quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Esboço de história universal


Obra realiza primeira exposição pública do materialismo dialético

Ricardo Musse
(artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo em 01 de fevereiro de 1998)
No "Manifesto Comunista", Marx e Engels apresentam, pela primeira vez, o mundo burguês como uma unidade contraditória entre fatores dinâmicos e invariância estática. O paradoxo de uma sociedade que não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, com eles, o conjunto das relações sociais é próprio do mundo moderno. Enquanto os antigos modos de produção assentavam-se, à maneira de uma tradição, na manutenção e conservação de relações fixas e cristalizadas, a sociedade burguesa se reproduz, mantendo-se idêntica, apenas ao preço de uma contínua transformação que, acarretando a obsolescência e uma incontrolável destruição de toda estrutura de produção existente em um determinado momento, subverte de forma incessante inclusive o cenário histórico e político.
Por razões conjunturais, Marx e Engels privilegiaram, nesse entrelaçamento, o aspecto dinâmico, a constância da transitoriedade, materializados na frase-emblema: "Tudo que é sólido desmancha no ar". Muito do interesse e parte da recepção do "Manifesto" explicam-se por essa ênfase. Em períodos de estabilização e consolidação do capital, seja entre 1850 e 1870 ou no quase meio século que se estende de 1950 a 1989, o marxismo volta-se para a compreensão da estática imanente à dinâmica social, concebendo a sociedade como uma segunda natureza e debruçando-se sobre o sempre-igual de fenômenos como o fetichismo da mercadoria. Hoje, no entanto, quando, por uma conjunção de fatores -conflito entre blocos e Guerra Fria, estabelecimento nos países centrais de um Estado do Bem-Estar Social, predomínio incontestável da hegemonia norte-americana- o engessamento do capitalismo parece ter chegado ao fim, muito do que se diz no "Manifesto" volta a ter uma inesperada atualidade.
Revolução iminente 
O texto do "Manifesto" constitui-se pela combinação, quase sempre inextrincável, de uma exposição concisa que se propõe a apresentar abertamente, "opondo-se à lenda do espectro", a teoria do comunismo com o detalhamento de uma plataforma política do proletariado para uma revolução que Marx e Engels julgavam iminente e que de fato se desencadeou pouco menos de um mês após sua redação.
Essa conjunção de doutrina e programa, a simbiose entre conceito e história, a unidade de teoria e prática realizam, novamente pela primeira vez (impossível não destacar repetidamente o caráter inaugurador do texto), o projeto mais ambicioso da filosofia do idealismo alemão, enunciado por Fichte como a junção entre o a priori, o desdobramento lógico, e o a posteriori, a experiência do mundo real, e que Hegel, na "Fenomenologia do Espírito" -conforme a voz corrente na filosofia da época, dos jovens hegelianos a Schopenhauer- apenas conseguira alcançar, retrospectivamente, para as formas do passado.
Mas não é só no terreno da filosofia, ao efetivar a exigência, reiterada no debate intelectual da década de 1840, de dar conta do presente histórico, que o "Manifesto" significa um passo adiante. Além de contribuições no campo da sociologia (a teoria das classes sociais) e da economia (embora aqui ainda esteja ausente um ponto central do arcabouço - a teoria marxista do valor), o "Manifesto" inaugura ainda, de acordo com a opinião insuspeita de Schumpeter, a interpretação econômica da história e a teoria moderna da política.
O gesto inaugural ou a introdução de avanços em disciplinas aparentemente tão díspares -que dificilmente poderá, por conta da superespecialização hoje vigente no trabalho intelectual, ser repetido por um outro livro- explica-se facilmente por um círculo virtuoso. Marx renovou a história porque conhecia bem economia, revolucionou a política porque conhecia a história como poucos, reinterpretou criticamente a economia graças aos seus conhecimentos de política e de história etc.
Não se pode dizer o mesmo, porém, do processo de disseminação que tornou o marxismo um fenômeno mundial a partir da última década do século 19. Como a divulgação se fez prioritariamente pela via da esquematização, a difusão acarretou o empobrecimento tanto do conteúdo quanto do método. Não foi só o retalhamento do legado de Marx e Engels em partes e disciplinas estanques por obra do anseio enciclopédico da época e pela posterior incorporação, em separado, de algumas descobertas do marxismo pelo mundo acadêmico burguês. O próprio Engels, apenas cinco anos depois da morte de Marx, acrescentou ao "Manifesto", na edição inglesa de 1888 e depois na edição alemã, uma série de notas explicativas, presentes em todas as edições e traduções posteriores, que dissociam conceito e história.
A primeira nota, por exemplo, adendo ao título da primeira parte, "Burgueses e Proletários", define logicamente estas duas classes por sua posição em relação à propriedade dos meios de produção. Já o texto do "Manifesto" expõe esses conceitos por meio de uma síntese da história moderna que destaca o processo de formação de cada classe e a conexão entre elas, o antagonismo que as envolve numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta.
Poder de síntese 
A súmula do mundo moderno, pequeno esboço de história universal, que o "Manifesto" apresenta em poucas páginas, dotada de um impressionante poder de compreensão e síntese, constitui a primeira aplicação, e exposição pública, da concepção materialista que Marx e Engels haviam desenvolvido num manuscrito, "A Ideologia Alemã", até 1932 abandonado à "crítica roedora dos ratos". O "Manifesto", além de retomar, sob a forma de drásticos resumos, passagens inteiras desse manuscrito, concretiza a idéia, ali apenas enunciada, de uma história que não separa nem distingue os aspectos econômicos, sociais ou políticos.
Essa teoria da história se propõe a combater o ponto de vista de um "assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano" pela observação das relações materiais. Seu fio condutor foi posteriormente condensado por Marx nos seguintes termos: "O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência" (prefácio à "Contribuição à Crítica da Economia Política").
O travamento no desenvolvimento das forças produtivas (a ausência de crescimento), a contradição entre relações sociais existentes manifestam-se sob a forma de crises. As relações burguesas tornaram-se estreitas demais para conter a riqueza colossal que a própria burguesia despertou no seio do trabalho social por meio da exploração do mercado mundial. As medidas protelatórias, segundo Marx e Engels, apenas preparam crises mais gerais e violentas.
A partir desse cenário o "Manifesto" fez uma dupla aposta. Primeiro, sustentou a hipótese, que se revelou verdadeira, de que a crise levaria a uma revolução social que varreria do mapa europeu os velhos regimes. Equivocou-se, porém, na previsão de que o desenvolvimento do capitalismo avançara a ponto de tornar possível uma vitória definitiva do proletariado. Em 1850, Marx e Engels reconhecem, no último artigo de "As Lutas de Classes na França", que a perspectiva de uma continuação do processo revolucionário estava inviabilizada pela retomada, após a crise de 1847, da prosperidade industrial.
O desfecho das revoluções de 1848 -na França marcado pelo golpe de Estado de Luís Bonaparte em 1851-, que levou Marx a se exilar na Inglaterra e a se dedicar por longos anos apenas à redação de "Capital", modificou profundamente a visão de Marx e Engels sobre o papel da burguesia. Sua capacidade em se acomodar, quando preciso, com setores da aristocracia fundiária e com a burocracia monárquica, desfizeram a impressão, amplificada pelo "Manifesto", de que se tratava de uma classe eminentemente revolucionária, apta a "criar o mundo à sua imagem e semelhança". Desde então, passa a ser vista como uma classe contra-revolucionária, trazendo para o primeiro plano seu conflito com o proletariado.
Muito se criticou a teoria de classes do "Manifesto", o substrato da famosa afirmação que abre o livro, "a história de toda sociedade até hoje é a história de lutas de classes", principalmente a simplificação dos antagonismos em dois grandes campos inimigos -burguesia e proletariado. Quando se se atém, porém, ao núcleo da determinação do conceito de proletário, à condição de homens que são uma mercadoria como qualquer outro artigo de comércio, sujeitos às vicissitudes da concorrência e às flutuações do mercado, como negar, ainda hoje, a veracidade e a pertinência dessa teoria?
Os problemas do "Manifesto" e, por extensão, do próprio marxismo surgem na determinação da consciência de classe e, portanto, no delineamento da atuação política do proletariado. O processo de formação da classe proletária que o "Manifesto" descreve, das lutas isoladas à organização em associações permanentes e em coalizões antiburguesas, a conversão das lutas locais em uma luta política nacional, é impecável. Mas a expectativa de Marx e Engels de que o incremento de dois fatores dissonantes -o empobrecimento do proletariado por causa da concorrência entre os proletários por trabalho e o aumento do seu poder social por conta da concentração industrial (horizontal, isto é, geográfica, mas também vertical, pela suplantação das pequenas pelas grandes empresas)- conduzisse à revolução proletária não se mostrou factível nos países centrais do capitalismo.
Nesse ponto crucial a atualidade do "Manifesto" reside menos em respostas prontas do que em seu caráter aberto. Em lugar de esmiuçar uma teoria sistemática do partido, com regras e critérios de estruturação e funcionamento, toma o conceito de partido, que agrega no nome "Manifesto do Partido Comunista", como uma mera extensão da classe, determinando, na fórmula de Claudín, não "o partido do proletariado, mas o proletariado como partido". Em vez de uma definição peremptória do modelo de uma sociedade socialista, oferece poucas, breves e vagas indicações (destacando, porém, que a revolução social também significa, nos termos de 1968, "mudar a vida"), à espera de que o desaparecimento do antagonismo entre as classes, do fetichismo da mercadoria e do predomínio do interesse monetário, por si só, ajude a delinear os contornos de uma forma social mais justa.
Ricardo Musse é professor de filosofia na Unesp (Universidade Estadual Paulista) e membro da comissão executiva da revista "praga" (Hucitec).

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