– 3 DE MAIO DE 2013
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Assassinatos de jornalistas e chuva de processos que inviabilizam a atuação profissional tornam país um dos mais perigosos do mundo para exercício do jornalismo investigativo
Por Bajonas Teixeira de Brito Junior *, no Congresso em Foco
As notícias sobre a estranha condenação do jornalista Lúcio Flávio Pinto, os dados acerca do aumento chocante do número de jornalistas assassinados em 2012 e a constatação da quase completa impunidade em crimes desse gênero indicam um cenário de alto risco para a prática do jornalismo investigativo e crítico — leia-se: para o exercício do jornalismo democrático — no Brasil atual. Entre as diversas fontes que podem ser citadas para sustentar essa constatação, escolhemos uma matéria da agência EFE, de outubro de 2012, publicado no G1 com o título “Brasil é o quarto país mais perigoso do mundo para jornalistas“. Relata a matéria:
“O Brasil é o quarto país mais perigoso para os jornalistas, informou nesta terça-feira (2) a Press Emblem Campaign (PEC), uma organização civil que busca a proteção dos comunicadores espalhados pelo mundo. Sete jornalistas foram assassinados no Brasil neste ano, o que deixa o país atrás apenas de Síria (32), Somália (16) e México (10). Ao todo, 110 profissionais foram assassinados em 25 países nos primeiros nove meses do ano, um número ‘jamais registrado em um período similar’, disse o secretário-geral da PEC, Blaise Lempen, em Genebra, onde funciona a entidade.”
O Brasil aparece em quarto lugar no momento em que o número de jornalistas assassinados no mundo chega a um montante “jamais registrado em um período similar”. Seria preciso mais que isso para nos deixar bastante alarmados? Dificilmente. No entanto, por mais eloquentes que sejam os números, a situação é ainda mais grave quando refletimos sobre eles. Um mínimo de consideração qualitativa dos países que disputam os primeiros lugares com o Brasil dissipa qualquer dúvida. Vejamos: a Síria vive uma guerra civil de extrema violência, agravada pela ajuda em armamentos e recursos da parte da OTAN aos rebeldes. Já o México, engolfado pela corrupção e pelo narcotráfico, atravessa uma espécie de “guerra do fim do mundo” enquanto a Somália, por sua vez, depois de vitimada por tantas tragédias, já é o próprio fim do mundo.
O que podemos concluir? Que o Brasil, que a crônica política teima em representar como país em plena floração da democracia, foi em 2012, dentre os países em situação institucional “normal”, o mais perigoso do mundo para jornalistas. Assim foi em 2012. Ou seja, num contexto sem paralelo de letalidade no exercício dessa profissão no mundo todo. Como documentamos adiante, o país viveu um salto vertiginoso no número de assassinatos de jornalistas quando observada a série histórica dos últimos 20 anos. Enquanto nos anos passados verificou-se em média menos de um assassinato por ano, em 2012 tivemos sete.
A ameaça da violência material não é o único risco que aflige a atuação do jornalista no exercício de sua atividade. Tanto na figura da pessoa singular como na de membros de um grupo profissional, a violência simbólica, ou institucional, não é menos nociva para a imprensa como instituição democrática, uma vez que se presta a inibir o espírito investigativo e a audácia crítica. Desde as legislações aviltantes contra os jornalistas na França, na Prússia e na Áustria no século XIX, os processos nos tribunais contra profissionais da imprensa têm sido um meio muito efetivo para silenciar os que ousam fazer denúncias.
Arrastar o jornalista de humilhação em humilhação, de sobressalto em sobressalto, fazendo-o penar durante anos nos corredores e salas de audiência dos tribunais, obrigá-lo a padecer o inferno de Dante dentro do pesadelo de Kafka, percorrendo a via crucis das expectativas frustradas e do sentimento de impotência sempre renovado, produz efeitos muito graves. O que por aí se almeja, mesmo que não se faça intervir a violência física, não deixa de resultar numa espécie de óbito, isto é, a morte profissional. Esta modalidade de morte, pelo sofrimento moral que acarreta, não é menos violenta que a morte física.
De fato, o que constitui a pessoa humana nas coletividades modernas é a dignidade fundamentada na ordem jurídica, para o que são acionadas as garantias essenciais de uma vida produtiva em sociedade: trabalho, proteção das liberdades, respeito à honra, segurança, etc. Ao privar um sujeito de seus meios de existência como pessoa humana (através do exercício de sua profissão), subtrai-se dele os fundamentos que sustentam suas perspectivas de valor e significação no âmbito do Estado de Direito. No caso do jornalismo, isso não poderia deixar de ter como efeitos a difusão de uma atmosfera de intimidação que, como é evidente, só pode ter efeitos muito nocivos para a liberdade de informação e o direito à informação. Que jornalismo investigativo e crítico é possível quando se está, permanentemente, sob a ameaça da dura lexdos tribunais? Uma tal situação, onde quer que se instale, rebaixa a consciência política do conjunto da sociedade, e tem naturalmente efeitos potencialmente desastrosos para as perspectivas da democracia.
A desproporção entre a indenização a que foi condenado o jornalista Lúcio Flávio Pinto, o pagamento de R$ 410 mil (ou 600 salários mínimos), e as indenizações que normalmente vemos sendo pagas no Brasil por crimes os mais contundentes (como racismo, homofobia, intolerância, etc.), ainda quando praticados por grandes empresas, que, em geral, não costumam ir além dos R$ 20 mil, e mesmo assim apenas nas raras vezes em que são punidos, deixa uma sensação de perplexidade.
No Brasil hoje parece lícito constatar a ação de duas pontas de uma mesma tenaz, ou as duas extremidades de uma mesma pinça, que se fecham sobre a prática do jornalismo investigativo e crítico com virulência cruel. Parece urgente que os profissionais da imprensa, os pesquisadores da comunicação, os Observatórios da Imprensa, a ABI, as entidades ocupadas com a segurança dos jornalistas, como a organização americana Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), as organizações da sociedade civil identificadas com a defesa das liberdades e da moralidade pública, como a OAB, passem à ofensiva para fazer recuar a onda de agressividade que ameaça, neste momento, as garantias tradicionalmente conferidas aos profissionais do jornalismo nos países desenvolvidos.
É preciso lembrar, voltando ao aspecto da violência física, que, como denunciou o Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ), entre 1992 e 2012 (duas décadas), 20 jornalistas foram assassinados no país, e que desses, 14 casos permanecem ainda não esclarecidos. Assim, a impunidade nos crimes de mando contra jornalistas chegou no país a 70%. Mas o mais preocupante é que, segundo os dados da PEC que citamos no início deste artigo, 7 assassinatos (mais de 30% dos casos) ocorreram em um único ano, em 2012. Isso indica duas coisas: 1) que houve um crescimento percentual desnorteante das mortes neste último ano e 2) que a democracia brasileira, ao invés de ilustrar um amadurecimento dos direitos humanos, desenha claramente uma curva na direção do barbarismo. O levantamento do Comitê para a Proteção dos Jornalistas constatou também que a maior parte dos jornalistas assassinados o foram por suas investigações e denúncias de práticas de corrupção. Ou seja: não só os crimes associados à corrupção resguardam a tradicional impunidade no Brasil, mas, sobretudo, crescem de forma exorbitante os crimes contra aqueles que denunciam os crimes da corrupção. Antes a corrupção não ousava o que agora se torna rotina.
Como deixar de tirar as conclusões que se impõem, em especial no que diz respeito à letalidade da “democracia” brasileira que, em todos os aspectos significativos de tolerância e amadurecimento das relações humanas (seja quanto aos homossexuais, aos negros, aos jovens, às mulheres, aos jornalistas, aos índios, etc.), mostra tendências tenebrosas? No que diz respeito aos homossexuais, por exemplo, vemos a cada ano se repetirem as estatísticas que desmascaram o aumento da violência e do sadismo. Já em 2010, falava-se de “epidemia de ódio” contra os homossexuais, com 260 mortes. Esse número, em 2012, ao invés de cair, cresceu para 266 casos.
Ora, não é contraditório que os supostos “crimes” praticados com a caneta, isto é, aqueles atribuídos aos jornalistas e escritores que denunciam atos lesivos à democracia e ao interesse público, sejam objeto de penas severas por parte do Judiciário — como foi o caso com Emir Sader, em 2006, e agora com Lúcio Flávio Pinto —, enquanto os crimes perpetrados contra jornalistas adormeçam impunes antes de caírem no esquecimento? Como é possível que a impunidade de 70%, como assinalamos acima no caso das mortes de jornalistas, conviva com as elevadas penas aplicadas aos jornalistas que trabalham pela democracia?
Não esqueçamos que se, como é bem conhecido, numa guerra, para cada morto, se tem entre três e seis feridos, os danos são bem maiores do que os assassinatos permitem estimar. Quantos são hoje nos Brasil os jornalistas humilhados, perseguidos, intimidados, enfim, silenciados pelo poder conjugados das duas tenazes apontadas acima? Aqui está o depoimento de um deles extraído da matéria “70% dos assassinatos de jornalistas no Brasil ficam impunes”:
Após escrever reportagens sobre assassinatos extrajudiciais cometidos por maus policiais em 2003, o repórter especial paulistano J., de 54 anos, começou a receber ameaças e teve que “desaparecer” por 40 dias. Depois trabalhou por mais de quatro meses protegido por uma escolta armada.
“Muda tudo na sua vida. Você se dá conta que é extremamente vulnerável”, afirmou J. “A minha família ficou desesperada, se eu atrasasse cinco minutos era motivo para muita preocupação. Quase entrei em depressão”, disse.
E dentro da espiral de intensificação da violência instaurada no país contra a prática do jornalismo investigativo e crítico, que se deve ler o depoimento tão eloqüente do assassino do jornalista Décio Sá registrado na matéria do jornalista Zeca Soares publicada no G1. A naturalidade com que o executor narra sua ação, como uma mera trivialidade, não deixa qualquer margem a dúvidas sobre o quanto se banalizou a “execução extrajudicial”, digamos assim, de jornalistas no Brasil:
Policial: “Quê” que ele pronuncia pra ti na hora que tu olha ele e ele te olha? Tu lembra assim?
Jhonathan: Lembro. Ei, moço! Ei, moço!
Policial: Aí tu já?
Jhonathan: Aí eu já… agora diz que ele caiu sentado só de bruço, mas ele não caiu sentado. Ele levantou pra empurrar a mesa e eu atirei nele.
Policial: Ele levanta empurrando? Como se fosse empurrar a mesa?
Jhonathan: Empurrou a mesa. Talvez ele não chegou nem a empurrar a mesa, só fez menção, mas ele ia empurrar e eu atirei nele.
Policial: Na cabeça?
Jhonathan: Na cabeça.
Policial: Aí ele caiu como?
Jhonathan: Aí ele caiu “pra riba” da mesa, entendeu?
Policial: Aí os outros tiros que tu dá, ele tá em cima da mesa?
Jhonathan: Em cima da mesa! Ele ficou “em riba” da mesa.
Policial: Até a hora que tu saiu ele ficou em cima da mesa?
Jhonathan: Foi ligeiro moço! Isso é rapidão. É lau, lau, lau, lau e fui embora. Entendeu?
Policial: Quando tu dá as costas ele continua em cima da mesa?
Jhonathan: Continua em cima da mesa. Rapaz isso é questão de 5 segundos. Não gasta 5 segundos, não (leia a reportagem).
* Doutor em Filosofia, autor dos livros Lógica do disparate, Método e delírio e Lógica dos fantasmas. É coordenador da revista eletrônica Humanas e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
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