamento adequado às doenças, no pensar e no falar. Como no falar? Saúde é transformar, revolucionar, pensar e falar; a Doença, seu impedimento, o silêncio.
Mas, nada é por “acaso”... É tudo pensado e intencional.
Já que é fundamental falar, falemos em alto e bom som: seguindo a tendência mundial vivida (vivida?) nos países dos segundos, terceiros, quartos mundos, a primeira decapitação da guilhotina cruel seria o fabuloso lucro que a doença traz, e por trás disso, a também fabulosa indústria farmacêutica, uma indústria sustentada pela doença, onde em cada sede destas empresas, que obviamente estão no primeiro mundo, ostentam uma belíssima estátua do padroeiro - o sempre vivo e esperto “São lucros”. Contribuem também para a doença os “aliados solidários”: a baixa qualidade de vida , salários aviltantes, desemprego... Por outro lado, não há como negar os avanços excepcionais nessa área. O grande paradoxo: a ciência visa ao lucro? Necessidade implica em submissão?
Continuando a falar. A segunda decapitação é o próprio impedimento de não falar, e quem não fala obedece a um modelo organicista, segue o modelo de “defeitos”: defeito no coração, defeito no osso, na pele, e assim vai... Existe “medicamento” para qualquer “defeito”, aliado a uma prática médica silenciosa e alienada, que vê no outro um “objeto”, um prontuário numerado, deixando de ser uma pessoa. Pergunto: onde se encontra aquela prática tão antiga, humanista, afetiva e atenciosa de escutar as pessoas, que nasceu com a Medicina? Prestar atenção, ouvir? Afinal, o único animal que usa a linguagem é o ser humano. O dístico da Medicina, com a cobra enrolada é ‘Sedare dolorem opus divinus est’ (Sedar a dor é um ato divino). Mais uma vez, pergunto: a dor é só física? Ou existem também as dores da angústia, da tristeza de ser explorado, da falta de cidadania, da falta de diálogo, da distância com o médico que atende (atende?)? Então não é para se falar dessas outras dores? Cada um que fique no seu “quadrado”? Exemplificando: o dito “paciente”, após um longo tempo de espera “sentadinho”, (se houver instalações adequadas), silencioso, aguarda ansiosamente ser chamado para a esperada consulta. “Chegou a minha vez, graças a Deus!”. Entra, nem bom-dia, nem boa tarde, muito menos boa-noite, senta-se, ouve a tradicional pergunta: “O que é você tem ?” ou o mais ameno “qual a sua queixa?”. O tempo corre rápido. Nervoso, dor de cabeça, insônia, revela rapidamente o “paciente”. Rapidamente também o doutor prescreve e fala com voz senhorial “um pela manhã, um à tarde, outro à noite. O próximo!” Tem remédio para tudo, a bênção São Lucros, protetor da doença, salve o silêncio que aliena e mata. Ao contrário, nos consultórios de primeiro mundo, há educação, gentileza, instalações adequadas e tempo para se falar. Gente fina é outra coisa!
De volta à nossa realidade, mágoas e frustrações de ambos os lados: dos doutores e dos “pacientes”. Mais uma perguntinha: porque não falar? Seria um hábito estrutural, cultural,que foi assimilado ao longo do tempo?. Ou seria a coerção de um poder perverso que congela e imobiliza o cérebro? Será que essa ausência do pensar e falar vai se perpetuar? Então , cidadãos, doutores ou não, quebremos esse mutismo, contestemos as verdades prontas, vamos” por prá fora” , dialoguemos. Usemos os medicamentos adequados, conscientes de que é importante pensar e falar. O pensamento, nesse caso, seria: “sozinho eu chego mais rápido, mas acompanhado, nós chegamos muito mais longe. Essa aliança coletiva deve ser gentil, produtiva e generosa , tendo a fala como intermediária e o afeto como norte. Quem fala pensa, e quem pensa transforma.
A terceira decapitação da nossa guilhotina, seguindo os preceitos de São Lucros, que ora pela bíblia neoliberal, é a privatização dos serviços públicos, tornando o que era coletivo numa grande e majestosa empresa privada, um grande supermercado para as indústrias farmacêuticas, laboratórios, serviços, demolindo paulatinamente o que a população, com muito esforço e trabalho, conseguiu através do tempo. Faz parte do guilhotinamento a famosa, sempre crescente e estupenda Dívida Interna e Externa, juntamente com nosso PIB, mais conhecido como produto interno bruto. Ou seja, tudo o que a pátria amada produz, é dividido atualmente da seguinte forma: cinqüenta por cento do PIB é para pagar os gordos banqueiros e as gordíssimas multinacionais. Para a Saúde (Saúde?) sobram os magros, magrinhos, magérrimos, símbolo da doença crônica, os miseráveis quatro por cento, para a Educação menos ainda. Está na hora da gente falar grosso...
Esqueci a quarta decapitação da guilhotina. Mas antes, para que serve uma guilhotina? Claro, para cortar cabeças... Então, a guilhotina está funcionando a todo vapor, como uma indescritível máquina de castrar e alienar pensamentos, funcionando vinte e quatro horas no ar, num plantão permanente de estupidificar e ensinar como se deve pensar, sem se pensar. Senhoras e senhores, queremos apresentar a fabulosa midia amestrada por seu ídolo, o não menos famoso “São Lucros’. Vende a doença à vista, a prazo ou em suaves prestações diárias, conforme o “freguês”. A função é guilhotinar nossas cabeças, para que nada se transforme. A doença, a alienação, o silêncio, a dor da desigualdade tornam-se absolutamente necessárias para o modelo capitalista.
Basta de guilhotinas e decapitações! Por que não? Coloque sempre prá fora para viver com Saúde.
As guilhotinas que decapitam não dependem de origem, cor, religião, culturas, e sim de classe social.
E Saúde é tudo, em qualquer tempo, em qualquer lugar.
Alguns dos princípios da vida: felicidade, liberdade. Igualdade, saúde, educação, falar e pensar.
Bem no final, um versinho: Falar e pensar são o inverso de guilhotinar.
Silenciar é o inverso de participar.
Daniel Chutorianscy é médico psiquiatra Coordenador do projeto GRÊMIO RECREATIVO SOCIAL E COMUNITÁRIO “PÕE PRÁ FORA” trabalho coletivo e comunitário realizado na Policlinica Sergio Arouca- Praça Vital Brazil- Niteroi- RJ (Secretaria de Saúde de Niterói)
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