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– ON 04/08/2014
Um mês depois de iniciar ofensiva brutal, Telaviv teme ser derrotada politicamente pelo Hamas. Como isso tornou-se possível? Quais seriam as consequências?
Por Nathan Thrall, no London Review of Books | Tradução: Vila Vudu | Imagem: Anne Paq/Activestills
A guerra em curso em Gaza não foi algo que Israel ou o Hamas tenham buscado. Mas os dois lados sabiam com certeza absoluta que um novo confronto viria. O cessar-fogo de 21/11/2012, que pôs fim a oito dias de fogo, foguetes de Gaza contra Israel e bombardeio aéreo de Israel contra Gaza, jamais foi implementado. Aquele acordo estipulava que todas as facções palestinas em Gaza suspenderiam as hostilidades contra Israel e que Israel suspenderia todos os ataques contra Gaza por terra, mar e ar – inclusive o “alvejamento de indivíduos” (assassinatos, quase sempre por mísseis disparados de drones manobrados à distância) –, e que o cerco de Gaza acabaria, dado que Israel aceitou, por aquele acordo de 2012, “abrir as passagens e facilitar o deslocamento de pessoas e transferência de produtos, pondo fim a qualquer medida que restrinja a livre movimentação de residentes e ao alvejamento de residentes em áreas de fronteira.”
Uma cláusula adicional registrava que “outras questões que venham a exigir discussão serão discutidas” – o que parece fazer referência ao esforço, acordado privadamente com Egito e EUA, para ajudarem a pôr fim ao contrabando de armas para Gaza, embora o Hamas sempre tenha negado tal interpretação para essa cláusula.
Durante os três meses depois daquele cessar-fogo, a agência de segurança de Israel, Shin Bet, só registrou um ataque: dois morteiros disparados de Gaza, em dezembro de 2012. Os funcionários israelenses ficaram impressionados. Mas convenceram-se rapidamente de que a calma na fronteira de Gaza seria, em primeiro lugar, efeito da posição contida adotada pelos israelenses e do próprio interesse dos palestinos. Israel, por isso, não viu motivo forte para aplicar a parte que lhe cabia aplicar daquele acordo. Nos três meses seguintes, depois do cessar-fogo, as forças israelenses atacaram Gaza com regularidade, atingindo agricultores palestinos e os que recolhiam lixo em áreas próximas à fronteira, e atiraram contra barcos de pesca, impedindo os pescadores de terem acessos à maioria dos pesqueiros no mar de Gaza.
A abertura do cerco de Gaza jamais aconteceu. As passagens foram mantidas permanentemente fechadas. As chamadas “áreas de transição” [orig. buffer zones] – terras agricultáveis nas quais que os agricultores gazenses não poderiam pisar, sob risco de serem mortos a tiros – foram reinstituídas. As importações caíram, as exportações foram bloqueadas e poucos gazenses obtiveram autorização para entrar em Israel e na Cisjordânia.
Israel comprometera-se a manter negociações indiretas com o Hamas sobre a implementação do acordo de cessar-fogo, mas sempre adiou as reuniões. Primeiro, porque queria ver se o Hamas manteria sua parte do acordo; depois, porque Netanyahu não podia fazer qualquer concessão ao grupo, nas semanas antes das eleições de janeiro de 2013; depois, porque uma nova coalizão israelense estava sendo formada e precisava de tempo para implantar-se. As conversações jamais aconteceram. Para o Hamas, a conclusão foi clara: ainda que algum acordo fosse negociado por EUA e Egito, nem assim Israel o cumpriria.
Mas o Hamas continuou a manter o cessar-fogo, para grande satisfação de Israel. Implantou uma nova força policial encarregada de prender palestinos que tentassem lançar foguetes. Em 2013, houve ainda menos foguetes lançados de Gaza – menos que em qualquer ano desde 2003, quando os primeiros rojões primitivos começaram a ser lançados para o outro lado da fronteira. O Hamas precisava de tempo para reconstituir seu arsenal, fortificar suas defesas e preparar-se para a batalha seguinte, quando usaria suas forças armadas para tentar pôr fim ao cerco de Gaza. Mas o Hamas também contava com que o Egito se abrisse para Gaza, pondo fim ao período durante o qual Cairo e Telaviv dedicaram-se a escapar, ambos, à responsabilidade pelo território e seus habitantes reduzidos à miséria. Caso este hipótese se confirmasse, ela tornaria menos crucial conseguir que Israel aliviasse o cerco.
Em julho de 2013, o golpe no Cairo, que levou ao poder o general Sisi, acabou com as esperanças do Hamas. O regime militar de Sisi culpou o deposto presidente Morsi, da Fraternidade Muçulmana, e o Hamas, braço palestino do mesmo grupo, por todas as desgraças do Egito. As duas organizações foram banidas. Morsi foi formalmente acusado de conspirar com o Hamas para desestabilizar o Egito. O líder da Fraternidade Muçulmana e centenas de apoiadores de Morsi foram condenados à morte. Os militares egípcios usaram retórica cada vez mais ameaçadora contra o Hamás, que passou a temer que o Egito, Israel e a Autoridade Palestina liderada pelo Fatah se aproveitassem da fraqueza de Gaza para lançar campanha militar coordenada contra a Faixa. Os líderes do Hamas foram proibidos de deixar a Faixa, proibidos de viajar. O número de gazenses autorizados a entrar no Egito foi reduzido a uma mínima fração do que fora antes do golpe. Quase todos os túneis pelos quais chegavam bens do Egito para Gaza foram fechados. O Hamas usava impostos cobrados sobre esses bens para pagar os salários dos mais de 40 mil funcionários públicos em Gaza.
Irã e Síria, ex-aliados e primeiros apoiadores do Hamas, não ajudariam dessa vez, a menos que o grupo deixasse de apoiar a Fraternidade Muçulmana e passasse a apoiar o governo do alawita Bashar al-Assad, na guerra cada dia mais sectária na Síria contra o que se convertera em oposição predominantemente sunita. Os aliados que restavam ao Hamas tinham seus próprios problemas: a Turquia, preocupada com os tumultos internos; o Qatar, pressionado pelos vizinhos para reduzir seu apoio à Fraternidade, que as demais monarquias do Golfo veem como principal ameaça contra elas. A Arábia Saudita declarou a Fraternidade “organização terrorista”; outros estados do Golfo continuavam a reprimir os Irmãos. Na Cisjordânia, o Hamás não podia hastear uma bandeira, fazer um discurso ou uma reunião, sem o risco de ter seus membros presos por Israel ou pelas forças de segurança da Autoridade Palestina.
Com a pressão aumentando e sem aliado forte ao qual recorrer, o declínio de Gaza foi rápido. Embora Israel tenha “respondido” ao fechamento dos túneis pelo Egito e à licença para que pedestres cruzassem a fronteira, com pequeno aumento na oferta de bens e no número de licenças para sair da Faixa, nada mudara na política fundamental dos israelenses. Os racionamentos de eletricidade foram ampliados. Os blecautes diários já duravam de 12 a 18 horas. Os necessitados de tratamento em hospitais egípcios pagavam propinas de até 3 mil dólares para cruzar a fronteira, vez ou outra, quando era ocasionalmente aberta por um dia. Os racionamentos de combustíveis faziam com que se formassem filas de vários quarteirões nos postos, e brigas em torno das bombas. O lixo continuava empilhado nas ruas, porque o governo não tinha meios para comprar combustível para os caminhões de coleta. Em dezembro, as usinas de tratamento de esgoto e água foram fechadas e o esgoto passou a escorrer pelas ruas. A crise se agravou: mais de 90% do aquífero de Gaza foi contaminado.
Quando se tornou evidente que os tumultos no Egito não resultariam em derrubada de Sisi e volta da Fraternidade ao poder, o Hamas só viu quatro saídas possíveis. A primeira seria reaproximar-se do Irã, ao preço inaceitável de trair a Fraternidade na Síria e enfraquecer o apoio ao Hamas entre os próprios palestinos e a maioria dos muçulmanos sunitas em todo o mundo. A segunda seria criar novos impostos em Gaza, mas nenhum novo imposto compensaria a perda da renda dos túneis; e qualquer novo imposto contribuiria a favor da oposição ao Hamas. A terceira seria lançar foguetes contra Israel, na esperança de que um novo cessar-fogo trouxesse alguma melhoria nas condições em Gaza. Essa possibilidade horrorizou os funcionários dos EUA: minaria a cordata liderança palestina na Cisjordânia e poria fim às conversações de paz que John Kerry lançou no mesmo mês do golpe do general Sisi. Mas o Hamas sentiu-se vulnerável demais, especialmente por causa do papel potencial de Sisi em qualquer novo conflito entre Gaza e Israel, para adotar essa terceira possibilidade. Quanto às conversações de paz, não cabia dúvida alguma de que também fracassariam.
A opção final, que o Hamas acabou por escolher, foi entregar a responsabilidade pelo governo de Gaza a prepostos da Autoridade Palestina, sediada em Ramallah (Cisjordânia) e dominada pelos adversários do Fatah, apesar de este grupo ter sido derrotado nas eleições de 2006.
O Hamas pagou preço alto, aceitando quase todas as demandas do Fatah. O novo governo da Autoridade Palestina não incluiu nenhum membro do Hamas, ou aliados do Hamas, e todas as principais figuras do governo da Autoridade Palestina permaneceram em seus postos. O Hamas concordou com que a Autoridade Palestina deslocasse de volta para Gaza vários milhares de seus guardas de segurança; que pusesse seus guardas nas fronteiras e postos de passagem, sem posição recíproca para o Hamás no aparelho de segurança na Cisjordânia. Mais importante, o governo anunciou que aceitava as três condições impostas pelos EUA e aliados em troca de uma ajuda ocidental longamente esperada: não violência, cumprimento de acordos passados e o reconhecimento de Israel. Embora o acordo estipulasse que o governo da Autoridade Palestina se absteria de fazer política, o presidente da entidade, Mahmoud Abbas, anunciou que manteria seu programa político. O Hamas praticamente nem protestou.
O acordo foi assinado dia 23 de abril, depois que as conversas de paz de Kerry fracassaram; se elas tivessem feito alcançado progresso, os EUA teriam feito o máximo que pudessem para impedir que o acordo Fatah-Hamas fosse assinado. Mas o governo Obama estava desapontado com as posições que Israel assumiu durante as conversações e declarou Telaviv culpada por parte do fracasso. A frustação ajudou a empurrar Washngton a reconhecer o novo governo palestino, apesar das objeções de Israel. Mas os EUA não iriam além disso. Nos bastidores, pressionavam Abbas para que evitasse qualquer verdadeira reconciliação entre Hamas e Fatah. O Hamas buscou reativar o conselho legislativo palestino, esquecido há muito tempo, para que fiscalizasse o novo governo. Mas a assembleia tem maioria de membros do Hamas e os EUA alertaram Abbas de que suspenderiam qualquer apoio financeiro e político ao novo governo, caso a assembleia voltasse a se reunir.
O acordo de reconciliação foi impopular dentro do Hamas. Dos movimentos de base ao segundo escalão da liderança, todos entendiam que o acordo geraria problemas terríveis.
Moussa Abu Marzouk, alto dirigente do gabinete político, passou semanas em Gaza em reuniões com quadros do grupo, ouvindo suas preocupações e tentando convencê-los da sabedoria do acordo. Os militantes temiam que o pessoal de segurança do Fatah tentasse vingar as mortes resultantes da luta entre Hamas e Fatah em 2006 e 2007, e iniciasse nova guerra civil. Comandantes do Hamas queriam garantias de que a Autoridade Palestina não estenderia sua colaboração com Israel e contra o Hamas, da Cisjordânia para dentro da Faixa de Gaza. Funcionários públicos, milhares dos quais não são membros do Hamas, temiam ser despedidos, dispensados ou ficar sem salários. Outros diziam que o Hamas cedera tudo, sem qualquer garantia de que o Fatah cumpriria o que prometera. Um dos argumentos que os líderes do Hamas apresentavam para ter assinado o acordo foi que este permitiria que o movimento se focasse na sua própria missão original: a resistência militar contra Israel.
Tão logo o governo foi formado, todos os medos dos ativistas do Hamas começaram a se confirmar. Os termos do acordo não apenas eram desfavoráveis: eles tampouco foram postos em prática. A condição mais básica do compromisso – que o governo pagaria os funcionários públicos que fazem Gaza funcionar e que seria aberta a passagem com o Egito – ficaram no papel. Ao longo de anos, os gazenses ouviram dizer e repetir que todos os seus sofrimentos eram culpa do governo do Hamas. Já não havia governo do Hamas, e as condições de vida na Faixa de Gaza haviam piorado muito.
* * *
Em 12 de junho, dez dias depois de formado o novo governo, um evento inesperado mudou radicalmente o destino do Hamas. Três estudantes israelenses foram sequestrados e mortos quando voltavam da escola religiosa na Cisjordânia. Quando os cadáveres foram encontrados, um grupo de judeus israelenses capturou um palestino de 16 anos perto de sua casa em Jerusalém Leste, jogou-lhe gasolina sobre o corpo e o queimou vivo. Irromperam protestos entre os palestinos em Jerusalém, Negev e Galileia, e a Cisjordânia permaneceu relativamente calma. Israel culpou o Hamas pelo assassinato dos estudantes que saíam da escola religiosa, apesar de vários funcionários da segurança de Israel terem declarado que acreditavam que os criminosos tivessem agido por conta própria, sem ordens superiores.
Na caçada aos suspeitos pelo assassinato, Israel fez sua maior campanha na Cisjordânia contra o Hamas desde a Segunda Intifada. Fechou escritórios do grupo e prendeu centenas de membros de todos os níveis. O Hamas negou responsabilidade pelas capturas e disse que as acusações de Israel eram pretexto para iniciar uma ofensiva. Dentre os presos, estavam mais de 50 dos 1.027 prisioneiros que haviam sido libertados em 2011, na troca pelo soldado israelense Gilad Shalit, capturado em combate pelo Hamas. O Hamas viu essas prisões como mais uma violação do acordo Shalit, que especifica as condições sob as quais os prisioneiros libertados poderiam voltar a ser presos, e inclui outros dispositivos que Israel jamais cumpriu, sobre melhoria de condições dos demais prisioneiros palestinos e direitos a receber visitas.
A liderança palestina em Ramallah trabalhou em íntima coordenação com Israel para prender militantes, e poucas vezes viu-se tão desprestigiada entre seus próprios eleitores – muitos dos quais creem que sequestrar israelenses é o único meio efetivo para obter a liberdade de prisioneiros que a ampla maioria do país vê como heróis nacionais. Em inúmeras cidades da Cisjordânia, os moradores protestaram contra a colaboração entre a segurança da Autoridade Palestina e Israel. Um ex-ministro de Assuntos Religiosos, muito próximo de Abbas, foi com seus guarda-costas à Mesquita al-Aqsa; pessoas que lá rezavam os atacaram e todos tiveram de ser hospitalizados. O emissário que Abbas enviou para visita de condolências à família do adolescente palestino assassinado foi expulso da casa.
Com os protestos espalhando-se por Israel e Jerusalém, militantes de grupos não ligados ao Hamas, em Gaza, começaram a lançar foguetes e morteiros, em movimento de solidariedade. Sentindo a vulnerabilidade de Israel e a fragilidade da liderança em Ramallah, líderes do Hamas ordenaram que os protestos fossem ampliados até converterem-se numa terceira Intifada. Quando o fogo dos foguetes aumentou, viram-se arrastados para um novo dilema: não podiam ser vistos proibindo os ataques e, ao mesmo tempo, conclamando para um levante em massa. A retaliação de Israel culminou no bombardeio de 6 de julho, que matou vários militantes do Hamas, o maior número de baixas que o grupo sofreu em vários meses. Dia seguinte, o Hamas começou a chamar para si toda a responsabilidade pelos foguetes. E Israel então anunciou a “Operação Linha Protetora”.
Para o Hamas, a escolha não foi tanto entre paz e guerra; mas entre morrer por estrangulamento lento e uma guerra que tinha uma chance, embora pequena, de afrouxar o nó. O Hamas vê-se numa batalha pela própria sobrevivência. Seu futuro em Gaza depende do desenlace. Como Israel, o grupo definiu limites bem definidos, objetivos com os quais simpatiza grande parte da comunidade internacional.
O principal objetivo é conseguir que Israel honre os três acordos passados: o acordo da troca do prisioneiro Shalit, inclusive com a libertação dos antigos prisioneiros soltos e agora novamente presos; o acordo do cessar-fogo de novembro de 2012, que determina o fim do cerco da Faixa de Gaza; e o acordo de reconciliação de abril de 2014, que permite que o governo palestino pague salários em Gaza, mantenha funcionários seus nas fronteiras, receba o material de construção desesperadamente necessário e reabra a passagem de pedestres entre Gaza e o Egito.
Não são objetivos irrealistas e há crescentes sinais de que o Hamas tem boa chance de obter pelo menos alguns desses objetivos. Obama e Kerry disseram que acreditam que o cessar-fogo deva basear-se no acordo de novembro de 2012. Os EUA também mudaram sua posição sobre o pagamento de salários em Gaza, e propuseram, num rascunho de acordo apresentado a Israel dia 25/7, que os fundos sejam transferidos para os funcionários em Gaza. Durante a guerra, Israel decidiu que poderia resolver seu problema de Gaza com a ajuda do novo governo de Ramallah que, antes, Israel havia formalmente boicotado. O ministro da Defesa de Israel disse que esperava que um cessar-fogo servisse para implantar forças de segurança do novo governo de Ramallah nas passagens de fronteira em Gaza. Netanyahu também já começou a baixar o tom de voz sobre Abbas.
Perto do fim da terceira semana de combates, Israel e os EUA discretamente fingiram que não viram que o governo palestino pagou todos os funcionários que trabalham em Gaza, pela primeira vez. Funcionários israelenses em todo o espectro político já começam a admitir privadamente que sua política anterior para Gaza foi errada. Todas as partes envolvidas em mediar um cessar-fogo já cogitam arranjos pós-guerra que efetivamente fortalecerão o novo governo palestino e seu papel em Gaza – e, por extensão, fortalecerão Gaza em si.
Muito mais difícil será conseguir a libertação dos ex-prisioneiros agora reaprisionados. Mas se a guerra prossegue, e uma incursão por terra torna-se mais provável, as chances de o Hamás capturar um soldado israelense aumentam. Poucas coisas desmoralizariam mais completamente o governo de Ramallah que um novo acordo de troca de prisioneiros entre Israel e o Hamas, mesmo que em escala menor que o acordo Shalit.
Quando o Hamas anunciou que capturara um soldado israelense dia 20/7, multidões acorreram para as ruas de Gaza, Jerusalém e na Cisjordânia, soltando fogos de artifício e distribuindo doces e balas pelas ruas, com renovada esperança de voltar a ver amigos e parentes presos nas prisões israelenses.
Manifestações de palestinos em solidariedade com Gaza espalharam-se. Já se viam mais bandeiras do Hamás que do Fatah em recente protesto em Nablus. A liderança em Ramallah, embora não muito convincentemente, adotou parte da retórica do Hamas, usando com frequência a palavra “resistência” e elogiando a luta em Gaza. Tem havido confrontos em pontos da Cisjordânia e em Jerusalém Leste quase todas as noites. Dia 24 de julho, na noite de Laylat al-Qadr, dia santificado para os muçulmanos, o ponto de controle de Qalandiya, no norte de Jerusalém, foi cenário da maior manifestação popular em toda a Cisjordânia desde a Segunda Intifada.
O Hamas sabe que não pode derrotar militarmente Israel, mas a guerra de Gaza guarda a possibilidade de uma recompensa distante, mas não menos importante: agitar a Cisjordânia, minar a liderança de Ramallah e todo o programa de negociação perpétua e perpétua concessão e perpétua dependência dos EUA, que o governo do Fatah encarna. Para muitos palestinos, o Hamás demonstrou, mais uma vez, a efetividade comparativa da militância.
Os túneis, que foram fator decisivo para os sucessos do Hamas na atual guerra são motivo dos ataques dos israelenses contra Gaza desde bem antes da retirada de Israel, em 2005. O Hamas realiza sempre uma série de ataques baseados nos túneis, inclusive a explosão de dezembro de 2004, no subsolo de um posto do exército de Israel no sul de Gaza, que ajudou a precipitar a retirada israelense.
Desde que os combates em Gaza recomeçaram, esse verão, Israel não anunciou sequer uma única nova colônia de ocupação na Cisjordânia e já manifestou disposição para fazer algumas concessões em demandas palestinas. São conquistas que o governo de Ramallah nunca sequer se aproximou de alcançar, apesar dos muitos anos de negociações. O resultado da luta ajudará a determinar o caminho futuro do movimento nacional palestino.
O real obstáculo que impede um levante na Cisjordânia jamais foi, como o Hamas tem dito, a colaboração de Abbas com Israel. O obstáculo real é a fragmentação social e política, e a ideia que se vai implantando entre os palestinos, sem encontrar qualquer oposição, de que a libertação nacional deva ser o segundo objetivo, superado de longe, em importância, por projetos apolíticos e tecnocráticos de construção do Estado e de desenvolvimento econômico. Esses são os maiores obstáculos que o Hamas enfrenta.
Se a guerra mais recente conseguiu instilar algum orgulho nas multidões palestinas, que dizem que já se acostumaram a sentir vergonha do modo como seus líderes rastejam aos pés de norte-americanos e israelenses, a vitória do Hamas não foi pequena.
Mas o grupo também arriscou muito. Pode perder tudo, no caso de Israel reavaliar a posição, mantida há muito tempo, de que o Hamás pode ser deixado com a tarefa de policiar Gaza, estratégia que tem mantido o grupo suficientemente forte para exercer algo bem perto de monopólio do uso da força. Ironia das semanas recentes de combate em campo é que a demonstração de poder do Hamas está pondo em risco a sua própria posição, em Gaza. Israel pode decidir que o Hamas está forte demais e é ameaça grande demais.
O grupo conseguiu deter (no sentido de ter tornado extremamente lenta) a incursão dos israelenses por terra e infligiu dezenas de baixas aos soldados de Israel, muito mais do que os israelenses previam. Duas semanas depois de iniciada a ação dos “coturnos em solo”, o exército de Israel ainda não avançou além da primeira linda de território urbano densamente povoado.
Graças à vasta rede subterrânea de tuneis, que levam não só para dentro de Israel, mas espalha-se também sob Gaza, se o exército decidir entrar nas áreas centrais das cidades, o número de baixas certamente aumentará. Durante a Operação Chumbo Derretido, em 2008-09, Israel entrou muito mais fundo dentro de Gaza e perdeu só dez soldados, quatro deles por fogo amigo; em 2014, só até agora, o exército de Israel já perdeu mais de 60 soldados. As baixas de militantes do Hamás parecem ser suportáveis.
Pela primeira vez em décadas, Israel defende-se contra um exército que conseguiu entrar fundo nas fronteiras de 1967 – usando tuneis e em incursões navais. Os foguetes produzidos pelo Hamas já alcançam agora todas as grandes cidades de Israel, inclusive Haifa, e o grupo já tem drones armados com foguetes. Conseguiu manter fechado o principal aeroporto de Israel durante dois dias. Israelenses que vivem perto de Gaza já abandonaram suas casas e temem retornar, porque o exército de Israel diz que é possível que ainda haja túneis não localizados. Os foguetes de Gaza obrigam os israelenses a dormir nos abrigos, noite após noite – o que mostra que o exército não está conseguindo neutralizar a ação do Hamas. Estima-se que a guerra já custou a Israel bilhões de dólares.
Os maiores custos, claro, ficaram sobre os civis gazenses, que são a maioria dos mais de 1.600 mortos até o momento do cessar-fogo anunciado e imediatamente quebrado, dia 1º de agosto. A guerra matou famílias inteiras, devastou bairros inteiros, destruiu residências, cortou a eletricidade e quase todo o acesso à água. Gaza precisará de anos para se recuperar, se algum dia conseguir fazê-lo.
E parece improvável que o Hamas esteja preparado para outra luta, a curto prazo. Por este motivo, ele tem todo interesse de tentar alcançar seus objetivos centrais, principalmente o de pôr fim ao cerco de Gaza. Os mediadores estão tentando ajudar o povo de Gaza sem dar a impressão de que reconhecem uma vitória do Hamas e registram a derrota de Israel.
Do ponto de vista de Israel e do Egito, o que está em jogo é o que essa já bem visível – ou claramente possível – vitória do Hamas diz sobre o futuro da Fraternidade Muçulmana na região. Já para os aliados da Fraternidade – Qatar e Turquia –, o que está em jogo é o que pode significar uma derrota. O simbolismo do conflito, que todos perceberam com clareza, ajudou a prolongá-lo.
A solução óbvia é deixar o novo governo palestino voltar a Gaza e reconstruí-la. Israel poderá dizer que enfraquece o Hamás ao fortalecer seus inimigos. O Hamas poderá dizer que conseguiu reconhecimento para o novo governo e alívio considerável no bloqueio. É solução, claro, que Israel, EUA, Egito e a Autoridade Palestina poderiam ter facilmente organizado nas semanas e meses de “conversações” que tiveram antes de a guerra começar, antes de haver tantos mortos.
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