Diário da Tunísia
Na Tunísia, que recebe o Fórum Social Mundial de 2013, tudo é novidade e choque. É a terra de Ben Ali, o ditador que fugiu com uma fortuna para a amiga (dele) Arábia Saudita, e do começo da primavera árabe. É a terra dos sacrifícios humanos que ainda continuam. O mais dramático foi o do líder da oposição assassinado, crime pelo qual ninguém ainda foi sequer formalmente acusado. Por Flávio Aguiar
Flávio Aguiar
Chegamos à Tunísia, terra de contrastes, como diria meu amigo Marco Aurélio Weissheimer! O Mediterrâneo e o deserto. A Europa e o Maghreb. A França e os bérberes. Ao longe, os beduínos. No momento estamos em Susa, a 160 km de Túnis, ao sul.
Na Tunísia, tudo é novidade e choque. Ben Ali, o ditador que fugiu com uma fortuna para a amiga (dele) Arábia Saudita, e o começo da primavera árabe. Os sacrifícios humanos que ainda continuam. O mais dramático foi o do líder da oposição assassinado – ninguém ainda foi sequer formalmente acusado por isso –, um crime político que desde os temos coloniais não ocorria por aqui.
Na antiguidade: Roma x Cartago. Após várias guerras insanas, Roma conseguiu destruir Cartago, a metrópole dos fenícios. Dando uma lição para os impérios mais modernos, Roma não só destruiu: arrasou Cartago. E ocupou esta região africana, transformando-a numa das suas mais ricas e povoadas províncias. No sítio da cidade inimiga, Roma construiu a orgulhosa Nova Cartago. Resultado: a Tunísia, junto com a Líbia, detém a maior área mundial de ruínas romanas, incluindo fabulosos mosaicos. Mais do que a Itália. No domingo visitamos o Museu Arqueológico de Susa. Os mosaicos romanos e primitos cristãos são simplesmente estupendos, atestando uma vida extremamente sofisticada entre os séculos 1 e 8 da era cristã. E de depois também, até o século 11.
Mas o aeroporto da capital, Túnis, se chama “Cartago”. Massas internacionais vêm ver as parcas ruínas na cidade dos fenícios, pátria de Aníbal, que quase derrotou os romanos, não o tendo feito menos por falta de capacidade militar do quer por falta de visão política. Terminou assassinado pelos arqui-inimigos. Mas dá nome, hoje, a restaurantes na Tunísia...
Bem chegamos a Túnis – eu e a minha esposa Zinka – de madrugada. Na van que nos conduzia ao hotel, a conversa com o chofer se deu naturalmente. Ele tentou me explicar a complicada questão da moeda tunisiana. É o dinar. Mas vale 1.000 unidade de uma outra que até hoje não soube decorar o nome. É mais ou menos como a antiga relação entre o cruzeiro e o milréis, ao tempo do primeiro Getúlio. Num táxi, em Susa, a Zinka me gritou: “estamos sendo roubados”. O taxímetro marcava 24.000. “Vai sair 24 dinares, 12 euros”, ela me falou, por um trajeto muito curto. Não era nada disso. Eram exatos 2 dinares e , digamos, 40 centavos. Eu também não tinha entendido. O chofer explicou. Paz na estrada.
Mas na van, o chofer me explicou que na Tunísia falta dinheiro. “Bem Ali levou tudo para a Arábia Saudita”, completou, referiondo-se ao avião em que o ex-presidente-ditador deixou o pais, acusado de ter consigo as reservas de ouro do Tesouro. Diz um grafite irônico em Susa: “No work, no money, nom problem”.
Dormimos algo atribulados por esses números. Sonhei com questões financeiras. Claro, sem solução, senão acordar e partir para a labuta. No dia seguinte, fomos para Susa, na margem sul do Mediterrâneo, a 160 km. de Túnis. É uma cidade de 3.000 anos de idade, contemporânea de alguma das Tróias de Homero.
No caminho – a pé – entre o hotel e a estação ferroviária – uma demonstração da paisagem. Nos inúmeros cafés, gente fumando que nem chaminé. Algumas mulheres assentadas neles – sinal de como a Tunísia é um país muçulmano liberal, e de como é uma falácia a idéia de que todo e qualquer “muçulmanismo” é fundamentalista. Nas ruas, uma mistura de trajes modernos, burkas, lenços, etc., tudo. De repente, uma discussão, quase uma briga. Os contendores estão perto de se agredirem. Recuamos, assustados.
Um simpático alguém se aproxima. “Vi que vocês procuravam a estação de trem. Podem vir comigo”. Fico desconfiado. Quererá dinheiro? Mas vamos seguindo o cara. Mais adiante, nova briga. Desta vez com uma mulher. Empurra daqui, puxa dali, a turma do deixa-disso enfia a mulher numa cabine de ônibus (talvez), o contencioso se afasta, o nosso novo guia comenta: “É a crise. E o sangue árabe”. Procuro amenizar: “a crise é assim em toda parte”. Ele insiste em que na Tunísia as pessoas estão demasiadamente de sangue quente.
Chegamos à estação. Ele se despede. Não quis dinheiro. Como? Ele me explica: “Sou chofer de táxi. Hoje é meu dia de folga. Foi um prazer.Boa viagem!”. Lição aprendida...
No trem, a paisagem se sucede: areais, cidades que parecem favelas brasileiras, das modernas, de tijolo, blocos e cimento armado, uma profusão de olivais, alguns parreirais (a Tunísia produz ótimos vinhos), ovelhas e pastores, cabanas pastoris extremamente primitivas e pobres, contrastando com as roupas ricas em cores, estilos muito ecléticos nas casas mais ricas ou remediadas, muita contrução, enfim, um tumulto de imagens.
Chegamos a Susa, vamos ao hotel. Cansaço, promessas de um fim de semana de repouso da viagem e da labuta sem fim. Ao entardecer, o contraste definitivo, súmula da Tunísia, promessa de deciframentos.
Estamos na sacada do nosso quarto no hotel. De frente para o mar. Ao ruído das vagas, se soma o canto do muezim. Para nós, tem algo de melancólico. Mas na sacada ao lado, nosso vizinho – um evidente tunisiano – liga o som numa melodia pop. A qualidade de ambas não tem comparação. A do muezim é sublime, exprimindo a plurissecular angústia diante da audência ou da presença de Deus (se Alá me permite assim chamá-lo). A melodia pop – repetitiva até o extremo da náusea – exprime algum outro tipo de ausência, será? Pode ser.
O contraste segue adiante. Começo a me exasperar. Zinka ameaça ligar pro apê vizinho pedindo silêncio. Fico preocupado. Como reagirá o vizinho pós-moderno?
De repente, ambas se calam. O do muezim, pelo adiantado da hora. A do vizinho, sabe-se lá porquê, talvez pelo fim da concorrência.
Isto será um símbolo das encruzilhadas tunisianas de hoje?
Não sei. Felizmente, naquele momento, o mar assumiu a regência da dissonante orquestra.
Na Tunísia, tudo é novidade e choque. Ben Ali, o ditador que fugiu com uma fortuna para a amiga (dele) Arábia Saudita, e o começo da primavera árabe. Os sacrifícios humanos que ainda continuam. O mais dramático foi o do líder da oposição assassinado – ninguém ainda foi sequer formalmente acusado por isso –, um crime político que desde os temos coloniais não ocorria por aqui.
Na antiguidade: Roma x Cartago. Após várias guerras insanas, Roma conseguiu destruir Cartago, a metrópole dos fenícios. Dando uma lição para os impérios mais modernos, Roma não só destruiu: arrasou Cartago. E ocupou esta região africana, transformando-a numa das suas mais ricas e povoadas províncias. No sítio da cidade inimiga, Roma construiu a orgulhosa Nova Cartago. Resultado: a Tunísia, junto com a Líbia, detém a maior área mundial de ruínas romanas, incluindo fabulosos mosaicos. Mais do que a Itália. No domingo visitamos o Museu Arqueológico de Susa. Os mosaicos romanos e primitos cristãos são simplesmente estupendos, atestando uma vida extremamente sofisticada entre os séculos 1 e 8 da era cristã. E de depois também, até o século 11.
Mas o aeroporto da capital, Túnis, se chama “Cartago”. Massas internacionais vêm ver as parcas ruínas na cidade dos fenícios, pátria de Aníbal, que quase derrotou os romanos, não o tendo feito menos por falta de capacidade militar do quer por falta de visão política. Terminou assassinado pelos arqui-inimigos. Mas dá nome, hoje, a restaurantes na Tunísia...
Bem chegamos a Túnis – eu e a minha esposa Zinka – de madrugada. Na van que nos conduzia ao hotel, a conversa com o chofer se deu naturalmente. Ele tentou me explicar a complicada questão da moeda tunisiana. É o dinar. Mas vale 1.000 unidade de uma outra que até hoje não soube decorar o nome. É mais ou menos como a antiga relação entre o cruzeiro e o milréis, ao tempo do primeiro Getúlio. Num táxi, em Susa, a Zinka me gritou: “estamos sendo roubados”. O taxímetro marcava 24.000. “Vai sair 24 dinares, 12 euros”, ela me falou, por um trajeto muito curto. Não era nada disso. Eram exatos 2 dinares e , digamos, 40 centavos. Eu também não tinha entendido. O chofer explicou. Paz na estrada.
Mas na van, o chofer me explicou que na Tunísia falta dinheiro. “Bem Ali levou tudo para a Arábia Saudita”, completou, referiondo-se ao avião em que o ex-presidente-ditador deixou o pais, acusado de ter consigo as reservas de ouro do Tesouro. Diz um grafite irônico em Susa: “No work, no money, nom problem”.
Dormimos algo atribulados por esses números. Sonhei com questões financeiras. Claro, sem solução, senão acordar e partir para a labuta. No dia seguinte, fomos para Susa, na margem sul do Mediterrâneo, a 160 km. de Túnis. É uma cidade de 3.000 anos de idade, contemporânea de alguma das Tróias de Homero.
No caminho – a pé – entre o hotel e a estação ferroviária – uma demonstração da paisagem. Nos inúmeros cafés, gente fumando que nem chaminé. Algumas mulheres assentadas neles – sinal de como a Tunísia é um país muçulmano liberal, e de como é uma falácia a idéia de que todo e qualquer “muçulmanismo” é fundamentalista. Nas ruas, uma mistura de trajes modernos, burkas, lenços, etc., tudo. De repente, uma discussão, quase uma briga. Os contendores estão perto de se agredirem. Recuamos, assustados.
Um simpático alguém se aproxima. “Vi que vocês procuravam a estação de trem. Podem vir comigo”. Fico desconfiado. Quererá dinheiro? Mas vamos seguindo o cara. Mais adiante, nova briga. Desta vez com uma mulher. Empurra daqui, puxa dali, a turma do deixa-disso enfia a mulher numa cabine de ônibus (talvez), o contencioso se afasta, o nosso novo guia comenta: “É a crise. E o sangue árabe”. Procuro amenizar: “a crise é assim em toda parte”. Ele insiste em que na Tunísia as pessoas estão demasiadamente de sangue quente.
Chegamos à estação. Ele se despede. Não quis dinheiro. Como? Ele me explica: “Sou chofer de táxi. Hoje é meu dia de folga. Foi um prazer.Boa viagem!”. Lição aprendida...
No trem, a paisagem se sucede: areais, cidades que parecem favelas brasileiras, das modernas, de tijolo, blocos e cimento armado, uma profusão de olivais, alguns parreirais (a Tunísia produz ótimos vinhos), ovelhas e pastores, cabanas pastoris extremamente primitivas e pobres, contrastando com as roupas ricas em cores, estilos muito ecléticos nas casas mais ricas ou remediadas, muita contrução, enfim, um tumulto de imagens.
Chegamos a Susa, vamos ao hotel. Cansaço, promessas de um fim de semana de repouso da viagem e da labuta sem fim. Ao entardecer, o contraste definitivo, súmula da Tunísia, promessa de deciframentos.
Estamos na sacada do nosso quarto no hotel. De frente para o mar. Ao ruído das vagas, se soma o canto do muezim. Para nós, tem algo de melancólico. Mas na sacada ao lado, nosso vizinho – um evidente tunisiano – liga o som numa melodia pop. A qualidade de ambas não tem comparação. A do muezim é sublime, exprimindo a plurissecular angústia diante da audência ou da presença de Deus (se Alá me permite assim chamá-lo). A melodia pop – repetitiva até o extremo da náusea – exprime algum outro tipo de ausência, será? Pode ser.
O contraste segue adiante. Começo a me exasperar. Zinka ameaça ligar pro apê vizinho pedindo silêncio. Fico preocupado. Como reagirá o vizinho pós-moderno?
De repente, ambas se calam. O do muezim, pelo adiantado da hora. A do vizinho, sabe-se lá porquê, talvez pelo fim da concorrência.
Isto será um símbolo das encruzilhadas tunisianas de hoje?
Não sei. Felizmente, naquele momento, o mar assumiu a regência da dissonante orquestra.
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