A alfabetização de hoje implica saber o que é código, documento e atualidade, afirma Divina Frau-Meigs
Clarinha Glock
Clarinha Glock
IPS: O que é a transalfabetização?
DIVINA FRAU-MEIGS: É saber ler, escrever, calcular e computar. Contudo, computar inclui entender estas três categorias de informação: código, documento e atualidade/imprensa. Deve-se capacitar alunos e docentes. O papel da escola é esclarecer e permitir às pessoas entender todo tipo de conteúdo, modificá-los e comentá-los.
IPS: Qual é o principal obstáculo?
DFM: Os estudantes acreditam que sabem tudo, a partir de sua perspectiva de lidar com computadores e tablets. E os professores dizem que se os alunos tiverem bons conhecimentos para ler e escrever é suficiente. É necessário romper essas resistências com sensibilização, em aulas práticas. Por exemplo: peço aos alunos que procurem toda informação que precisam para seus projetos. Eles respondem: “há milhões de dados, não sei por onde começar”. Ensinar a eliminar, avaliar, qualificar, assessorar, mudar, esse é o papel da escola. É uma maneira de aprender a aprender, que é o que devemos voltar a colocar no centro do projeto curricular.
IPS: Como aplicar estas propostas em países onde o pessoal docente ainda é mal remunerado?
DFM: Não estou certa de que se deva colocar o salário em primeiro lugar. Por isto falo da necessidade de estabelecer um novo contrato social. Devemos voltar a decidir que a escola importa, que a alfabetização importa e que hoje em dia é imprescindível a alfabetização eletrônica. Uma vez que estejamos de acordo sobre qual é nossa missão, aí sim poderemos discutir salários e condições dentro e fora da aula. A transalfabetização não ocorre somente na escola. Os ritmos escolares mudam, porque os alunos podem se conectar à noite, fora da sala do ambiente escolar. O papel do professor também será diferente. É preciso valorizar seu salário, mas sabendo o que requer para sua formação e as novas condições de horários, ritmos e recursos. A decisão deve ser compartida pelo por docentes, ministérios, sindicatos, empresas e estudantes, tal como um novo contrato social.
IPS: E como seria esse novo contrato social?
DFM: Desde o século 19, o contrato social tem sido de uma escola livre, pública – embora muitas sejam privadas – e secular. Deve-se incorporar a ela o caráter de “aberta” mediante a informática, que dá acesso a muitos conteúdos de outros países e culturas. Com a informática, as ideias podem ser desenvolvidas ao máximo. E, se a utilizarmos bem, poderá empoderar a todos. Também é necessário ampliar o contrato com a concepção dos direitos humanos que não existia no século 19. Em 1948, depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), nasceram os direitos humanos universais e a internet. As duas ferramentas – moral e técnica – nasceram ao mesmo tempo. É preciso tornar os jovens partícipes de um futuro positivo. Isto se faz com valores. Queremos ser pessoas criativas, expressivas, dignas, participativas, educadas. É isso o que motivará as pessoas a irem à escola e também a mudá-la. Construído o consenso, depois virá a discussão sobre salários e recursos.
IPS: E como está sendo implantado este novo contrato social na França?
DFM: O problema francês, como o de outros países, é a mudança de escala. Há experiências de tamanho pequeno que já funcionam em escolas. Mas um sistema laico, secular, público, aberto e livre tem de ser acessível a todos. Agora, em maio, teremos uma reunião em Lyon com funcionários dos ministérios. Devemos convencer os que tomam as decisões, porque se eles não nos acompanham, não promoveremos esta mudança.
IPS: Não se trata apenas de dotar as escolas de computadores…
DFM: Absolutamente, não. Inclusive em países pobres muitas pessoas têm um portátil. Os preços estão baixando, cada vez há mais aplicativos livres e abertos, pode-se baixar tudo, e quanto mais, melhor. Mas é preciso capacitar sobre transalfabetização para entender o desenho das plataformas, como editar seus conteúdos e utilizar o que existe, avaliá-lo, informá-lo e arquivá-lo. Para isto já temos pessoas formadas, invisíveis ao sistema, que são os bibliotecários. Eles se informatizaram há tempos. Na França, estamos capacitando-os para que também sejam formadores/educadores. A expressão oficial é “professor bibliotecário”: não são apenas ajudantes, podem mostrar às crianças a informação como código, como documento e como atualidade, algo que os professores em geral não fazem. Seu papel é saber buscar, questionar, fazer boas perguntas e depois, quando se obtém resultados, selecionar, guardar e agregar todas as ideias para fazer um documento próprio do aluno. Não estamos começando do zero. A Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias, com sede na Holanda, é forte e tem filiais em cada país.
IPS: Quais diretrizes a União Europeia emprega para regular os meios de comunicação?
DFM: A diretriz Televisão Sem Fronteiras foi revista e transformada em Serviços de Comunicação Audiovisual. As empresas europeias não podiam, por exemplo, fazer publicidade de produtos nos filmes. Protestavam porque estavam perdendo a batalha contra os norte-americanos, pois estes podiam. Isto foi concedido e também mais espaço para publicidade. Como contrapartida, decidimos incentivar os países a fazerem educação para a mídia. O Parlamento Europeu fez uma recomendação e as diretrizes estão em vigor desde 2010. A ideia está avançando, mas não recebeu mais recursos, então precisamos dividir o que existe para uma nova tarefa. O risco é que a educação para a mídia acabe sendo privatizada, porque a escola não pode fazê-la.
IPS: E o que é a Hollyweb?
DFM: A Hollyweb é uma associação entre os maiores produtores de mídia clássica e audiovisuais com os principais meios digitais, como Google, Disney, General Electric, Microsoft, Apple. Alguns estão se transformando em editores de conteúdos, têm escolas e penetram em outras. Já o faziam antes, mas, com as oportunidades de autopublicação e produção de conteúdos a baixo custo, aproveitam para vender seus serviços. É um sistema que está semiprivatizado. O problema não é os conteúdos serem bons ou maus, mas o princípio, a maneira de organizar sua distribuição na escola. Isto não é gratuito, tem um preço que devemos avaliar em termos de valores.
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