Se privatizada, a saúde deixa de ser um bem público como direito social para se tornar mais um produto inserido na dinâmica capitalista global.
A proposta de destruir o SUS, na tentativa de privatizar a saúde pública brasileira, tem início no Governo FHC e veio embrulhada no contexto do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. De fato, a Reforma fez parte da ação governamental como componente da estratégia neoliberal, compreendida por três ações básicas: a) substituição ao que se chamou de administração pública burocrática e clientelista por uma administração gerencial ou nova administração pública; b) modificação do sistema previdenciário, transformando-o em fundos de investimento; c) privatização de empresas e serviços públicos passíveis de reverterem seus objetivos sociais para a busca do lucro. O princípio básico da proposta sintetizava-se na administração gerencial, estabelecida nas relações de mercado, inclusive naquelas atividades consideradas como bens e serviços públicos em geral, especialmente a saúde e a educação. A implantação dessa política assumiu procedimentos açodados do governo, quando até mesmo aspectos formais não foram de todo resolvidos na premência de impor o novo modelo e por concepção autoritária de governar. Segundo COSTA FILHO: “... o processo [referindo-se à Reforma] se afasta de qualquer padrão democrático na medida em que se constrói sobre o informalismo e o lobby, de natureza intrinsecamente excludente” (COSTA FILHO, 1997, p. 188). Com tal formulação, a Reforma se apresentou excludente, autoritária e na confirmação do caráter intransitivo do Estado brasileiro quanto à acessibilidade popular da informação-pública e de resistência às conquistas sociais.
Todavia, a reforma do aparelho estatal, empreendida por FHC, ficou inconclusa diante da perspectiva distorcida da realidade socioeconômica e geopolítica do país, do inconsistente aspecto operacional, e da rejeição tácita pelos segmentos populares da sociedade. Porém, a sua essência resistiu e se consolidou. As agências autônomas, por exemplo, foram estabelecidas e fortalecidas, e se mantiveram insuladas no posicionamento de total independência do governo e, como sói acontecer, das classes populares, dialogando intensa e diretamente com grandes grupos econômicos e financeiros e representantes da elite burocrática. Bem como as proposições neoliberais se radicaram nas demais esferas de governo.
O entendimento, enfim, é de que a reforma do Estado FHC avançou até onde foi possível e politicamente satisfatória ao capital. Haja vista que à época houve a promulgação da Emenda 29, com previsão de garantia de recursos para a saúde pelos governos dos municípios, dos estados e federal. Porém, enfaticamente, a Emenda 29 transparece ser parte da estratégia para disciplinar os recursos da saúde que, revestida no simulacro de uma proposta com alcance popular, viabilizaria os investimentos de interesses privados a ser completada com a destruição do SUS. Contudo, os segmentos capitalistas ligados à saúde não puderam contar com o timing político favorável à reversão em benéficos próprios das perspectivas de mobilização dos recursos públicos financeiros em montantes colossais e garantidos que a nova emenda constitucional projetava. Primeiramente, houve a necessidade política de dar tempo ao tempo para o governo se refazer do esforço despendido na venda das empresas estatais a preços aviltantes. Fatos que não deixaram de melindrar a opinião pública, mesmo tendo sido um processo realizado com a escamoteação de informações sobre o processo de desestatização e o deliberado cerceamento de participação da sociedade civil, principalmente das classes populares, no debate que o assunto exigia.
A alternativa prudencial parece ter sido a de aguardar momentos propícios para, então, voltar à privatização de atividades com notório interesse social e sujeitas à mobilização política de segmentos populares que se sentissem prejudicados, como, por exemplo, a saúde pública, previdência social, grandes extensões do território nacional destinado à agricultura em larga escala, e, no plano dos negócios, as vendas do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e o que ainda havia de público na Petrobras. Todavia, a alteração do mando político no cenário nacional, em 2003, alterou substancialmente essas pretensões.
A partir de 2003, os setores privados voltaram à carga com o objetivo de mercantilizar a saúde no Brasil, com o apoio sustentado na parceria com o Banco Mundial, instituição que, segundo RIZZOTTO (2000), age nos “... interesses político/ideológicos e econômicos que tem permeado determinados processos, aparentemente favoráveis à consolidação do SUS, mas que em realidade modificam substancialmente a configuração original deste Sistema”. Como parte de sua estratégia, essa instituição financeira internacional publicou, em 2008, o livro Desempenho hospitalar no Brasil: em busca da excelência, de autoria de Gerard La Forgia e Bernard Conttolenc, representantes da Interhealth Soluções em Saúde e da Universidade de São Paulo. Em síntese, os autores procuram apontar a incapacidade de o sistema hospitalar brasileiro se apresentar em níveis de eficiência exigidos para atender a demanda (sic) crescente, e, implícita e explicitamente, indicam como solução a privatização do sistema de saúde, portanto, com a exclusão dos princípios da equidade, universalidade e gratuidade no formato original do SUS, sustentado na CRFB, Art. 196, e Leis nº 8080/1990 e 8142/1990.
A eficiência do aparelho estatal, alinhada no discurso neoliberal desses autores, é estabelecida na lógica recursos/custos/oferta/demanda/lucro em saúde, e deverá se propagar, continuamente, na fundamentação da aliança entre o Estado e o mercado de saúde. Não é difícil compreender que o estratagema é permitir o processo de cessão paulatina, pelo Estado, dos aparelhos de saúde, concomitante com o repasse de recursos públicos, perdão de dívidas e incentivos fiscais a grandes grupos privados constituídos segundo as regras do terceiro setor, seguradoras e grandes empresas de hospitais. No tempo em que se enalteceriam, com instrumentos de marketing político, os direitos individuais e não mais da sociedade como pedagogia-subliminar de controlar e transformar as necessidades de saúde em demandas de serviço.
A proposta dessas políticas de saúde não se efetiva a partir das causas de aumento das necessidades de saúde (promoção e proteção de saúde; prevenção, tratamento e reabilitação de doenças), mas nas formas de encontrar condições (infraestrutura hospitalar, tecnologias de última geração, geralmente importadas, centralização de atendimentos em grandes hospitais em cidades polos, com o objetivo de ganhos de escala, transportes de pacientes, precarização do exercício da medicina, etc.) para dar conta do aumento da demanda (sic). Em outras palavras, a qualidade da saúde dá lugar à quantidade de atendimento. Isto é, a saúde deixa de ser um bem público como direito social. Para se afirmar no contexto das definições segundo as planilhas de custo, como forma de se manter os riscos financeiros sob o controle rígido em busca do máximo lucro, expressão objetiva da gestão por resultados, conforme explicito na Reforma de FHC. Os objetivos da saúde deixariam de ser a conquista do bem viver, quando, então, passariam a ser geridos, não no enfrentamento das causas de necessidades vinculadas aos limites e fragilidades das pessoas, mas a partir de adequações dos recursos determinados pela imagem-objetivo do lucro. Em resumo, a necessidade de saúde transformar-se-ia, pois, em demanda de saúde, por conseguinte em mercadoria a ser pesada, vendida e comprada, por quem, evidentemente, tivesse dinheiro.
A proposição se completa na mensuração de resultado das ações na saúde através de metodologias externas de controle de qualidade ou autorregulação. Uma prática ilusória, pois o atributo saúde implica uma dimensão qualitativa e subjetiva que transcende qualquer método externo. Ademais, o corporativismo na autorregulação é decisivo diante da avidez do capital representado por grandes organizações privadas de saúde, as agências reguladoras e o próprio BIRD. A estratégia é, assim, desmontar, política e midiaticamente, a estrutura brasileira de saúde fazendo romper os ganhos sociais representados pelo SUS, com o sucateamento final do aparelho estatal de saúde, a partir da restrição do investimento público e da renuncia fiscal pelas diferentes esferas de governo em favor dos planos privados de saúde, pelo menos até quando o sistema permanecer nas mãos do Estado e a saúde como direito social estiver viva na consciência da sociedade civil, para, então, doar ou subordiná-lo à iniciativa privada, organizações do terceiro setor, cooperativas de saúde e seguradoras em geral.
* Economista, Mestre em Ciências Sociais, ex-professor da UFMG e da PUCMINAS, atualmente é Pesquisador Associado do CEDEPLAR/UFMG
Referências:
BERQUÓ, Laura Taddei Alves Pereira Pinto. O princípio da eficiência e o setor público não estatal. In: SEMINÁRIO BALANÇO DA REFORMA DO ESTADO NO BRASIL – 6 a 8 de agosto de 2002, Brasília/DF, MPOG, 1999.
RIZZOTTO, Maria Lúcia Frizon. O Banco Mundial e as políticas de saúde no Brasil nos anos 90. Unicamp, 2000.
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