Para que serve um livro? Tola pergunta! Tantas são as respostas... Fico com apenas uma: para nos conectar a sensibilidade, juntar lembranças e exercitar a reflexão. Há poucos dias, ao ler as memórias de uma célebre escritora, deparei-me com uma rápida passagem sobre o hábito judaico de levar consigo a chave de casa, para onde for. Em instantes, fiz duas conexões que ficaram martelando aqui dentro.
Júnia Puglia
A primeira, de quando eu tinha uns vinte anos, já trabalhava num bomemprego – coisas dos começos de Brasília – mas não podia ter a chave de casa, privilégio restrito aos pais e ao irmão mais velho. Inconformada com a restrição, comprei a briga e ganhei, conquistando a bendita chave e o direito de entrar e sair quando bem entendesse. Pode parecer banal, mas esses embates familiares sobre as coisas do cotidiano tomavam proporções quase épicas, principalmente quando protagonizados por uma pentelha topetuda que achava que podia tudo, e que muito pouco lhe era permitido.A outra: alguns anos atrás, hospedei-me com uma família palestina árabe, em Amã. Apesar da rápida estadia, trago uma viva memória da paisagem árida, do calor e da cantoria prévia às cinco orações do dia, que me chegava de distintas direções por potentes alto-falantes. Chamou-me a atenção, como em nenhum outro lugar onde já estive, a demarcação do espaço público como território masculino. E também o tamanho dos apartamentos, verdadeiros solares empilhados, com salões, saletas, vários quartos, cada cômodo abrigando facilmente um desses ovos de codorna que andam vendendo por aqui, “com varanda gourmet e área de lazer completa para sua família”.Ali, fiz meu primeiro contato direto com personagens da diáspora palestina. Guardo no coração o relato que me fez a velha senhora da família, em seu parco inglês, sobre a casa onde moravam em Jerusalém até 1948, quando foram sumariamente expulsos para dar lugar aos judeus, que chegavam aos milhares da Europa. O destino foi a vizinha Jordânia.Supondo que seria um exílio temporário, levaram consigo a chave da casa, que ela tirou de uma caixa e me mostrou, enquanto terminava a história. Porém, como outros milhares de palestinos desalojados, foram impedidos de voltar, vítimas de um milenar, trágico e interminável balaio-de-gatos racial-político-religioso, produto da arrogância, da estupidez e da intolerância que se perpetuam em várias situações similares mundo afora. Uma única vez puderam visitar sua antiga morada, agora habitada por israelenses, que, por sua vez, não tinham ideia do drama por trás daquela casa. Consternados com a insólita visita, moradores e visitantes terminaram chorando juntos por uma situação na qual eram simples peças de um quebra-cabeça perverso.
Ambas as chaves ganharam vida. Nas mãos da moça ávida por alçar seu próprio voo, o objeto tomou a forma de pequenas asas, que depois ganharam envergadura. Lá na Jordânia, naquela caixa de madeira entalhada, o tesouro preservado com tanto sentimento por uma família exilada trazia uma história proibida de morrer.Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal
De um tudo. Ilustração de
Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto
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