01/03/2013 às 00h00
Adornados com tema de desenho animado, os pequenos chinelos cor-de-rosa levantam poeira na rua de terra da Birindibinha, povoado rural de Cocal, município de 26 mil habitantes do interior do Piauí. Aos 6 anos, Bianca aproveita, sob um sol desumano, as últimas horas do que passará a chamar de férias. Logo, a menina de cabelos dourados se tornará estudante. O Grupo Escolar Joaquim Marques Cardoso, distante poucos metros de sua casa, não existia na década de 1980, quando Domingos Fontenele, seu pai, corria descalço pelas ruas do vilarejo. "A gente pisava na b... do cavalo pra não queimar o pé", lembra o lavrador, que foi analfabeto até chegar à maioridade.
Quando tinha a idade da filha única, Domingos ajudava o pai na roça. Seu papel era cuidar de bodes e jumentos. Ele atribui à "sorte" de ser caçula o fato de não ter passado fome, como ocorreu com seus nove irmãos. Todos moravam em uma pequena casa de taipa na Birindibinha. Do lado de dentro, somente um fogão a lenha, latas d'água e redes penduradas. "Naquele tempo, não tinha esse negócio de cama", conta Domingos, enquanto mostra seu quarto atual, com paredes alaranjadas e duas camas de casal. Em uma delas, dorme Bianca. "Sozinha", faz questão de registrar a pequena.
A simplicidade do povoado torna difícil imaginar a Birindibinha de 70 anos atrás. Testemunha ocular, Aprígio Fontenele, pai de Domingos, define o passado como "um tempo escuro". Sua infância no roçado não foi muito diferente da do filho: muitos irmãos e pouca comida. "A gente comia mal e pouco. Só via carne quando matava um passarinho", afirma o aposentado, que jamais pisou em uma escola. A miséria gritava tão alto na região que nos tempos de seca os já paupérrimos moradores do vilarejo eram surpreendidos com pedintes à porta. Suplicavam por meia xícara de farinha. A cena foi comum, segundo Aprígio, até o início da década de 1990.
Birindibinha, Cocal, o Piauí e o Nordeste continuam pobres e subdesenvolvidos, mas os chinelos cor-de-rosa de Bianca têm algo a dizer. Do emaranhado de fatores econômicos e políticos que fizeram emergir socialmente milhões de brasileiros, foi no Piauí que se observaram os resultados mais consistentes. Os dados disponíveis mais recentes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que o Estado liderou a redução do índice de extrema pobreza entre 1989 e 2009, quando registrou recuo de 44%, deixando no passado o primeiro lugar no ranking da mazela. Em 2009, Alagoas (21%), Maranhão (18%) e Pernambuco (17%) apresentavam índices de pobreza superiores aos do Piauí (15%).
"A gente comia mal e pouco. Só via carne quando matava um passarinho", afirma o aposentado Aprigio, que jamais pisou em uma escola
Aficionado pelo tema, o secretário estadual de Planejamento, Cezar Fortes, atualiza alguns números: "Em 1990, 60% da população do Piauí era extremamente pobre, o que, na prática, é miserável. Só não se diz assim porque o termo é considerado forte. Em 2011, este percentual estava em 14%. Se considerada apenas a população rural, caiu de 80% para 21%", afirma. Após o lançamento, no ano passado, do programa federal Brasil Carinhoso, que complementa a renda de famílias com crianças e receita per capita inferior a R$ 70 por mês, Fortes arrisca que o índice de miseráveis no Piauí já esteja em 7,5%.
O objetivo da atual administração, liderada pelo governador Wilson Martins (PSB), é erradicar a miséria no Estado até o próximo ano. O governo federal estipulou a mesma meta, mesmo que, em alguns casos, o resultado seja mais estatístico do que prático. Muitas vezes, as famílias recebem um complemento mínimo na renda, com poucos reais, somente para que transponham o patamar de R$ 70 mensais por cabeça.
Crítico da transferência de renda como redentora da miséria, o professor da Universidade de Cambridge Flavio Comim define como "estatística do faz de conta" o uso dos R$ 70 mensais per capita como limite da pobreza extrema. "Vamos chegar à conclusão de que extinguimos a 'pobreza extrema' usando uma linha de pobreza de baixíssima confiabilidade, inadequada para um país como o Brasil", afirma. "Preferimos acreditar nessas estatísticas do que em descrições multidimensionais da pobreza com maior confiabilidade", completa.
As palavras de Cezar Fortes buscam, invariavelmente, referências no trabalho do economista Ricardo Paes de Barros, considerado o responsável pelo formato atual do Bolsa Família. Entre as menções, o secretário conta: "O Paes de Barros ligou para cá há seis meses. Disse que o Piauí é uma das maiores experiências em redução da pobreza no planeta". Os motivos? Além dos fatores já consagrados e comuns a todas as regiões, como as transferências de renda, o reajuste real do salário mínimo e a aposentadoria rural, o Piauí se diferenciou pelo desempenho dos programas de crédito fundiário e inclusão produtiva.
Cocal da Estação, como o município é conhecido, é uma típica cidade pobre do interior do Nordeste. Pela manhã, ruas lotadas, um enxame de motocicletas e muito movimento no mercado e na feira. De tarde, o calor afugenta e o cenário é quase deserto. Até o comércio tem por hábito fechar. Também são tradicionais os queixumes acerca do potencial subaproveitado da cidade. "A gente poderia ser um grande produtor de caju e de mel", afirma Raimundo Nonato Cardoso, o "Nonatinho", secretário de Política Agrícola do sindicato rural. Ele foi um dos responsáveis pela elaboração de projetos para captação de dinheiro do Programa Nacional de Crédito Fundiário, que ajudou famílias pobres do município a complementar a renda por meio de atividades agrícolas.
Domingos Fontenele é um dos beneficiados. Sua vida teimava em andar de lado quando ele decidiu, em 1998, buscar dias melhores em São Paulo. Aos 18 anos, sem saber ler e escrever, não foi aceito nem mesmo na construção civil e regressou duas semanas depois de partir. De volta, aproveitou a instalação da escola do vilarejo para ser alfabetizado. Em um curso supletivo, chegou à sexta série do ensino fundamental. Parou em 2002, quando se casou com Erinalda, mãe de Bianca. Na mesma época, criou, com vizinhos - entre os quais Nonatinho -, a Associação dos Agricultores Familiares da Birindibinha.
Com o dinheiro do crédito fundiário, 14 famílias do povoado regularizaram seus imóveis, o que facilitou a busca por outras linhas de financiamento. Uma das ideias em gestação era produzir mel em escala comercial. "A gente se embrenhava no mato com as caixas de abelha. Chamavam a gente de doido", relembra Domingos. Em 2004, a associação enviou um projeto ao Programa de Combate à Pobreza Rural (PCPR), que conta com apoio do Banco Mundial. O empréstimo de R$ 27 mil foi investido na construção da casa de mel e na aquisição de macacões, garfos, decantador e demais equipamentos necessários à produção, que, no ano passado, foi de 11 mil litros.
Há um ano, o Ministério do Desenvolvimento Agrário apontou o Piauí como o campeão de acessos ao crédito fundiário. Na época, os empreendimentos da agricultura familiar no Estado respondiam por mais de 10% das operações de todo o país. A demanda é explicada justamente pelo contingente de pobres no meio rural piauiense. O valor mais baixo da terra em relação à média nacional também justifica o desempenho do Estado, visto que as linhas são limitadas a R$ 80 mil.
Segundo Comim, a renda é um "indicador imperfeito" de bem-estar, pois não deixa claro o impacto positivo do que se faz com esse dinheiro
O PCPR, no entanto, desapareceu de Cocal. De acordo com o site do Banco Mundial, o último desembolso do programa no Piauí foi feito em abril de 2010. "Esperamos que as linhas voltem logo", disse Nonatinho, que duas semanas após conversar com o Valor foi vítima de um atentado. Um tiro de rifle nas costas só não o matou porque o notebook que carregava na mochila amorteceu o impacto do projétil. Ele desconfia de adversários na eleição do sindicato rural. A polícia investiga o caso.
O mel que passou a jorrar na Birindibinha adoçou um pouco a vida de Domingos e da família, cuja renda foi incrementada em cerca de R$ 2 mil por ano. O valor se soma aos R$ 102 mensais do Bolsa Família e algum provento resultante do comércio de animais. O reflexo da ascensão social é concentrado em Bianca, que assiste repetidas vezes ao mesmo DVD da dupla de palhaços Patati e Patatá, febre entre as crianças no país inteiro. Ela também anda de bicicleta, toma sorvete e se lambuza com balas e pirulitos. "No meu tempo, o único divertimento era uma bola feita com um monte de saco plástico enrolado. Doce? Quando dava pra tomar um refresco, era alegria", lembra Domingos, orgulhoso do que proporciona à filha.
A casa de quatro cômodos tem geladeira, fogão a gás, televisão, aparelho de DVD e moderno equipamento de som. O computador ainda não chegou, mesmo porque ninguém sabe como operá-lo. "A Bianca é quem vai ensinar", prevê o pai. No banheiro, cosméticos de Erinalda. "Escovava os dentes com raspa de juá e só trocava a escova quando não tinha mais pelo nenhum", segue lamentando Domingos, sob gargalhadas da mulher. "Nossa, mas a coisa era mesmo feia pro seu lado", ela o ironiza. Aprígio, o avô, também tem geladeira e televisão. Desta última, diz não gostar, mas é desmentido pela família, que o acusa de noveleiro.
Para o velho agricultor, a Birindibinha vive seu apogeu. "Não tem mais mendigo aqui. Pode ter lá na cidade grande, mas não aqui." Se a fome já não assusta, problemas típicos do Nordeste atrasado ainda se fazem presentes, como atesta o ataque a Nonatinho. A região também vive um problema crônico de fornecimento de energia elétrica. Os ventiladores giram lentamente em Cocal, sendo possível acompanhar com os olhos o movimento das pás. Mesmo nessa cadência, os aparelhos permanecem ligados, funcionando talvez como alento psicológico ao indescritível calor do meio-dia.
Domingos explica que a instabilidade da energia traz à tona outro problema. Em muitas comunidades, a água é retirada de poços por bombas elétricas, que frequentemente param de funcionar. Na saúde, o único hospital de Cocal foi apelidado pela população de "rodoviária", já que boa parte dos pacientes que chegam, até mesmo os casos mais simples, são embarcados em uma van e levados para municípios vizinhos.
Tido como um dos maiores especialistas em redução de pobreza no mundo, Paes de Barros já defendeu em entrevistas a teoria de que os anos de estudo são diretamente proporcionais à renda de um povo. No Piauí, a média de escolaridade passou de quatro para seis anos entre 2000 e 2010. "Apesar de o nível da educação ainda ser limitadíssimo, foi suficiente para aumentar a renda", afirma o secretário estadual de Planejamento, que corrobora a tese de Paes de Barros.
Diferentemente do pai e do avô, Bianca vai debutar na idade certa nos bancos escolares. Ela própria e os pais estão animados. Segundo Domingos, o colégio da filha passou por uma reformulação e hoje conta com ventiladores (em câmera lenta), bebedouro, armários e computadores. A qualidade do ensino, ele garante, também melhorou. "Antes quem ensinava aqui sabia quase o mesmo que os alunos. Os professores só tinham a quarta série", relata.
Apesar das melhorias, os jovens letrados de Cocal ainda buscam o futuro em São Paulo ou no Rio. A região não oferece muitas oportunidades e um grande contingente acaba ficando sem ocupação formal após a conclusão do ensino médio, especialmente as moças. "O pessoal continua indo embora para o sul. Eles querem moto, tablet, querem celular bom", observa Domingos.
A estagnação e a ausência de horizonte para beneficiários de programas de transferência de renda estão entre os principais argumentos dos críticos dessa política. Segundo Comim, a renda é um "indicador imperfeito" de bem-estar, pois não deixa claro o impacto positivo do que se faz com este dinheiro. "Será que pessoas com R$ 71 mensais não são efetivamente pobres extremos? O valor é tão baixo que implica uma visão de sociedade habitada por pessoas essencialmente distintas, com necessidades tão distintas que estão dentro de um marco sem perspectiva de igualdade entre seus cidadãos" diz o professor.
Suas críticas ecoam em um ônibus parado à beira da estrada em Piracuruca, vizinha a Cocal. Lotado de jovens, seguiria dali a pouco rumo a São Paulo. Nas palavras de Cezar Fortes, porém, a solução para esta realidade está nas mãos de Bianca. "Os resultados só virão no longo prazo. Esperar que uma indústria vá se instalar em Cocal é bobagem. Não vai nunca. É melhorar a educação e, lentamente, essa população é que vai transformar a realidade. No médio prazo, não há perspectiva mesmo."
© 2000 – 2012. Todos os direitos reservados ao Valor Econômico S.A. . Verifique nossos Termos de Uso em http://www.valor.com.br/termos-de-uso. Este material não pode ser publicado, reescrito, redistribuído ou transmitido por broadcast sem autorização do Valor Econômico.
Leia mais em:
http://www.valor.com.br/cultura/3027362/das-mazelas-escolas#ixzz2MImdDQtELeia mais em:
Nenhum comentário:
Postar um comentário