Esta semana, no ônibus, me veio de súbito uma pergunta: que música seria mais representativa do golpe militar de 64? E outras perguntas semelhantes: qual canção, quais canções, que compositor seria mais representativo daqueles anos inaugurados em um primeiro de abril? E não sei se por acaso, ou se por felicidade do acaso, no rádio do ônibus começou a tocar:
Urariano Mota
Urariano Mota
“Meu amor está tão longe de mim
Meu bem não seja tão ruim
Escreva uma carta, meu amor
E diga alguma coisa, por favor
Meu bem não seja tão ruim
Escreva uma carta, meu amor
E diga alguma coisa, por favor
Diga que você não me esqueceu
E que o seu coração ainda é meu
Escreva uma carta, meu amor
E diga alguma coisa, por favor
E que o seu coração ainda é meu
Escreva uma carta, meu amor
E diga alguma coisa, por favor
O beijo que você me deu
Eu guardo até hoje o calor
Escreva uma carta, meu amor
E diga alguma coisa, por favor”
Eu guardo até hoje o calor
Escreva uma carta, meu amor
E diga alguma coisa, por favor”
Essa canção me fez lembrar, como num estalo, que Roberto Carlos foi o compositor mais representativo daqueles anos. Não sei se conseguirei me fazer entender.
Quando falamos em música e 1964, a associação imediata aos anos de ditadura é sempre a dos grandes compositores que, contra o golpe militar, se viram metidos num embate. Então nos lembramos de imediato de Chico Buarque, de Geraldo Vandré. Fica mal com Deus quem assim não se lembrar. Mas a associação imediata é sempre a da superfície. O imediato sempre vem ao que estamos acostumados por tradição, por uso, e até por força da lei do menor esforço. Lembrar de fato é mergulhar, reviver, viver, entrar de volta na pele daqueles anos. Quando assim mergulhamos, quando voltamos a ser aquele rapazinho magriço em 1965
“Meu amor está tão longe de mim
Meu bem não seja tão ruim
Escreva uma carta, meu amor
E diga alguma coisa, por favor …”
Meu bem não seja tão ruim
Escreva uma carta, meu amor
E diga alguma coisa, por favor …”
Essa voz suave que nos chega abre espaço para uma segunda voz, que nos sopra “o diabo não tem chifres”. Entendam. Sabemos, claro, que a lembrança mais funda de uma época vem misturada a pó, a disfarces. A lembrança mais funda pode não ser a época objetiva. Mas o que será mesmo a realidade objetiva sem a apreensão dela por um homem? Quero dizer, o que há mesmo de objetivo na beleza de um rio sem olhos que o vejam? Dizem-nos “se os teus olhos se fecharem, o rio continuará lá, independente dos teus olhos. Isto é objetivo”. Ao que respondemos, para que mesmo serve esse rio objetivo sem olhos que bebam a sua beleza? Água em si não é bela. É líquido, fórmula química, fria natureza. Então voltamos. A gente sabe que a lembrança daqueles anos muito tem a ver com todos os rádios, em todos os lugares, tocando
“De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar
se você não vem e eu estou a lhe esperar
só tenho você no meu pensamento
e a sua ausência é todo meu tormento
quero que você me aqueça nesse inverno
e que tudo mais vá pro inferno
se você não vem e eu estou a lhe esperar
só tenho você no meu pensamento
e a sua ausência é todo meu tormento
quero que você me aqueça nesse inverno
e que tudo mais vá pro inferno
De que vale a minha boa vida de play boy
se entro no meu carro e a solidão me dói
onde quer que eu ande, tudo é tão triste
não me interessa o que de mais existe
quero que você me aqueça nesse inverno
e que tudo mais vá pro inferno
se entro no meu carro e a solidão me dói
onde quer que eu ande, tudo é tão triste
não me interessa o que de mais existe
quero que você me aqueça nesse inverno
e que tudo mais vá pro inferno
Não suporto mais você longe de mim
quero até morrer do que viver assim
só quero que você me aqueça nesse inverno
e que tudo mais vá pro inferno.”
quero até morrer do que viver assim
só quero que você me aqueça nesse inverno
e que tudo mais vá pro inferno.”
A gente sabe. Então vêm perguntas dos resistentes velhinhos do fã-clube do Rei: “Fazer sucesso naqueles anos da ditadura é o mesmo que ser o compositor da ditadura? Por acaso a música do Rei saía da boca dos generais? Roberto Carlos tem culpa de ter sido um sucesso estrondoso em 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73…?”. Por esse critério, reconhecemos, arrastaríamos todos os grandes sucessos desses anos, e diríamos que seus autores foram e são por isso culpados. Então entendam, por favor, que o sucesso não é o critério – embora, forçoso é dizer, possa oferecer uma pista daqueles anos. Para melhor compreensão, nos aproximemos de 1965.
Quando Roberto Carlos cantou em todos os rádios do Brasil, ele veio dentro de um projeto, de um programa que arrebentou em 65. “Em 1965, estreou ao lado de Erasmo e Wanderlea o programa Jovem Guarda, que daria nome ao movimento”, dizem as notas. O Jovem Guarda se opunha ao O Fino da Bossa, com Elis Regina. Enquanto O Fino da Bossa fazia uma ponte entre os compositores da velha guarda do samba e os compositores de esquerda, de convicções socialistas, o Jovem Guarda…
“Eu vou contar pra todos a história de um rapaz
que tinha há muito tempo a fama de ser mau
seu nome era temido sabia atirar bem
seu gênio violento jamais gostou de alguém
que tinha há muito tempo a fama de ser mau
seu nome era temido sabia atirar bem
seu gênio violento jamais gostou de alguém
E ninguém jamais viveu pra dizer
que o contrariou sem depois morrer
nos duelos nem piscava,
no gatilho ele era o tal
todos que o desafiavam
tinham o seu final…”
que o contrariou sem depois morrer
nos duelos nem piscava,
no gatilho ele era o tal
todos que o desafiavam
tinham o seu final…”
ou
“Quem não acreditar
venha ver a multidão
que com ela quer dançar
ela adivinha que eu
estou sofrendo
também querendo
com ela dançar…”
venha ver a multidão
que com ela quer dançar
ela adivinha que eu
estou sofrendo
também querendo
com ela dançar…”
“O Rei, o Rei não tem culpa…”, diz-nos um senhor encanecido, ex-jovem guarda (e como envelheceu a jovem guarda!). “O Rei não tem culpa…”. Sim, compreendemos: quem assim nos fala quer apenas dizer, Roberto Carlos não tem culpa de fazer o medíocre, que falava aos corações da massa jovem daqueles anos. À juventude alienada, certamente, mas juventude de peso, em número, que ganha sempre da minoria de jovens estudiosos. Que mal há em falar para a sensibilidade embrutecida mais ampla? Certo, Roberto Carlos não tem culpa de não compor algo como
“Tristeza não tem fim,
felicidade, sim.
felicidade, sim.
A felicidade é como a pluma
que o vento vai levando pelo ar
voa tão leve, mas tem a vida breve
precisa que haja vento sem parar…”
que o vento vai levando pelo ar
voa tão leve, mas tem a vida breve
precisa que haja vento sem parar…”
Certo, compreendemos, ninguém é louco de pedir ao Rei o impossível. Certo, concordamos que ele não tem culpa de macaquear a revolução musical dos Beatles, de macaquear em versões bárbaras, em caricaturas dos cabelos longos, alisados a ferro e banha, para lisos ficarem como os dos jovens de Liverpool. Toucas, acordes “jovens”, vestuário, um arrebentar de norte a sul do Brasil, que mal há? Claro que não há mal. Mas…
Meus amigos, chega de rodeios. Tentemos atingir a raiz, o específico. Vamos adiante, pois começaremos por dizer: em relação à música popular, o que caracterizou a ditadura militar no Brasil foi o veto, a censura absoluta a qualquer alusão política nas letras. O veto, o corte, o mutilar a canção por qualquer insinuação política foi ampliado até a mais leve crítica a qualquer aspecto social ou físico da paisagem brasileira. Tinham passagem pelo apertado funil, ou melhor, eram bem-vindas as canções mais ufanistas como
“As praias do Brasil ensolaradas,
o chão onde o país se elevou,
a mão de Deus abençoou
mulher que nasce aqui tem muito mais amor.
o chão onde o país se elevou,
a mão de Deus abençoou
mulher que nasce aqui tem muito mais amor.
O céu do meu Brasil tem mais estrelas,
o sol do meu país mais esplendor.
A mão de Deus abençoou,
em terras brasileiras vou plantar amor.
o sol do meu país mais esplendor.
A mão de Deus abençoou,
em terras brasileiras vou plantar amor.
Eu te amo, meu Brasil, eu te amo!
Meu coração é verde, amarelo, branco, azul anil.
eu te amo, meu Brasil, eu te amo!
Ninguém segura a juventude do Brasil…” (Don e Ravel)
Meu coração é verde, amarelo, branco, azul anil.
eu te amo, meu Brasil, eu te amo!
Ninguém segura a juventude do Brasil…” (Don e Ravel)
É sintomático em Roberto Carlos a passagem de cantor da juventude, da jovem guarda, para cantor “romântico”. Essa passagem se dá na medida em que os jovens de todo o mundo deixam de ser apenas um mercado de calças Lee e Coca-Cola, e passam a explodir em protestos contra a guerra do Vietnã, até mesmo em festivais de rock, como em Woodstock. Ou, se quiserem numa versão mais brasileira, o Rei Roberto se torna um senhor “romântico” na medida mesma em que as botas militares pisam com mais força a vida brasileira. Ora, nesses angustiantes anos o que compõe o jovem, o ex-jovem, que um dia desejou que tudo mais fosse para o inferno? – Os títulos dizem bem: Eu te amo, te amo, eu te amo, As canções que você fez pra mim, As flores do jardim da nossa casa, e, claro, para que não me vejam má vontade, Sua Estupidez:
“Meu bem, meu bem,
você tem que acreditar em mim
ninguém pode destruir assim
um grande amor …”
você tem que acreditar em mim
ninguém pode destruir assim
um grande amor …”
É claro, já se vê que a passagem do Roberto Carlos Jovem Guarda para o senhor “romântico” não se dá pelo envelhecimento do seu público. Ora, de 1965 a 1970 correm apenas 5 anos. O envelhecimento é outro. Nesses 5 correm sangue e enfurecimento da ditadura militar, no Brasil, e crescimento da revolta do público “jovem”, no mundo. Enquanto explodem conflitos, a canção de Roberto Carlos que toca nos rádios de todo o Brasil é “Vista a roupa, meu bem” (e vamos nos casar). Ora. Se fizéssemos um gráfico, se projetássemos curvas de repressão política e de “romantismo” de Roberto Carlos, veríamos que o ápice das duas curvas é seu ponto de encontro. O que é uma coincidência, quero dizer, os dois pontos coincidem.
O namoro do Rei Roberto Carlos com o regime não foi um breve piscar de olhos, um flerte, um aceno à distância. Não sei se me explico bem. O Rei Roberto não compôs só a música permitida naqueles anos de proibição. O Rei não foi só o “jovem” bem-comportado, que não pisava na grama, porque assim lhe ordenavam. Ele não foi apenas o homem livre que somente fazia o que o regime mandava. Não. Roberto Carlos foi capaz de compor pérolas, diamantes, que realçavam o mundo ordenado pelo regime. Ora, enquanto jovens estudantes eram fuzilados e caçados, enquanto na televisão, nas telas dos cinemas, exibia-se a brilhante propaganda “Brasil, ame-o ou deixe-o”, o que faz o nosso Rei? O Rei irrompe com uma canção que é um hino, um gospel de corações ocos, um som sem fúria de negros norte-americanos. Ora, o Rei ora:
“Jesus Cristo, Jesus Cristo, eu estou aqui
olho pro céu e vejo uma nuvem branca que vai passando
olho pra terra e vejo uma multidão que vai caminhando
como essa nuvem branca, essa gente não sabe aonde vai
quem poderá dizer o caminho certo é Você, meu Pai
olho pro céu e vejo uma nuvem branca que vai passando
olho pra terra e vejo uma multidão que vai caminhando
como essa nuvem branca, essa gente não sabe aonde vai
quem poderá dizer o caminho certo é Você, meu Pai
Toda essa multidão tem no peito amor e procura a paz
e apesar de tudo a esperança não se desfaz
olhando a flor que nasce no chão daquele que tem amor
olho pro céu e sinto crescer a fé no meu Salvador….”
e apesar de tudo a esperança não se desfaz
olhando a flor que nasce no chão daquele que tem amor
olho pro céu e sinto crescer a fé no meu Salvador….”
Isso foi em 1971. Depois, o Rei Roberto, em sua experiência internacional, manteve a velha coerência. Olhem as gracias que ele rendeu ao ditador Pinochet aqui:
Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997).
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