Pouco a pouco, o Iraque está afundando em uma crise política e religiosa que parece estar levando o país inexoravelmente de volta ao auge da guerra civil, entre 2006 e 2009, quando milícias xiitas e combatentes da Al Qaeda cometiam massacres diariamente.
Christophe Ayad
Christophe Ayad
Pessoas participam de funeral de soldado iraquiano em Bagdá (Iraque)
Ainda não é certo que o pior vá acontecer, mas os incidentes de Huweijah, na terça-feira (23), nos quais 25 manifestantes sunitas e dois soldados morreram, são preocupantes em vários aspectos. Esse ataque do Exército, ordenado pelo primeiro-ministro xiita Nuri al-Maliki, contra um protesto de manifestantes sunitas na turbulenta província de Kirkuk, levou a uma espiral de violência que causou a morte de 110 pessoas em dois dias.
Esses atos de violência são os mais graves desde que começou a "intifada" sunita no Iraque, no fim de dezembro de 2012. Esse movimento de manifestantes, desencadeado após a tentativa de prisão de Rafa al-Issawi, ministro da Fazenda e figura em ascensão do cenário político sunita, pretendia denunciar a política de opressão e de discriminação conduzida por Maliki em relação a seus adversários políticos e religiosos.
O "movimento popular" também expressava o mal-estar dos sunitas, os maiores perdedores no Iraque pós-Saddam Hussein desenhado pela administração Bush, que havia optado por se apoiar nos xiitas e nos curdos.
Radicalização do movimento
Mas o agravamento da crise política e a recusa do chefe do governo em dar uma resposta global às frustrações exprimidas pelos manifestantes contribuíram para deteriorar e radicalizar o movimento. Pouco a pouco, os extremistas, partidários da Al Qaeda ou da seita religiosa dos Naqshbandi, estão se impondo no lado sunita, arrastando-o para uma escalada de violência de resultado incerto.
Na terça-feira (23), o Exército tentou dispersar à força um acampamento de manifestantes em Huweijah, após um ultimato que os ordenava a entregarem os responsáveis pelo assassinato de um soldado na semana anterior. A intervenção sangrenta dos militares suscitou uma onda sem precedentes de represálias nas províncias de Ninive (Mosul), Salaheddine (Tikrit) e Anbar, principais bastiões da presença sunita no Iraque. Em Ramadi, por exemplo, capital da província de Anbar, seis soldados foram mortos e um caminhão militar foi incendiado.
Mais grave ainda, insurgentes se apossaram da cidade de Souleimane Pak, nos territórios do Norte disputados entre árabes e curdos. Enquanto isso, ataques a mesquitas sunitas em Bagdá e em seu subúrbio trazem o temor de que voltem à ação milícias xiitas que até então estavam dormentes.
Ruptura acentuada entre xiitas e sunitas
Também no plano político, o ataque de Huweijah acentuou a ruptura entre xiitas e sunitas. Dois novos ministros sunitas pediram demissão do governo Maliki, dentro do qual Saleh al-Mutlak, um ex-membro do partido Baath, próximo de Saddam Hussein, agora aliado do novo governo, é praticamente o único representante dessa comunidade. "Em vez de jogar o jogo da divisão de poder, Nuri al-Maliki procurou radicalizar os sunitas para unir atrás de si o lado xiita, apavorado com uma possível volta da guerra civil", analisa seriamente um diplomata. Isso é ainda mais preocupante pelo fato de que os partidos curdos também suspenderam sua participação no governo.
Enquanto em 2009-2010 Nuri al-Maliki e Iyad Allawi, ambos xiitas – o primeiro, um islamita moderado, o segundo, laico - , disputavam os votos sunitas, o palco político iraquiano agora se casa quase que perfeitamente com as linhas de ruptura religiosas. Maliki se tornou um líder xiita, apoiado por seu inconveniente vizinho e aliado iraquiano, ao passo que Allawi sumiu do cenário político.
Quanto aos políticos sunitas, ou eles foram sendo dispensados um a um pelo hábil Nuri al-Maliki, ou eles foram forçados a se radicalizar por uma "turba sunita" incandescente e liderada por ulemás, tais como os xeques Abdelmalik al-Saadi, refugiado em Amã, e Rafa al-Rifai, instalado em Souleimaniyé, no Curdistão do Iraque. "São nossos marjas", declarou recentemente em Ramadi um manifestante que estava no protesto, retomando um termo religioso próprio dos xiitas do Iraque.
"Virada"
Em Falluja, o xeque Khaled Hammoud al-Joumaili lidera os protestos e o acampamento instalado na entrada da cidade. É um naqshabandi, uma confraria sufi originária do subcontinente indiano, que defende uma visão salafista e radicalmente antipolítica.
"Com os acontecimentos de Huweijah, pode-se falar que houve uma virada", analisa Myriam Benraad, pesquisadora associada ao instituto Science Po Paris e ao Iremam de Aix-en-Provence. Para ela, o incidente ilustra sobretudo "a deriva autoritária do primeiro-ministro Nuri al-Maliki, empenhado em um vale-tudo militar crescente à medida que a situação da segurança vai escapando de seu controle".
Em conflito aberto com o líder curdo Massoud Barzani, detestado pela opinião pública sunita e menosprezado até pelos xiitas – sobretudo pelos partidários de Moqtada al-Sadr - , Nuri al-Maliki está mais isolado, mas também mais poderoso do que nunca. Ou ele acabará renunciando, ou ele se manterá a qualquer preço no poder, arrastando seu país para uma guerra civil.
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